domingo, 10 de agosto de 2014

Um encontro com os Yazhidis


Já lá vão quase sete anos. Num momento em que a força aérea turca bombardeava as montanhas no Curdistão iraquiano tentando atingir os guerrilheiros do PKK (Partido dos Trabalhadores do Curdistão), perdi-me pelo labirinto das montanhas curdas e cruzei-me com os Yazhidis. Foi na aldeia de Bahadre – assim escreveram o nome da aldeia no meu caderno de notas. Fica mais ou menos entre Erbil e Dahuq, poucos quilómetros a norte de Mossul. Fui à procura do meu caderno de notas.

Confesso que antes do Verão de 2007 não me lembro de ter dado pela existência dos Yazhidis. Mas nesse verão, uma série de atentados que matou centenas de pessoas, muitas delas Yahzidis, atirou a comunidade para o topo da actualidade informativa. 

E assim em Novembro de 2007 estive com os Yazhidis nessa aldeia de Bahadre (uma designação que disseram ser associada à Virgem Maria e a Jesus Cristo) com cerca de – disse-me um líder da aldeia – 10 mil pessoas. Havia três escolas primárias e uma secundária, uma Igreja em ruínas nas montanhas. Os homens da aldeia não souberam dizer há quantos anos os Yahzidis andavam por ali. Mas de certeza já ali estavam há séculos. Recusam ser uma comunidade fechada e dizem ter boas relações com toda a gente, embora os atentados desse Verão revelassem grandes dissidências com os sunitas.

Os atentados terão tido origem nas desavenças provocadas depois da conversão de uma jovem Yahzidi ao Islão. Essa é uma regra de que a comunidade não abdica: quem nasce Yazhidi, é Yahzidi para toda a vida. Aliás, ninguém pode converter-se ao Yazhidismo: só se pode ser Yahzidi por nascimento. Quanto ao casamento, predomina a monogamia, embora os líderes das aldeias possam ter várias mulheres. E o casamento só pode ser concretizado entre membros da mesma aldeia. Quem desrespeita esta regra não é mais considerado Yazhidi e é expulso, o que significa que a sua alma está perdida para sempre.

A figura central dos Yahzidi é o Sheik Adi, cuja tumba está no templo de Lalish. Taus Malak é a figura venerada, que é representada por um Pavão e que é o líder dos outros arcanjos que Deus colocou no mundo quando o criou. As penas coloridas do pavão representam o poder sobre os doze meses do ano e os sete dias da semana. Cristãos e Muçulmanos referem-se frequentemente a Taus Malak como o Diabo ou Lúcifer e isso levou a que os Yazhidis fossem também considerados adoradores do Diabo. Palavra que aliás é proibida no léxico Yahzidi.

Têm também um livro sagrado – Mussa Farash – significa o “livro negro”, um livro que nunca ninguém viu e que dizem estar na Alemanha ou em Inglaterra. Apenas ouvem falar dele, não sabem se existe. Há ainda outro livro considerado sagrado – Jalua. São os livros que estabelecem as regras e as leis religiosas.

A comunidade é dividida numa espécie de castas ou classes (é provável que esta lista não seja exaustiva): o MIR (o líder, príncipe); os Sheiks; os distintos; os PIR (pregadores, “padres”) e os MERDI (as pessoas em geral, o povo). O MIR não vive em Bahadre mas, na vila, vive o número 2 da hierarquia Yazhidi: Kamiran Khairi Saeed, 52 anos. 



Diz que teve um palácio no norte de Bahadre, mas está em ruínas. Também chama palácio à casa onde vive e que serve de local de repouso aos visitantes. Insiste em escrever o meu nome em árabe no cartão que lhe entreguei. O que devia ser apenas uma conversa para saber um pouco dos Yazhidis, transformou-se numa refeição na sala nobre apenas com Kamiran Khair Saeed sentado à mesa com os convidados. Era “proibido” recusar o convite. E fui autorizado a visitar o Templo de Lalish.

O Templo de Lalish tem o túmulo do Sheik Adi, o grande inspirador dos Yahzidis. Há sempre soldados de guarda e um check-point que é preciso ultrapassar para chegar ao Templo. Ouve-se a água a correr. Há gente descalça que olha os visitantes.
Os sapatos ficam à porta e a entrada é feita com um passo largo para que os pés não toquem na soleira porque é beijada pelos membros da comunidade. No Templo, todo construído em pedra, está o túmulo, numa sala despida de qualquer ornamento. O túmulo está coberto de panos coloridos. Explicam-me que os crentes dão um nó no pano e colocam-no sobre o túmulo até que seja realizado o pedido que fizeram. Um apelo ao espírito do profeta. Depois, quando isso acontecer, regressam para desfazer o nó. 


Nos acessos à zona do túmulo há dezenas de ânforas que os Yahzidis dizem ter mais de 600 anos. É nessas ânforas que guardam o azeite puro para alimentar as 366 lamparinas que iluminam o templo permanentemente. De uma divisão para outra não se pode pisar os degraus de pedra: tal como a soleira, à entrada, são beijados pelos Yazhidis que vêm ao templo.
Há um canal de água subterrâneo. A água é um elemento considerado sagrado e está por todo o lado. É aqui que as crianças Yahzidis são baptizadas. O Templo de Lalish tem sete pilares interiores que representam os sete anjos. Os pilares também recebem panos coloridos e os respectivos pedidos.

A cada sexta-feira há uma refeição para quem aparecer. É uma tradição da comunidade. A cozinha é grande e a dimensão das panelas deixa perceber que alimentam muita gente. Mas é a quarta-feira que é considerado o dia sagrado.
Há uma cobra preta em relevo na lateral de uma das portas de acesso ao templo. É um animal sagrado. Os Yahzidis nunca as matam.

Não se sabe ao certo quantos Yahzidis existem, talvez 500 mil. Muitos milhares vivem na região de Mossul e também do outro lado da fronteira, na Síria. Perseguidos durante séculos, os Yahzidis viram o seu direito ao culto reconhecido na primeira Constituição iraquiana. Por essa altura tinham três deputados na Assembleia Nacional do Iraque (eleitos nas listas curdas).

josé manuel rosendo
10 de Agosto de 2014



quarta-feira, 6 de agosto de 2014

Currículo ou cadastro?


Que me perdoem alguns dos meus amigos, mas punhos de camisa branca (e respectivos botões…) a saírem da manga do casaco e gravata de seda, deixam-me cada vez mais desconfiado. Mais pés tivesse e mais de pé atrás ficaria sempre que me cruzo com uma destas personagens.

Estou habituado a pagar o preço de uma vida que tem as amizades que o percurso vai ditando, sem nenhum calculismo em relação a isso. Relaciono-me com quem muito bem entendo: de esquerda, de direita, bem e mal vestidos, indiferente à opção sexual, administradores ou membros das comissões de trabalhadores e dos sindicatos, religiosos, ateus e agnósticos, doutorados ou analfabetos. Não raramente, alguns daqueles com quem me relaciono não gostam que me me relacione com outros daqueles com quem também me relaciono. Pago esse preço com todo o gosto porque é o preço da minha Liberdade. E assim vai continuar a ser. Mas confesso que estou a começar (não de agora…) a ficar com um preconceito e que é cada vez maior a vontade de “passar para o outro lado da rua” quando se aproxima gente bem vestida. Eu sei que posso estar a ser muito injusto para gente que apenas gosta de andar “bem vestida” e sei que “vestir bem” pode ser apenas uma forma de estar e andar na vida, um prazer como qualquer outro (como rapar o cabelo, pintá-lo de verde ou usar uma argola na ponta do nariz) mas é, infelizmente, uma imagem de marca dos maiores vigaristas.

Já nem me refiro ao caso BES e à estratégia de comunicação utilizada até sabermos que há mesmo um buracão. Lembram-se certamente dos muitos analistas a referirem de início que o BES tinha “almofada” financeira que cobria uma eventual exposição aos produtos tóxicos de outras empresas Espírito Santo. Já nem me refiro à forma como o valor do buraco foi aumentando, mas atenuado na opinião pública com os analistas “almofadas” que nos acalmavam diariamente e em grandes doses. Já nem me refiro às declarações políticas, do governo e da (alguma dita) oposição. Já não me refiro a nada mas apenas à certeza de que andámos a ser enganados durante muito tempo.
Enganados desde logo por um homem que dizia que os portugueses preferiam o subsídio de desemprego a terem um trabalho de onde resultasse um salário. Um homem de belas camisas brancas e vistosas gravatas, com uns brilhantes óculos na ponta do nariz. Há lá imagem mais credível…

Mas não me venham dizer que foi apenas ele. Com ele estão certamente muitos que arrecadaram belas compensações por “metas atingidas” em negócios de vigaristas. Com ele estão certamente muitos que apenas olhavam os números, sem os questionar, apenas com a sofreguidão de saberem quanto lhes iria cair na conta. De reguladores não vale a pena falar, porque ser regulador para, invariavelmente, quando se descobre cada vigarice, vir dizer que o regulador não tem poderes de polícia, então mais vale não existirem.

Quanto a punhos de camisas brancas a saírem das mangas do casaco, a par das notícias sobre o BES, a notícia de que o nosso futuro comissário europeu, tem também ele no currículo, uma passagem pela Goldamn Sachs – um dos bancos da crise de 2008 – e foi um dos homens da linha da frente nas negociações com a troika e na defesa da ultra austeridade que nos foi imposta.

Também José Luís Arnaut vai para o Conselho Consultivo da Goldman Sachs. O Expresso contou que Arnaut teve um papel na venda dos CTT e que o Goldaman Sachs ficou com quase 5% do capital dos CTT. O Expresso contou também que a firma de advogados de Arnaut (CMS Rui Pena & Arnaut) representou os interesses de bancos como o Goldaman Sachs e o JPMorgan nas negociações dos swaps com o Estado português.

E temos Vítor Gaspar, antigo Ministro das Finanças, que foi para o FMI. Não é necessário falar do FMI. E o antigo Ministro da Economia, Álvaro Santos Pereira, foi para a OCDE. E pronto, é isto que temos. 

E agora poderão perguntar: é crime o percurso destes homens e o que eles fizeram pelo caminho? E aí responderei: depende da Lei. É evidente que os actos praticados não configuram nenhum crime à luz da lei vigente.
Mas uma coisa é certa: alguns dos actos de muitos destes protagonistas com punhos de camisa branca a sair da manga do casaco e respectiva gravata de seda, o lugar deles é num qualquer cadastro e não num currículo que, à partida, é algo que abona a favor do seu sujeito. Como é evidente, depende do ponto de vista.

josé manuel rosendo
6 de Agosto de 2014


PS: também tenho camisas brancas e umas gravatitas velhas embora não sejam de seda.