sexta-feira, 26 de fevereiro de 2016

Cessar-fogo na Síria? À meia-noite logo se vê…


O calar das armas está previsto para a meia-noite (10h00 GMT) de Damasco nesta sexta-feira. O anúncio foi feito por Estados Unidos e Rússia, mas desde logo o próprio Secretário de Estado norte-americano, John Kerry, disse perante o Senado que é preciso esperar para ver. A Casa Branca disse que o acordo significa que há uma evolução; o Kremlin disse que o acordo pode transformar radicalmente a situação na Síria.

O anúncio de cessar-fogo deixa no entanto algumas janelas abertas por onde as armas podem continuar a disparar. Avisa desde logo que “as acções militares, incluindo ataques aéreos das forças armadas da Síria, da Rússia e da coligação liderada pelos Estados Unidos, contra o Estado Islâmico e a Front al Nusra (Al Qaeda) e outras organizações consideradas ‘terroristas’ pelo Conselho de Segurança da ONU, vão continuar”. Os que anunciam a trégua dizem também que vão trabalhar em conjunto para delinear a fronteira dos territórios sob controlo dos que ficam de fora deste acordo. Significa que vão dizer quais são os territórios que vão continuar a ser bombardeados pelos que anunciam o cessar-fogo.

De facto, desde logo, este é um cessar-fogo anunciado após conversações em que muitos dos intervenientes ficaram de fora. E não apenas o Estado Islâmico e a Front al Nusra. Há uma quantidade enorme de grupos ditos “jihadistas” e moderados que não foram achados nem ouvidos. É certo que é um passo enquanto estão suspensas as conversações mais alargadas em Genebra. Também é certo que este passo pode influenciar essas conversações se e quando forem retomadas. Mas é bom reter o potencial de tudo poder correr mal.

Há comandantes de grupos afectos ao Exército Livre da Síria (oposição considerada moderada) que já disseram que esta trégua é a cobertura para que as forças de Bashar al Assad e os aliados russos continuem a atacar bolsas de território onde estão grupos rebeldes argumentando que estão a atacar a Front al Nusra. A confusão no terreno é enorme e este receio parece legítimo. Os rebeldes moderados dizem isso mesmo: é impossível delimitar o terreno onde estão “rebeldes moderados” e “Jihadistas” da al Nusra (presentes em Idlib, Alepo, Damasco e em regiões do sul).

O comandante da brigada do Exército Livre da Síria em Alepo, Major Ammar al Wawi, foi muito específico: “A Front al Nusra tem combatentes no terreno ao lado das brigadas rebeldes na maior parte da Síria, e é um parceiro na luta tal como a maioria das brigadas que estiveram na conferência de Riad (Conferência que juntou muitos grupos da oposição e que terminou sem resultados práticos)”.

Outro porta-voz do Free Tribes Army disse estar disposto a aceitar um cessar-fogo que pare o banho de sangue mas lembra que este acordo não tem legitimidade porque não inclui alguns dos grupos que combatem o regime de Assad. Este representante repete a ideia de que vão ser bombardeados com o argumento de que são ataques contra a Al Nusra e avisa que não se compromete com um cessar-fogo se isso não for do interesse do povo sírio.

Da Front al Nusra, o que se sabe é que levantou postos de controlo, retirou combatentes e juízes da cidade de Sarmada, na província de Idlib, a seis quilómetros da fronteira com a Turquia. Um juiz da cidade diz que estas medidas pretendem retirar argumentos a quem quer atacar a al Nusra e evitar bombardeamentos em zonas civis, mas diz que não acredita que isso não aconteça: “para ser honesto, não acredito. Mas a al Nusra está a tentar jogar o mesmo jogo, assim não haverá desculpas”.

Do lado dos curdos, as Unidades de Protecção Popular (YPG) comprometem-se prometem respeitar o cessar-fogo mas reservam o direito de ripostar se forem atacadas. A Turquia considera que não está vinculada ao acordo e reserva-se o direito de ripostar se for atacada pelas YPG. A juntar a tudo isto, chegam por estes dias à Turquia os aviões sauditas que vão participar nos bombardeamentos contra o Estado Islâmico.

Faltam poucas horas para a entrada em vigor do cessar-fogo de duas semanas. Rapidamente vamos perceber se as armas vão ficar caladas.

Pinhal Novo, 26 de Fevereiro de 2016

josé manuel rosendo

sábado, 20 de fevereiro de 2016

(Talvez) A hora dos curdos da Síria


E chegámos ao momento de saber quem é terrorista! Expressão máxima e mais recente desta questão é a de saber se as Unidades de Protecção Popular (YPG, braço militar do Partido da União Democrática – PYD – dos curdos da Síria) são terroristas. As YPG combatem o Estado Islâmico e (só às vezes) as forças do Exército Livre da Síria (oposição “moderada” a Bashar al Assad), com quem também já combateram lado a lado. O que as YPG pretendem é tão só expandir território e conquistar autonomia para esse território. É esse o objectivo dos curdos no Iraque e na Síria. Aliás, o Presidente do Curdistão Iraquiano, Massoud Barzani, disse recentemente que o tempo do acordo Sykes-Picot (que, há precisamente 100 anos, dividiu os territórios do antigo Império Otomano e deixou os curdos à espera de um Estado…) terminou. Barzani dirigiu-se aos líderes mundiais e disse algo muito simples: independentemente do que digam e de aceitarem ou não, é esta a realidade no terreno! E esta é talvez a mais complicada questão que se coloca na região logo a seguir ao Estado Islâmico. Uma questão que deixa a Turquia irritadíssima.

Depois do atentado (28 mortos) de 17 de Fevereiro em Ankara, a Turquia apontou baterias aos curdos. O PKK (Partido dos Trabalhadores do Curdistão) foi acusado da autoria do atentado, tal como as YPG. Ambos negaram, mas dois dias depois os Falcões da Liberdade do Curdistão, grupo próximo do PKK, reivindicaram esse atentado feito na via pública mas que visou viaturas militares. O argumento foi o de ser uma resposta à actuação das forças militares turcas na região de Cizré (Curdistão turco) onde muitos curdos têm sido mortos.

É com este cenário que a Turquia intensifica os bombardeamentos da artilharia contra a região curda da Síria. E é com este argumento que a Turquia tenta convencer os aliados ocidentais de que é necessária um intervenção militar terrestre no norte da Síria. O problema é que para os Estados Unidos as YPG não têm o carimbo de “terroristas” e têm demonstrado ser uma força importante na contenção do Estado Islâmico. Por outro lado, as YPG e outras forças curdas aliaram-se com várias tribos sunitas do norte da Síria e formaram em Outubro passado as Forças Democráticas da Síria que têm sido apoiadas pelos bombardeamentos aéreos dos Estados Unidos no combate ao Estado Islâmico e na consequente expansão territorial.

Temos pois um problema que assenta numa velha questão: os que são terroristas para uns, são combatentes da liberdade para outros. Sempre assim foi e dificilmente deixará de ser. Saber quem deve ser colocado na lista de “terroristas” é também o que está a entravar as negociações de Genebra sobre a guerra na Síria, suspensas a 3 de Fevereiro e com recomeço previsto para 25 de Fevereiro.

Esta sexta-feira (19), houve uma declaração que passou sem a devida atenção: o Embaixador russo nas Nações Unidas, Vitail Tchourkine avisou o Presidente sírio Bashar al Assad contra a intenção declarada de reconquistar todo o território sírio num momento em que a diplomacia fala da necessidade de um cessar-fogo. Como se sabe a Rússia também apoia as YPG e não foi por acaso que os curdos da Síria abriram uma representação em Moscovo. Pode ser que esteja a chegar a hora dos curdos da Síria.

Pinhal Novo, 20 de Fevereiro de 2016

josé manuel rosendo 

terça-feira, 16 de fevereiro de 2016

O Dilema da NATO: apoiar os curdos ou a Turquia?

                                O Rio Eufrates separa a província de Kobani da de Afrin. É a
                                de Afrin que a Turquia não quer permitir que seja controlada 
                                pelos curdos das Unidades de Protecção Popular mesmo que
                                esteja lá o Estado Islâmico (foto Outubro de 2015)


A Turquia pode não estar a ganhar a guerra, mas está a marcar pontos onde mais directamente lhe interessa: está a bombardear os curdos, no caso os curdos da Síria! É certo que é uma estratégia de curto prazo, mas retardar qualquer ganho territorial ou acréscimo de autonomia curda é algo que sempre agrada a Ankara. Não deixa de ser curioso que a Turquia nunca tenha ameaçado uma intervenção militar na Síria para enfrentar e combater o Estado Islâmico, mas que o faça agora (tal como a Arábia Saudita) perante o avanço curdo que tenta criar uma continuidade territorial junto à fronteira com a Turquia, ligando as províncias de Jazira e Kobani a Afrin (até agora controlada pelo Estado Islâmico, não se sabendo exactamente qual é o poder dos extremistas nesta região). 

Há três dias que Turquia bombardeia posições curdas na província de Afrin, onde, diga-se também existiam bolsas controladas pelo Exército Livre da Síria (oposição considerada moderada). A situação é extremamente confusa com bombardeamentos que atingem escolas e hospitais, matando quase exclusivamente civis e provocando uma troca de acusações entre Estados Unidos, Rússia, Turquia, curdos e restantes intervenientes.

Relativamente à questão curda, convém reter que os curdos da Síria combateram ferozmente contra o Estado Islâmico e, ajudados pelos bombardeamentos aéreos norte-americanos, expulsaram os extremistas, empurrando-os para sul e para oeste, obrigando-os a atravessar o Rio Eufrates para a província de Afrin, onde agora decorrem os combates dos últimos dias. As milícias curdas das Unidades de Protecção Popular (YPG), braço armado do Partido da União Democrática (PYD), combateram sempre contra o Estado Islâmico. Umas vezes ao lado do Exército Livre da Síria, mas também contra este ramo da oposição quando se tratou de conquistar terreno para os curdos. Logo após o início da revolta contra o Presidente Bashar al Assad, os curdos preferiram uma espécie de neutralidade tentando tirar partido da luta que desgastava o poder sírio, espreitando uma oportunidade de alargar território e ganhar autonomia – a exemplo do que acontece com os curdos no Iraque.

Não deixa de ser irónico que o avanço curdo acabe por beneficiar o regime de Bashar al Assad, sendo que a aparente expansão do controlo curdo no norte da Síria não teria acontecido se não tivesse acontecido a revolta contra o regime sírio. Nos combates que decorrem neste momento, os curdos não estão alinhados nem com o regime de Assad, nem com os rebeldes considerados moderados, e ainda menos com o Estado islâmico ou com as diversas milícias islâmicas. 

Para a Turquia, o avanço curdo é o pior dos resultados nesta guerra na Síria. A Turquia regista a vantagem que Assad (e também a Rússia e o Irão) retira da luta curda e sabe que atingindo os curdos está a atingir Assad, a Rússia e o Irão. Os turcos olham o PYD como aliados do PKK (Partido dos Trabalhadores do Curdistão) e classificam os dois como organizações terroristas. Este é o ponto em que os aliados NATO (Turquia e os países ocidentais) divergem: o ocidente (que não se cansa de repetir que não quer colocar botas – homens – no terreno) vê os curdos como os mais capazes para combater o Estado Islâmico. Falta saber como é que a NATO vai resolver este dilema.

Curiosamente, quase que se deixou de ouvir falar de Estado Islâmico… parece ter cumprido a sua primeira missão: servir de argumento para um confronto entre potências regionais e entre as outras, as habituais, Estados Unidos e Rússia.

Pinhal Novo, 16 de Fevereiro de 2016

josé manuel rosendo

sábado, 13 de fevereiro de 2016

Síria: uma guerra com muitas guerras dentro e a reformulação de fronteiras no Médio Oriente


A imagem que ilustra este texto é da “Radio Free Syria” (afecta à chamada oposição moderada) e serve apenas para dar uma ideia da situação e da quantidade dos actores envolvidos, mas não é totalmente elucidativa. Falta incluir nesta ilustração a participação da Turquia, Estados Unidos, vários países europeus, Arábia Saudita e outros países do Golfo. E nem vale a pena tentar imaginar a quantidade de “inteligence” no terreno. Seja como for a imagem reflecte o que sente essa oposição e o Free Syrian Army: abandonados por aqueles de quem esperavam apoio.

A guerra na Síria integra o potencial de várias guerras que podem chegar logo a seguir a um eventual colapso do Estado Islâmico na sua formatação actual e após ficar resolvida a questão de Bashar al Assad. Desde logo tem consequências muito directas no Iraque (Mossul e Kirkuk podem exacerbar os ânimos entre curdos e árabes sunitas) e, embora menos, também no Líbano, não se sabendo por agora qual a intensidade dessas consequências na estabilidade e segurança no país dos cedros. Na Turquia havemos de ver.

O que parece certo é que está em curso o tão falado redesenhar de fronteiras no Médio Oriente. O Iraque dificilmente voltará a ser o que era aquando da era Sadam Husseín; a Síria dificilmente voltará a ser o que era aquando da “dinastia” Assad; os curdos querem certamente retirar alguma vantagem do conflito, eventualmente alargando território no Iraque – conquistaram Kirkuk ao Estado Islâmico e não vão ceder a cidade ao governo de Bagdad; se os curdos da Síria também conseguirem juntar alguma autonomia à dos irmãos iraquianos é certo que os curdos da Turquia (são cerca de 15 milhões) vão ganhar um novo alento; os sunitas, mesmo que não queiram viver sob a selvajaria do Estado Islâmico vão querer o seu próprio território, quiçá uma parte da Síria a outra do Iraque; não está excluída a hipótese da constituição de um Estado alauíta para acomodar Bashar al Assad (mantendo assim o importante porto de Tartus ao serviço da Rússia). 

Como é evidente são soluções que têm muitos escolhos pelo caminho e não agradam a todos os intervenientes nesta guerra. Desde logo ao Irão que teria um importante aliado (Assad) a perder território. A Rússia poderá não estar pelos ajustes porque afinal acaba de assumir um protagonismo importante no Médio Oriente a juntar aos acordos celebrados recentemente com o Egipto. Quanto à Turquia não quer nem ouvir falar em mais autonomia curda. Os Estados Unidos e os europeus pedem agora um cessar-fogo mas durante todo este tempo nunca acertaram uma estratégia de apoio à oposição moderada na Síria.

Dos países do golfo, a Arábia Saudita declarou-se disponível para enviar tropas para o terreno (certamente para combater o regime de Assad, mas não se sabe ao lado de quem) e a Rússia, que já acusou a Turquia de estar a preparar uma invasão terrestre, disse entretanto que uma ofensiva terrestre estrangeira na Síria poderá desencadear uma nova guerra mundial. Até o “nosso” Durão Barroso, embora de forma mais suave e não falando especificamente da situação na Síria, admite que não é impossível uma guerra generalizada.

Em qualquer conflito de grande intensidade há sempre a sensação de que a desgraça não vai ter fim, mas vai chegar o momento em que as várias forças que combatem na Síria vão querer solidificar os ganhos conquistados – ou evitar perdas maiores desde que possam sobreviver – e vão aceitar acordos. A região poderá não ficar em paz e poderão subsistir conflitos mais localizados, mas a selvajaria actual acabará por ter fim. Será o momento de fixar as novas fronteiras e, eventualmente de assistir ao regresso (pelo menos de uma parte substancial) dos milhões que andam em fuga. Depois, as potências mais endinheiradas ditarão a reconstrução possível das regiões afectadas, garantindo benefícios do petróleo e de outros recursos.

Até lá, como sempre acontece, cada uma das partes desta guerra tenta os maiores ganhos possíveis no terreno de modo a ter mais força à mesa das negociações. Sempre assim foi e dificilmente deixará de ser.

Pinhal Novo, 13 de Fevereiro de 2016

josé manuel rosendo

sexta-feira, 12 de fevereiro de 2016

Alô Bruxelas… há uma guerra na Síria!

                            O dia-a-dia na Síria é mais ou menos assim. Salma, Agosto de 2012.


Diz a Rádio Renascença, que o eurodeputado do PSD José Manuel Fernandes, que esteve durante quatro dias numa visita à Turquia a ver como são acolhidos os refugiados, sofreu um choque de realidade. Li até ao fim. E voltei a ler. O quê? Como? Um choque de realidade? Tem andado distraído? Ainda não tinha dado pelas consequências de uma guerra que dura há quase cinco anos? As notícias e as imagens não chegam a Bruxelas e a Estrasburgo? Quando alguns líderes mundiais já não se coíbem de admitir a possibilidade de uma guerra mundial, há um senhor eurodeputado que ainda não tinha dado por isso? Não tinha noção de qual é a realidade na Síria e nos países à volta? E fico-me por aqui… porque tinha vontade de fazer perguntas mais desabridas.

O eurodeputado português sofreu um choque de realidade e ainda assim ficou na Turquia, a 80 quilómetros da fronteira com a Síria. Já se imagina o que diria José Manuel Fernandes se tivesse atravessado a linha que divide os dois países. Apesar de tudo valha-nos a sinceridade: “A urgência que eu constatei e que não tinha interiorizado são aqueles milhões que ainda estão do lado da Síria, a viver em situações de penúria e em muito maior dificuldade do que aqueles que estão do lado da Turquia, e esses não me saíram do pensamento”. Não tinha interiorizado? Nem com um português (Guterres) durante anos a liderar a agência da ONU para os refugiados e a chamar constantemente a atenção para o drama? Nem assim?

Sei, por experiência própria, que sentir a guerra ao vivo é muito diferente de ver a guerra através da televisão e até admito que José Manuel Fernandes tenha ficado espantado ao constatar a dureza das imagens nos campos de refugiados. Admito também que apenas tenha querido abrir o coração e transmitir a necessidade de alguém fazer alguma coisa para acabar com aquele inferno. Nem sequer estão em causa os méritos do eurodeputado português e José Manuel Fernandes até está nomeado para os ‘MEP Awards’ (prémio que distingue os melhores deputados do Parlamento Europeu), sendo um dos três seleccionados para a categoria de “Assuntos Económicos e Monetários”. Mas a surpresa revelada por este eurodeputado perante a tragédia dos sírios, espelha bem aquilo em que está transformada a União Europeia: um negócio, desligado da realidade, que passa a vida absorvido por taxas de juro, bolsas, défices e orçamentos, com debates e discussões em salões dourados. O resto?, logo se vê. Quanto muito passa-se um cheque chorudo para acalmar consciências e ter oportunidade para umas fotografias e um discurso com aparência de preocupação social. Mas isso não chega. Um eurodeputado, por força das funções que desempenha, não pode ir à Turquia e dizer que ficou chocado: tem a obrigação de conhecer aquele que é o maior drama da história recente! Mesmo que passe a vida absorvido por dossiês técnicos.

Esta surpresa do eurodeputado confrontado com a realidade diante dos olhos leva a outra questão: há pouquíssima informação sobre o que está a acontecer na Síria. A situação é terrivelmente difícil e são poucos os jornalistas que conseguem estar no terreno. Assim, talvez o senhor eurodeputado possa apresentar uma proposta no conforto do Parlamento Europeu para ajudar outros eurodeputados a não passarem pela vergonha de admitir que não conhecem a dimensão da tragédia. Talvez uma proposta para o Parlamento Europeu, de alguma forma, apoiar os órgãos de comunicação social que não têm dinheiro para enviar jornalistas para o terreno onde a tragédia (esta e outras) ocorre. Talvez com mais notícias, com mais imagens que atormentem as consciências, o senhor eurodeputado nunca mais possa dizer que não sabia. 

O senhor eurodeputado sabe que o Parlamento Europeu convida muitos jornalistas, sabe que as grandes empresas e as feiras internacionais convidam jornalistas, sabe tudo isso, e também deve saber que os refugiados e os que sofrem numa guerra não convidam jornalistas. Cada vez mais, onde há dinheiro há jornalistas. Por isso quase não há informação sobre o que se passa na Síria e arredores, ou no Iraque, ou na Ucrânia, ou na Líbia. O negócio, neste momento, é outro. É assim que estamos, de pernas-para-o-ar.

Pinhal Novo, 12 de Fevereiro de 2016
josé manuel rosendo

quarta-feira, 10 de fevereiro de 2016

Eutanásia? Sim!

Uma vida digna é indissociável de uma morte digna. Tenho por adquirido que um ser humano normal, sem sonhos exacerbados de riqueza material ou, no extremo oposto, de eremita completamente despojado, apenas pretende uma vida digna com felicidade quanto baste. Não é caso para dizer que um ser humano assim é um “poucochinho da vida”; talvez seja alguém que apenas quer a base indispensável para ser, em pleno, um ser humano.

Quem quer uma vida com esta base indispensável, digo eu, está disponível para aceitar a indispensabilidade da dignidade do outro. E a dignidade humana, como sabemos, está muito para além da satisfação das necessidades básicas resumidas em comida na mesa e um sítio para dormir. Não há dignidade quando se fecha os olhos à indignidade que eventualmente se nos atravesse no caminho. Não há dignidade em exigir ao outro que sofra quando a esperança de cura não existe.

Sobre o que diz ou omite a Constituição relativamente à vida como um direito inviolável, não vem ao caso. É certo que vai ser necessário legislar, mas estamos no campo da ética: os valores, normas e princípios que cada um de nós tem como certos. O respeito pelos direitos e dignidade do outro não podem deixar de ser obrigatórios neste “pacote” que a consciência individual determina.

A prova de que estamos claramente a tratar de uma matéria que ultrapassa a mera política partidária é que o manifesto recentemente publicado em defesa da morte assistida recolheu assinaturas de figuras públicas de muitas e diferentes áreas da sociedade e até do espaço partidário. Assim os partidos políticos com responsabilidade de legislar entendam que não há espaço para jogatanas de hemiciclo.

Se chegar a uma situação de grande sofrimento e sem esperança de cura, quero ter a possibilidade de decidir sobre a minha vida. Viver com dignidade abrange a última etapa: morrer com dignidade. Quem se arroga a ter o direito de me negar esse direito? Por isso considero que a dignidade não se referenda. É indispensável entre seres humanos bem-intencionados e não engajados com outros interesses a não ser com a própria dignidade. Ser digno implica não beliscar a dignidade do outro. Posso não vir a ter necessidade de recorrer à Eutanásia, ou simplesmente não querer, mas não posso recusar esse direito ao outro. 

Pinhal Novo, 10 de Fevereiro de 2016

josé manuel rosendo

terça-feira, 9 de fevereiro de 2016

A Europa à toa, o Mundo a assistir, Alepo perdeu a esperança

Agosto de 2012: rebeldes do Exército Livre da Síria, em Salma, Montanha de Jabal al Akrad, próximo de Idlib e das províncias alauítas. A zona já foi reconquistada pelas forças de Bashar al Assad.

Anuncia-se a batalha de Alepo. Devido à guerra civil, a velhinha e maior cidade da Síria, há muito que viu partir uma parcela significativa dos mais de 2 milhões de habitantes. Por estes dias, muitos milhares partiram da cidade e dos arredores em direcção à fronteira com a Turquia. É aí que estão bloqueados, com a fronteira fechada, apesar da promessa turca de não fechar portas a ninguém. Devido a esta nova vaga de gente a fugir da guerra, a Chanceler alemã foi à Turquia e deu uma conferência de imprensa ao lado do Primeiro-Ministro turco para dizer que é preciso ajuda da NATO para controlar a costa turca de onde partem os pequenos barcos com destino às ilhas gregas. Desde logo a pergunta: porquê Angela Merkel e porque não Federica Mogherini, a Alta Representante da União Europeia para a Política Externa e Segurança? Porquê envolver a NATO? E envolver a NATO no quê, e como? 

A primeira pergunta evidencia que a União Europeia continua a não ser uma união, a não ser para as questões económicas e financeiras e para manter apertadas as regras que obrigam os Estados mais pequenos e mais debilitados a cederem à vontade dos Estados mais fortes e com Economias mais robustas; a segunda pergunta pode ser respondida com a necessidade de a Turquia ter os aliados por perto não vá a Rússia fazer algum disparate. E assim estamos. Milhares de pessoas com fome e frio do outro lado da fronteira e a Turquia de portas fechadas a exigir que a União Europeia financie os campos de refugiados em solo turco de modo a que não continuem a tentar chegar à Europa.

Aliás, esta posição turca, embora num outro contexto e com contornos diferentes, faz lembrar Mohammar Kadhafi que agitava sempre a questão dos emigrantes africanos que queriam chegar à Europa para dizer que era melhor a Europa assegurar que Kadhafi continuasse Presidente da Líbia do que arriscar um outro poder político que não quisesse travar as vagas de emigrantes; posição muito semelhante foi assumida pelo actual presidente do Egipto, Abdel Fattah al Sissi. Em entrevista ao jornal El Mundo em Abril do ano passado, disse al Sissi que se o Egipto cair no caos, será um desastre na região e a Europa sofrerá danos terríveis. Acrescentou que o Egipto tem 90 milhões de habitantes.

E assim vamos andando com tudo a ficar virado do avesso.

Era altura de alguém perguntar aos que aprovaram, em Conselho Europeu, o tal plano de “recolocação” – adoro a palavra – de 160 mil refugiados, o que fizeram para aplicar esse mesmo plano. Parece que nada. Portugal, disponível para receber mais de 4 mil, recebeu 26. A Holanda recebeu 50. Aprovam-se planos e medidas, fazem-se bonitas declarações, as câmaras registam calorosos apertos de mão e depois fica tudo na mesma.

E enquanto pouco ou nada foi feito, levantaram-se muros, encerraram-se fronteiras, a Suécia anunciou a intenção de expulsar 60 mil (podem chegar aos 80 mil…) refugiados enquanto a Finlândia diz que vai expulsar 20 mil. Na Dinamarca, a vergonha ganha outra dimensão: diz a agência Lusa que o parlamento dinamarquês aprovou por 81 votos a favor e 27 contra (70 deputados não participaram na votação) uma alteração legislativa que prevê a apreensão de dinheiro acima das 10 mil coroas dinamarquesas (1.340 euros) e de bens pessoais acima da mesma quantia, exceptuando, "bens de valor sentimental" como alianças e "de natureza prática" como telemóveis ou relógios. A Euronews acrescenta que há outros países europeus com leis semelhantes. A Suíça, que não é membro da União Europeia mas integra o Espaço Schengen, começou a confiscar aos requerentes de asilo valores superiores a mil francos suíços. Na Alemanha, as autoridades da Baviera e do Bade-Vurtemberga vão confiscar aos refugiados dinheiro e objectos de valor para cobrir despesas de estadia e custos sociais. Isto é tão mau, mas mesmo tão mau, que não se descortina algum tipo de argumentação em defesa das bestas que ousaram pensar e aprovar este tipo de medidas.

Curiosamente surgiram dois sinais interessantes com origem em Portugal: O PS convidou o embaixador dinamarquês a ir ao parlamento para explicar a Lei de confiscação; o eurodeputado do PS Francisco Assis questionou a Comissão Europeia sobre a legislação dinamarquesa e alemã, perguntando como pensa a Comissão agir de modo a que Alemanha e Dinamarca repensem esta legislação “indigna”. Assis argumenta que estamos perante um tratamento que atenta contra a dignidade de seres humanos já de si traumatizados, e que, como alertou o Alto-Comissário da ONU para os refugiados, é contrário aos princípios europeus e internacionais de protecção dos direitos do homem.

Convém acrescentar que a Convenção Europeia dos Direitos do Homem, no Artigo 4º do Protocolo estabelece algo muito simples: “São proibidas as expulsões colectivas de estrangeiros”. Paralelamente a isto a jurisprudência do tribunal Europeu dos Direitos do Homem interdita as expulsões colectivas, salvo se os casos forem previamente examinados individualmente. Ainda assim a expulsão apenas será admitia se o país de origem das pessoas expulsas não representar um risco de violência sobre quem é alvo de expulsão.

Assim está a União Europeia e o Mundo. Entretanto em Alepo, na Síria, as pessoas fogem e ficam paradas frente a uma fronteira, ao frio e com fome. A porta-voz da ONU para os assuntos humanitários, Linda Tom, estima que 80% dos que estão na fronteira com a Turquia sejam crianças e mulheres. As negociações de Genebra já se percebeu como vão terminar. Em Alepo e nos arredores fecha-se a tenaz do cerco orquestrado pelas forças terrestres de Bashar al Assad (com muitos aliados) e pela força aérea da Rússia. Os que ficam na cidade dizem que “já não há esperança” e sentem-se “abandonados pelo mundo”. 


Pinhal Novo 9 de Fevereiro de 2016
josé manuel rosendo

sábado, 6 de fevereiro de 2016

“O estado a que chegámos”


A fórmula utilizada por Salgueiro Maia está gasta, mas para nossa desgraça, mantém-se actual. Na parada da Escola Prática de Cavalaria, em Santarém, Salgueiro Maia perguntou aos seus soldados quem é que estava disponível para acabar com “o estado a que chegámos”. Foi na madrugada do 25 de Abril.

Por estes dias, quase 42 anos depois da noite em que Salgueiro Maia proferiu a tal frase, a escolha parece simples: tentar mudar – mesmo que a mudança seja difícil e imperfeita – ou deixar que tudo continue a ser cada vez pior. Não há colunas militares a caminho de Lisboa, mas acho que todos conhecemos aquela lição de vida e a memória do momento em que não tentámos. Não há sensação pior.

Até agora e nos últimos anos, empobrecemos, perdemos massa cinzenta, perdemos gente com a energia da juventude sempre indispensável a qualquer país que queira futuro. Perdemos até alguma alegria de viver. Sentimos a tristeza de vermos alguns que considerávamos firmes, passarem para o outro lado ou pelo menos cederem nos princípios, rendidos a uma alegada falta de alternativa e a migalhas. A pergunta favorita do sistema fez escola: “quem é que paga?” Tudo em nome de políticas para as quais “não havia alternativa” e de um alegado pecado que consistia em vivermos “acima das nossas possibilidades”. Salvámos bancos e banqueiros enquanto estupidificámos frente a telenovelas, futebol, e comentários dos cruzados do “não há alternativa” a entrarem-nos em casa via rádio e televisão.

Dois exemplos do estado a que chegámos:

1 – Esta sexta-feira, devido à apresentação do Orçamento do Estado, uma notícia não o chegou a ser: a Autoridade para as Condições do Trabalho (ACT) inspeccionou 516 locais de trabalho. Entre outras coisas, o comunicado da acção da ACT diz isto: As irregularidades detectadas relativamente a horários de trabalho, registos do tempo de trabalho e pagamento de quantias em dívida neste domínio, designadamente trabalho suplementar e trabalho nocturno, atingiram 46% do total dos trabalhadores abrangidos, ou seja, quase sete mil trabalhadores. As acções de fiscalização focaram-se em actividades bancárias, de vigilância e em refeitórios. Ilegalidades em barda. Aposto que alguns dos responsáveis por estas situações fazem parte do clube “não há alternativa”.

2 – Depois temos o “estado a que chegámos” debaixo do guarda-chuva da legalidade. Aqui entra, por exemplo, o chamado “outsourcing”, que nunca foi outra coisa – há excepções – a não ser uma forma de contornar a lei que garante direitos a trabalhadores de uma empresa (através dos Acordos Colectivos), substituindo-os por trabalhadores, de outra empresa ou falsos profissionais liberais a recibo verde, quase sem direitos. Há casos em que os trabalhadores de uma empresa, lado a lado com trabalhadores a recibo verde, a fazerem exactamente o mesmo trabalho, são remunerados de forma substancialmente diferente, uns recebem horas extraordinárias e feriados, mas os outros não, uns têm 13º mês e outros não, uns têm subsídio de férias e férias, e outros não, e até pagam o almoço/jantar no refeitório da empresa a preços diferentes (consoante sejam trabalhadores da empresa ou “recibos verdes”). Tudo isto numa mesma empresa, e há quem ache isto normal.

São apenas dois exemplos do "estado a que chegámos”. E há quem seja contra tudo isto mas não levante a voz. Esses também têm culpa. Alguém recusa reconhecer que tem de haver alternativa?

Pinhal Novo, 6 de Fevereiro de 2016

josé manuel rosendo

terça-feira, 2 de fevereiro de 2016

Quando os “democratas” egoístas preferem ditadores no poder

Legenda da foto: “Acreditamos que o ser humano é o centro do universo e sem seres humanos não será possível alcançar o progresso em nenhum lugar do mundo. O ser humano é o mesmo e igual onde quer que ele pertença. Acreditamos na justiça dos homens”. Foto tirada na cave de um prédio em Salma, Síria, onde funcionava um hospital de campanha em território controlado pelo Free Syrian Army, Agosto de 2012.


O egoísmo dos bem instalados da vida é algo que chega a ser obsceno. Dizer que já se sabia no que ia dar a chamada Primavera Árabe e que os países envolvidos não estavam minimamente preparados para se transformarem em sociedades democráticas, é não perceber nada do que se passou – e ainda está a passar – ou então, de forma cínica, como também ouvi dizer, mas agora devolvo a ofensa, estar a perceber e ao mesmo tempo defender que é preferível alguns viverem sob ditaduras, desde que isso permita aos outros viverem descansados e instalados.

Acabo de ouvir tudo isto numa televisão portuguesa, dito sem pudor nem vergonha, e fico espantado quando este tipo de afirmações são produzidas por pessoas que reivindicam uma superioridade moral – porque, por exclusão de partes, consideram estar preparados para viver em democracia – de uma Europa supostamente evoluída, mas onde ainda há dias houve quem aprovasse leis que permitem o confisco de bens aos refugiados. Que tristeza, esta tão grande pobreza de pensamento.

E esta gente que se arroga de tão evoluída não percebeu uma coisa muito simples que esteve na génese da chamada Primavera Árabe e que foi um grande grito de revolta contra líderes déspotas que pouco ou nada fizeram pelos respectivos povos, acumulando fortunas e fazendo negócios, bons negócios, com essas potências democráticas ocidentais que nunca tiveram o mínimo pejo em negociar com eles desde que vissem as economias a crescer e os eleitores mais ou menos sossegados.

Não percebem aqueles que agora dizem que já se sabia qual iria ser o resultado da Primavera Árabe, que a democracia era a última das reivindicações dos que se revoltaram e fizeram cair ditadores. A rua árabe reivindicou a melhoria das condições sociais e económicas, reivindicou justiça e reivindicou dignidade. Aliás, a democracia é algo muito conotado com o ocidente e tem um sinal muito negativo numa fatia significativa do mundo árabe, devido a todas as memórias que o ocidente deixou na região.

Pretender que alguns vivam eternamente sob os ferrolhos de uma ditadura para que outros possam usufruir do sossego que permite os bons negócios, é de um egoísmo atroz e até obsceno, e revela que algumas fachadas muito democráticas são afinal reminiscências ferozes e bem escondidas do espírito colonial.

Pinhal Novo, 1 de Fevereiro de 2016
josé manuel rosendo