quinta-feira, 20 de outubro de 2016

Líbia, 5 anos depois de Kadhafi

Foto de um mural nas ruas de Benghazi, a 2 de Março de 2011

Cinco anos depois da morte de Kadhafi a Líbia está mergulhada no caos. E é esse caos que legitima a pergunta: valeu a pena afastar Kadhafi? Se todos temos legitimidade para fazer a pergunta, apenas os líbios têm legitimidade para responder porque são eles que estão a pagar a factura. Aliás, a pergunta mais frequente, “manter Kadhafi, ou o caos”?, é absolutamente inadequada. É como se ao povo líbio apenas pudessem ser colocadas essas duas possibilidades e não houvesse uma outra solução: a de viver em paz e com governantes decentes.

Em Março de 2011, quando Kadhafi dava sinais de insanidade, ameaçando uma carnificina quando reconquistasse Benghazi e prometendo uma perseguição (“zenga-zenga”) rua-a-rua, casa-a-casa, para caçar rebeldes, alguns países ocidentais decidiram intervir. Nicolas Sarkozy, presidente francês, foi um dos mais entusiastas. Muitos outros partilharam esse entusiasmo, embora os Estados Unidos tenham adoptado a chamada estratégia leading from behind (liderança a partir do banco de trás). Kadhafi, diziam, enlouquecera. Não andariam longe da razão. As imagens televisivas de Kadhafi a discursar na Praça Verde (nome com que Kadhafi rebaptizara a Praça dos Mártires, em Tripoli) mostravam um homem desvairado com fortes sintomas de ter “perdido o juízo”.

Os rebeldes, desorganizados, tinham dificuldades em combater as forças especiais lideradas por filhos de Kadhafi. Depois da surpresa inicial e das perdas territoriais, as tropas especiais recuperaram terreno e rapidamente ficaram às portas de Benghazi. E foi aí que a força aérea ocidental entrou em acção. Faltavam talvez 3 ou 4 quilómetros para que o primeiro tanque da coluna fiel a Kadhafi entrasse na cidade rebelde. A carcaça do tanque vítima desse primeiro ataque aéreo ficou no local durante bastante tempo. Não houve “zenga-zenga”.

Esta intervenção estrangeira teve a aprovação do Conselho de Segurança da ONU (com a abstenção da Rússia) mas a resolução aprovada não tinha uma interpretação consensual. A resolução impunha uma zona de exclusão aérea e autorizava “todas as medidas necessárias para proteger a população civil”. O problema é que ser civil também podia ser sinónimo de ser rebelde e a resolução aprovada serviu claramente para atacar as forças de Kadhafi com o argumento de que assim se pretendia impedir ataques a populações civis. Os rebeldes beneficiaram claramente desta situação. A Rússia discordou porque interpretava a resolução de forma diferente e foi esta diferente leitura da resolução para a Líbia que, depois, bloqueou no Conselho de Segurança várias resoluções sobre a Síria.

Sabemos hoje, mais de 5 anos depois do início da revolta na Líbia, como terminou o regime de Mohammar Kadhafi. O que talvez fosse importante discutir é a forma como estas intervenções estrangeiras têm lugar, sem qualquer preocupação que acautele o futuro dos países intervencionados. Poder-se-á questionar logo à partida se este tipo de intervenção tem alguma legitimidade à luz do Direito Internacional. É, de facto, uma questão para a qual não existe resposta consensual. Mas, admitindo que as intervenções acontecem – concordando-se ou não – uma outra questão se coloca: quem intervém não tem também a obrigação de proteger o país intervencionado? Desde há algum tempo que, associada às intervenções de carácter humanitário, surgiu a “responsabilidade de proteger” (RtoP ou R2P– responsibility to protect – na sigla em inglês), mas no caso da Líbia, se alguma protecção existiu enquanto Kadhafi resistiu, ela desapareceu por completo logo que Kadhafi foi morto.

De 2011 vem uma frase do presidente do Chade, Idriss Beby, que ilustra bem a situação na Líbia: “Não asseguraram o serviço pós-venda”. Barack Obama também reconheceu que foi subestimada a necessidade de uma presença ocidental no período pós-Kadhafi. Mas também é verdade que os líbios não queriam tropas estrangeiras no terreno. Disseram-no repetidamente. Recordo-me bem de estar em Benghazi no dia da primeira reunião do Conselho Nacional de Transição. O comunicado emitido e distribuído foi depois rectificado e novamente distribuído porque não explicitava essa recusa de tropas estrangeiras no terreno.

Os líbios ficaram como queriam, sem potências estrangeiras a interferir no terreno. Não houve boots on the ground mas houve muitas armas que atravessaram a fronteira. Nos dois sentidos. A Líbia está partida. Dois governos, dois parlamentos, senhores da guerra, Estado Islâmico com uma forte presença, futuro absolutamente incerto.

Mohammar Kadhafi, ora acusado de terrorista ora recebido com pompa nos palácios ocidentais, foi morto nas proximidades da cidade de Sirte a 20 de Outubro de 2011, não muito longe do local onde nasceu, quando tentava fugir do cerco à cidade. Foi apanhado por rebeldes, escondido numa conduta. Depois de Kadhafi fugir de Tripoli, em Agosto, os rebeldes sempre disseram que só descansariam quando o apanhassem, vivo ou morto. Há muitas versões sobre a morte de Kadhafi que responsabilizam diferentes actores. Uma dessas versões é a de que terá sido morto pela sua própria pistola em dourada. Terá sido um jovem rebelde a dar o tiro fatal. Terá sido, porque uma reportagem da BBC em Fevereiro deste ano, descobriu em Misrata a arma de Kadhafi e o jovem (então com 17 anos) que foi fotografado com ela enquanto era levado aos ombros no momento em que Kadhafi foi capturado e morto. O jovem nega ter sido o autor do disparo fatal.

Na perspectiva de quem apenas quer viver em paz, com justiça e liberdade, tudo correu mal na Líbia. Depois do ditador – é bom não esquecer que Mohammar Kadhafi esteve mais de 40 anos no poder e conquistou-o através de um golpe de estado, em 1969, que afastou o Rei Idris – os líbios demoram a encontrar o caminho. Seria bom, pelo menos, que o mau exemplo líbio fosse tido em conta, mas se pensarmos em Mossul, no Iraque, não é isso que está a acontecer. Já foi assim com Saddam – afastado sem que, quem o afastou, tivesse sequer noção de como ia ser o day after – e vai ser assim no combate ao Estado Islâmico em Mossul: não há nenhum plano para o dia seguinte. Pode vir a ser mais uma zona de caos.

Pinhal Novo, 20 de Outubro de 2016
josé manuel rosendo


terça-feira, 18 de outubro de 2016

Mossul, todos a querem. A que preço, não importa…

Esta foto foi tirada há um ano, em Bashika, onde a Turquia tem uma base militar para formação de forças curdas e sunitas. Daqui partem os Peshmerga curdos que estão a combater o Estado Islâmico. Mossul fica a uma dezena de quilómetros.

Sem nenhuma dúvida, as noites em Mossul são mal dormidas. Por esta hora, acredito, ninguém quererá fazer a (adaptada) pergunta: Mossul já está a arder? A pergunta, a original, terá sido feita por Adolf Hitler já em fase de desespero, quando os aliados entraram em Paris e os nazis perdiam batalhas sucessivas. Paris não chegou a arder. Não consta que o Estado Islâmico prefira ver Mossul arder devido à iminência de uma derrota militar face ao ataque iniciado esta segunda-feira, mas desta vez, e ao contrário de Paris, quem parece disposto a incendiar Mossul são os que atacam a cidade.

Em Dezembro do ano passado, regressado da região, fiz a pergunta (E depois do Estado Islâmico?) http://meumundominhaaldeia.blogspot.pt/2015/12/e-depois-do-estado-islamico.html e disseram-me que estava com pressa. Não estava. A questão era (é) mesmo essa, porque eu bem ouvi o que os curdos iraquianos diziam. Quem considerava que eu estava com pressa dizia-me então que primeiro era preciso derrotar o Estado Islâmico e depois logo se via. Errado. Mossul não é Faluja, nem Ramadi. Conquistar Mossul ao Estado Islâmico e manter a cidade sem criar um novo foco de guerra exige um plano para o pós Estado Islâmico. Um plano que seja do agrado de todos os que estão envolvidos neste ataque a Mossul. O problema é que são muitos os interesses e um plano assim parece impossível. Quem ataca a cidade converge na necessidade de tirar Mossul das mãos do Estado islâmico, mas diverge em tudo o resto. E basta estar atento às mais recentes declarações para se perceber que não há plano nenhum.

Depois de uma primeira ofensiva falhada no início da Primavera, desta vez parece que é para levar até ao fim. Forças do governo de Bagdad, milícias xiitas (Unidades de Mobilização Popular), milícias de tribos sunitas, milícias iranianas, milícias do Hezbollah, Peshmerga curdos, forças fiéis ao antigo governador de Mossul, norte-americanos e turcos no terreno, e ataques aéreos da coligação internacional. Não muito longe andam os guerrilheiros do PKK e das Unidades de Protecção Popular (sírias), bem como milícias Yazidis. A lista, certamente, não é completa, mas suficiente para se perceber como vai ser difícil decidir quem fica a controlar Mossul.

Não se sabe ao certo quantos habitantes tem a cidade (a ONU refere 1,5 milhões) nem quantos são os combatentes do Estado Islâmico. Mas a coisa pode correr muito mal. Um coordenador da ONU para os Direitos Humanos já alertou: “não acusem os civis de Mossul de pertencerem ao Estado Islâmico, e que não haja execuções sumárias, nem de civis nem de membros do Estado Islâmico”. O tom do aviso deixa claro o que pode acontecer. Ainda a ONU alerta para uma nova vaga de refugiados e faz saber do perigo de os habitantes ficarem encurralados no fogo cruzado, podendo ser vítimas de franco-atiradores ou serem utilizados como escudos-humanos. A ONG Save the Children alerta para mais de meio milhão de crianças em risco.

Alguns analistas consideram que nesta batalha joga-se o futuro do Iraque enquanto país com as actuais fronteiras. O governo do Iraque joga também o tudo ou nada, devido às sucessivas crises políticas mas, mesmo derrotando o Estado Islâmico, pode vir a revelar-se incapaz de gerir a situação futura, que pode degenerar numa efectiva desintegração do país.
Antes do ataque, aviões iraquianos lançaram panfletos na cidade aconselhando a população a ficar em casa e prometendo não atacar alvos civis, mas é impossível prever a evolução da batalha e a reacção da população.

As próximas horas vão fornecer indicadores mas as mais recentes declarações são um sinal claro do caldeirão em que Mossul pode ser transformada. Moqtada al Sadr, poderoso clérigo xiita que liderou o exército de Mahdi no combate à ocupação norte-americana, disse que a batalha de Mossul é uma guerra entre o governo de Bagdad e os terroristas e que o Iraque deve recusar o apoio turco em nome da soberania iraquiana; o Presidente turco, Erdogan, disse que “está fora de questão a Turquia ficar fora da ‘operação Mossul’” acrescentando que a Turquia estará na operação militar e também na (futura) mesa de negociações; o parlamento iraquiano já votou uma moção em que considera a presença turca como “ocupação” e violação de soberania”. Sendo a maioria da população de Mossul de origem sunita, não se sabe como vai reagir à entrada de milícias e tropas xiitas. O antigo governador de Mossul – aliás, acusado de ser o responsável pela queda de Mossul às mãos do estado Islâmico em 2014 – lidera uma milícia fiel, que é apoiada pela Turquia e propõe-se ser mediador entre as forças xiitas e os habitantes da cidade. Também a ter em conta que é a primeira vez que Peshmerga curdos e forças de Bagdad combatem lado-a-lado numa operação militar. Os curdos dizem que não têm interesses em Mossul mas vão ocupando algumas zonas que foram conquistando ao Estado islâmico. Em termos de declarações mais recentes, a cereja no topo do bolo veio de Moscovo, com a Rússia – acusada de crimes de guerra na Síria - a dizer que espera que a coligação internacional no Iraque tenha uma acção com precisão que evite vítimas civis.

Várias fontes referem 30 mil homens no ataque a Mossul, que estará defendida por cerca de 4 a 8 mil combatentes do Estado Islâmico. Não se sabe onde está o “califa” Abu Bakr al Bagdadi; não se sabe como será possível distinguir entre combatentes e civis (numa cidade com mais de um milhão de habitantes). É impossível prever o tempo que esta operação vai demorar mas alguns analistas apontam para um final de batalha em zona urbana, rua a rua, casa a casa. Mossul ainda não está a arder, mas são muitas as colunas de fumo negro e a dimensão do que está em jogo é de tal ordem que se alguém temer o pior não pode ser acusado de pessimismo.

Pinhal Novo, 18 de Outubro de 2016

josé manuel rosendo

segunda-feira, 10 de outubro de 2016

A balda dos táxis num país de “uber's" à balda


A foto que ilustra este texto foi feita por mim, em Abril de 2015. Chegado à estação de Campanhã, no Porto, entrei no primeiro táxi da fila – tem de ser assim - e, já lá dentro, deparo-me com este cenário: um pára-brisas estilhaçado! O táxi era velho e revelho, as mudanças entravam a “pontapé” e o motorista, coitado, muito mais velho do que o táxi, já merecia estar a gozar a reforma. Se juntarmos a este exemplo a manifestação/protesto desta segunda-feira (10 de Outubro) e as imagens de verdadeiros arruaceiros que os taxistas transmitiram ao país, podemos dizer que o sector está a precisar de uma enorme reciclagem. Isto para dizer que apesar deste mau serviço e destes maus exemplos considero que o que estão a fazer aos taxistas – aos profissionais dignos – é uma verdadeira “filha da putice”.

Num Estado de Direito Democrático (EDM) não parece defensável pretender manter uma actividade económica sem que esteja regulamentada (uber e cabify); num EDM não parece defensável ter regras diferentes para vários agentes económicos que concorrem na mesma área de negócio; num EDM alguém que inicie uma actividade económica sem enquadramento legal deve ser devidamente punido.

O que está em causa (táxis versus uber/cabify) não são novas tecnologias – as tais plataformas; não está em causa um novo serviço; ninguém descobriu a pólvora. O que está em causa é que uns quantos xico-espertos descobriram uma brecha na legislação - e tiveram cobertura política para crescer e apresentarem-se agora com um facto consumado - que tentam explorar, e consideram-se “muito à frente”; o que está também em causa são empresas de táxis que pararam no tempo e quiseram, num determinado momento, reduzir custos à conta de biscateiros mal preparados que não têm nenhum tipo de preocupação com o futuro da actividade a não ser receber o trabalho feito durante algumas horas depois do turno de trabalho normal na empresa onde realmente trabalham (todos conhecemos alguém que após um horário normal de trabalho entra(va) num táxi para fazer umas horas e aconchegar o orçamento); o que está em causa é taxistas sem brio profissional (sim, sem brio profissional: alguns são mal educados, alguns cheiram mal, usam camisas surradas, fumam dentro dos táxis): E que as empresas de táxis não venham acusar a uber de utilizar trabalho precário – o que é verdade – porque fazem (ou pelo menos já fizeram) o mesmo. Evidentemente que também há bons profissionais, mas tudo o que atrás foi referido contribuiu para a degradação do serviço.

A desregulamentação é a menina dos olhos dos neoliberais. No caso da uber e da cabify, beneficiaram de um momento em que Portugal tinha o Governo que todos sabemos; seria um bom sinal do actual Governo combater a desregulamentação neste sector e seria um sinal de afastamento de práticas e filosofias anteriores.

Melhores serviços todos queremos, mas entrar no facilitismo de admitir a desregulamentação das actividades económicas só porque, num determinado momento, há um ganho imediato da qualidade desse serviço, é abrir a porta a uma sociedade sem regras, ao trabalho à jorna, à selva. Quem agora pensa que ganha alguma coisa com essa desregulamentação não vai demorar muito a perceber que as perdas são muito maiores a médio-longo prazo. Hoje é o sector do serviço de transporte de passageiros em veículos ligeiros, ontem já foi assim com outros sectores, amanhã será ainda com outros. O lucro desta desregulamentação nunca beneficia quem trabalha ou quem utiliza os serviços. Nunca beneficia a Sociedade no seu conjunto.

No caso de que estamos a falar, tanto se me dá que lhe chamem uber, táxi ou cabify. Gostaria de ter um serviço que me transportasse num carro limpo, de preferência com poucos anos de uso e com um motorista educado que não reclamasse quando a corrida é pequena, quando não recebe o pagamento em dinheiro trocado ou quando não recebe a esperada gorjeta. E esse serviço terá de ser regulamentado, para defesa dos profissionais e dos cidadãos que utilizam o serviço. E já agora, também é bom que se diga que os motoristas da uber/cabify nunca fazem porventura o mesmo tipo de reclamações porque podem recusar os serviços que não lhes interessam. Os taxistas não o podem fazer.

Pinhal Novo, 10 de Outubro de 2016

josé manuel rosendo