segunda-feira, 26 de março de 2018

O que vai dizer o Ocidente sobre as eleições presidenciais no Egipto?


No momento em que termino este texto faltam poucas horas para os egípcios começarem a votar nas eleições presidenciais: 26, 27 e 28 de Março, são os dias da primeira volta – sendo certo que não haverá segunda. São eleições onde não há lugar para a surpresa: Abdel Fatah al Sissi é o vencedor anunciado. Al Sissi não é o único candidato, mas o seu único adversário (Moussa Mostafa Moussa) é, simultaneamente, seu fervoroso apoiante, tendo feito campanha por al Sissi até apresentar a própria candidatura no último minuto do prazo.

Todos os outros putativos candidatos foram presos ou “desencorajados” com destaque para o General Sami Anan, antigo chefe do Estado-Maior, que foi preso poucas horas depois de anunciar a intenção de se candidatar, sob acusação de ter violado a Lei militar; Ahmed Shafiq foi levado para um hotel, quando regressou do exílio nos Emirados Árabes, e lá ficou até declarar que retirava a candidatura; Mohammed Anwar Sadat, sobrinho do antigo Presidente Anwar al Sadat, desistiu; Abdel Aboul Fotouh, antigo membro da Irmandade Muçulmana, foi preso. A Irmandade Muçulmana está desarticulada e os militantes liberais ou de esquerda estão presos ou calados com medo. Quanto a candidatos é isto.

O actual homem-forte do Egipto, Abdel Fatah al Sissi liderou o golpe militar que afastou Mohammed Morsi, o primeiro civil eleito democraticamente – democraticamente, de facto, com vários candidatos e até com uma segunda volta em que derrotou Ahmed Shafiq, o último Primeiro-Ministro de Hosni Moubarak – e depois venceu as presidenciais de 2014 com 96,9% dos votos. A votação por estes dias não deverá ser diferente e todos sabemos o que significam resultados deste género.

Os egípcios enfrentam uma forte crise económica e apesar de muitos falarem em recuperação, a tormenta continua com quase 30 milhões de pessoas na pobreza e números de desemprego impressionantes. Quatro anos após a Irmandade Muçulmana ter sido afastada do poder, o Egipto recebeu (em 2017) 8,3 milhões de turistas, quando em 2010 (ainda com Hosni Moubarak) tinha recebido 14,7 milhões.

A alegada segurança de que Al Sissi é o guardião no Egipto parece ser o valor maior para um Ocidente que recusa olhar para a tenebrosa situação em matéria de direitos humanos. “Há uma repressão sem precedentes e muito pior do que no tempo de Moubarak. Assemelha-se à situação na Síria com Hafez al Assad (pai de Bashar al Assad), diz Amr Magdi, investigador da Human Rights Watch para o Médio Oriente.

Na sequência do golpe militar que derrubou Mohammed Morsi, a Irmandade Muçulmana foi considerada “organização terrorista” e centenas de apoiantes foram condenados à morte ou a prisão perpétua, entre eles o próprio Mohammed Morsi e também o guia espiritual Mohammed Badie. Algumas destas penas foram, entretanto, revistas. Muitos dos que participaram na revolta que derrubou Hosni Moubarak estão também atrás das grades com penas de prisão perpétua; as Organizações Não Governamentais trabalham sob controlo apertadíssimo; os órgãos de informação estão mais do que controlados, há centenas de páginas de Internet bloqueadas e o Egipto está em 161º lugar entre 180 países na classificação dos Repórteres sem Fronteiras.

Al Sissi foi à televisão deixar um aviso claro aos jornalistas: qualquer “insulto” ao exército ou à polícia será considerado difamação do país e alta traição.

O Egipto continua a receber uma enorme ajuda militar dos Estados Unidos e, em 2015, acertou com a França a compra de aviões caça por 6 mil milhões de Euros. Tal como Kadhafi ameaçou com a abertura de fronteiras para deixar passar africanos que pretendiam chegar à Europa, al Sissi também disse que se o Egipto não controlar as fronteiras quem vai sofrer é a Europa. O aviso é simples: ou Al Sissi continua no poder ou o Egipto mergulha no caos e a Europa paga a factura.

Al Sissi tem sido recebido por vários líderes ocidentais, e também os tem recebido no Cairo. Já vimos este “filme” com outros líderes (basta lembrar Kadhafi) que caíram em desgraça. Sabemos como vai acabar.

Por agora, Al Sissi terá o apoio genuíno de grande parte do aparelho do exército e das forças de segurança, precisamente aqueles que apoiavam Moubarak. Terá também o apoio dos cristãos coptas, embora nem todos. Tal como como os Assad ou até Saddam Husseín, Al Sissi joga a cartada de uma alegada protecção das minorias religiosas. E, certamente, terá o apoio dos que privilegiam a segurança aceitando fechar os olhos aos atropelos a direitos fundamentais e submetendo-se ao silêncio perante um todo poderoso poder político.

Recordo-me de estar no Cairo em plena revolta, com Hosni Moubarak, teimoso, ainda agarrado ao poder. As ruas e a Praça Tahrir fervilhavam com gritos de “o povo quer a queda do Raïs”, mas a televisão do Estado mostrava, certamente com imagens gravadas, as margens nocturnas de um Nilo em noites tranquilas onde nada acontecia.

Tal como em relação ao Rio Nilo sabemos onde é a foz mas não temos certezas quanto ao local da nascente, também sabemos qual vai ser o resultado das eleições presidenciais, embora ainda se discuta a verdadeira origem da revolta que derrubou Hosni Moubarak e criou condições para a ascensão de Abdel Fatah al Sissi. O Nilo continua a correr e Al Sissi vai continuar no poder.

Pinhal Novo, 26 de Março de 2018
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josé manuel rosendo

quinta-feira, 22 de março de 2018

"Não se resolvem os problemas do Mundo sem uma solução justa para a Palestina"

Entrevista ao Grande Imã da Mesquita de Al Azhar, Ahmed Al Tayyeb, por ocasião dos 50 anos da Comunidade Islâmica em Portugal.

Pergunta - O poeta português, Fernando Pessoa,escreveu que os portugueses têm uma grande tradição árabe de tolerância e que isso torna os portugueses diferentes. Pensa que Portugal é o guardião do espírito árabe na Europa?


Resposta - Em nome de Deus o Misericordioso, em primeiro lugar quero agradecer ao Estado português, ao senhor Presidente da República e ao povo português, a boa e calorosa recepção que tive em Portugal. 

Quanto à sua pergunta, desde o momento que cheguei a Portugal senti que o povo português é muito aberto, um povo que é um exemplo único de tolerância e de respeito pelos outros. Quando me refiro aos outros são aos que não são portugueses. Dentro da cultura portuguesa há aspectos muito positivos e um deles é a tolerância.
Em muitos países que já visitei e já celebrei cerimónias, e estive em conferências sobre a tolerância não vi nada como em Portugal. Portugal é um caso único. É uma experiência que é um exemplo e espero que se estenda aos outros países europeus, no sentido da tolerância, da convivência e da coerência. Este povo nunca tem medo de dizer que as outras culturas também estão relacionadas com a cultura portuguesa.

P - Na conferência que deu na Universidade Católica, o senhor falou muito de ética, foi crítico em relação ao Ocidente - disse que permanece o individualismo - e que o coração bate ao ritmo das bolsas de valores. A Religião é algo que o Homem não pode dispensar?

R - Acredito que o homem não pode ser homem se não for guiado pela religião, no sentido da ética da religião. A religião é o único caminho certo. Quais são as outras alternativas? São o avanço técnico, económico e científico. Estas questões sofrem alterações diárias, não são aspectos imutáveis. Cada avanço é diferente do outro. Por exemplo: o interesse de um país pode colidir com o interesse de outro país. Estas equações mudam constantemente e se deixarmos a Religião de fora, estas contradições e estes aspectos que estão em oposição levam a humanidade para um caminho de conflito e de tensão. Por isso a Religião é uma necessidade para a convivência, para as pessoas saberem o que devem e não devem fazer. Por vezes, estes avanços técnicos e económicos assentam na morte, em cascatas de sangue. Estamos a ver o comércio de armas a espalhar o caos em todo o mundo. Já vimos países destruídos, refugiados, já vimos muito sangue por causa do negócio das armas. Os media transmitem esta realidade todos os dias e não vale a pena dar exemplos. 

P - Já o ouvi a dizer que as actuais guerras no Médio Oriente não são guerras religiosas. O que é que sentiu quando ouviu Abu Bakr al Bagdhadi a declarar o Califado na Mesquita de Mossul?

R - Quando assisti a isso senti que estava perante um homem mentiroso, que mente sobre o Islão, que mente aos muçulmanos. Está rodeado por uma força que trabalha para causar mais cascatas de sangue, mais massacres na região. Através destes massacres eles colhem benefícios. Querem dar a entender ao Mundo que o Islão é uma religião de morte, de caos, de bárbaros, uma religião de sangue. Esta visão provocou a islamofobia no Mundo Ocidental. Esta islamofobia foi criada precisamente para beneficiar alguns interesses internacionais. Isto nunca aconteceu no Islão, nunca aconteceu no Cristianismo e nunca aconteceu no judaísmo. Algumas pessoas religiosas sequestraram a religião, apoderaram-se da religião e utilizaram-na para conseguir objectivos de guerra e pessoais.

A razão das cruzadas foi expulsar os infiéis (neste sentido eram os muçulmanos) da Terra Santa e do lugar onde Jesus foi sepultado. O Clero ocidental apoiava as cruzadas. Penso que qualquer religião não permite matar, nem permite derramar uma simples gota de sangue, a não ser em legítima defesa.
No Islão e nas outras religiões o Homem está no lugar mais alto. E tem o direito de ter paz. Muitas guerras foram feitas com os homens religiosos, como o clero, mas a Religião não tem nada a ver com isso. 

No Islão também não se pode derramar sangue de um animal. No Islão, o Mundo... o Cosmos, é visto como um ser vivo. Por isso temos que proteger este Mundo e foi esse o conselho do profeta aos seus líderes. Quando se trata de uma guerra para defender, não se pode matar mulheres, crianças, velhos, pessoas doentes ou que trabalhem nos campos. Não se pode matar pessoas religiosas cristãs nos mosteiros. Até um animal apenas pode ser morto pela necessidade de alimentos e não matar apenas por matar. Além disso, esta ideia estende-se às plantas: apenas se deve cortar uma árvore se for de facto necessário. Todas as criaturas são protegidas e os muçulmanos, nas guerras, têm de proteger estas pessoas, não se trata apenas de não matar e não agredir, é preciso também defender. O Islão proíbe a agressão. 

P - Os países em guerra no Médio Oriente passaram pela chamada Primavera Árabe. Já disse que nas guerras existem outro tipo de interesses, de potências estrangeiras, ocidentais. Considera que as revoltas iniciais foram genuínas e depois infiltradas por interesses ocidentais ou foram desde o início os poderes ocidentais que estiveram na origem destas revoltas nos países árabes?

R - Desde o início que houve uma intervenção externa. O que aconteceu tinha a intenção de acabar com a estabilidade social. Foi um momento muito complicado, algo caótico, houve muitas manifestações ridículas. 
Eu já estava em Al Azhar e assisti a esse tempo difícil. Se fosse apenas uma revolução interna, que surgisse do interior do país nunca deixaria o país destruído. Nunca deixaria o país no caos. Quando olhamos a cronologia dos eventos daquilo a que chamaram a Primavera Árabe, foi uma maneira de levar os países para o caos.

Temos o exemplo da Líbia que foi destruída em horas. Não foi destruída em dias, foi destruída em horas e ainda hoje está destruída. Não podemos chamar a isto uma revolução.
Temos o exemplo da Síria: está submersa em sangue e até agora a situação está muito complica e por isso não podemos chamar a isto uma revolução.
O Iraque... Outro exemplo muito importante. Sabemos como foi destruído. Destruíram centros culturais, acabaram com o exército iraquiano, que foi dissolvido. Sabemos que o Iraque tem diferentes crenças dentro do país e vive sob tensão. Imaginemos como um país com esta dimensão pode viver sem exército.
Não lhe chamo Primavera Árabe. Esse conceito foi inventado para sensibilizar os jovens, para mexer com os seus sentimentos.

Nós não somos como a França e a revolução francesa. Conhecemos as lutas e as mortes que aconteceram. Não temos essa ideia, nunca vamos ficar separados, a lutar entre nós, a matar-nos. 

P - O Egipto também viveu a chamada Primavera Árabe, mas escapou à guerra. (O antigo presidente) Moubarak foi afastado, Mohammed Morsi (eleito após a revolta) foi afastado, e os militares estão de regresso ao poder com (Abdel Fatah) Al Sissi. O Egipto está no bom caminho?

R - Não falo como um homem político, falo como um cidadão árabe que conhece o sentir das pessoas. O Egipto escapou à ideia de destruição que vem de fora. Se os outros países conseguirem perceber como os egípcios perceberam, vão acordar, e também vão escapar como os egípcios conseguiram escapar.

P - Posso concluir que o Egipto está no bom caminho?

R - Sim, estamos no caminho certo. Estamos a fazer este caminho com passos muito firmes, sublinho passos muito firmes. Estamos a atingir a nossa meta.

P - Tenho duas frases sobre as quais gostaria de ouvir a sua opinião. A primeira é "O Islão é a solução"; a segunda: "No Islão tudo é política". Revê-se em alguma destas frases?

R - Perguntou no início se a Religião é a solução. A ética da Religião, não apenas do Islão, mas também cristianismo e judaísmo, tem aspectos semelhantes, coisas em comum, e são essas coisas em comum que são a solução. Não é apenas o Islão. São todas as religiões em comum, tudo o que é a ética da Religião.
Quero dizer também que a prova disso é quando os muçulmanos conquistaram países, e ao serem recebidos p'los nativos desses países nunca lhes disseram que o Islão era a solução. Ao contrário, sempre disseram a esses nativos que, se eram cristãos podiam continuar cristãos e podiam rezar, poderiam praticar a religião publicamente e os muçulmanos eram a garantia de que os povos se conseguiam sentir livres. Quando os muçulmanos chegaram a esses países protegeram os mosteiros e as igrejas, nunca destruíram. O papel dos muçulmanos era dar essa garantia. Por isso não podemos dizer que o Islão é a solução. Ainda hoje existem muitos países em que os muçulmanos, quando lá chegaram, casaram com cristãos. 

P - E podemos dizer que "no Islão tudo é política"?

R - No Islão não é tudo política. O Islão orienta a política, mas não é tudo política. Orienta a política no sentido de facilitar a vida das pessoas, facilitar a vida dos povos. Tudo o que é trabalhar para o bem da humanidade é política do Islão, mas temos outro tipo de política como por exemplo a de países que querem ficar ricos à custa de outros países ou à custa do conflito. O Islão não vive desta política. O Islão quando surgiu foi para orientar as pessoas, por isso não podemos dizer que no Islão tudo é política.

P - Sobre Jerusalém... Os Estados Unidos declararam Jerusalém como capital de Israel. Gostaria de saber se (por causa disso) recusou, de facto, receber o Vice-presidente norte-americano, Mike Pence, e gostaria de saber o que é que o Grande Imã de Al Azhar tem a dizer aos muçulmanos relativamente a esta questão. O que é que eles devem fazer, que atitude devem tomar?

R - Sim, nós recusamos, enquanto muçulmanos, este tipo de comportamento perante os nosso lugares sagrados. Lugares sagrados muçulmanos, cristãos e também judeus. 
Sim, recusei encontrar-me no momento com o vice-presidente norte-americano. Antes disso eles aceitaram o convite, mas passado algum tempo anunciaram a mudança da embaixada dos Estados Unidos para Jerusalém e portanto recusei encontrar-me com ele. É esse o meu dever perante a minha pátria e perante os lugares sagrados. Ninguém me pode culpar por esta atitude, ou será que querem pedir-me para me deixar humilhar e fazer que não vejo? Nem eu nem Al Azhar fazemos isso.

Faço-lhe uma pergunta: Imagine que chegamos hoje a Portugal e que dizemos que esta foi a nossa terra, estivemos cá durante séculos e séculos, temos a prova de que estivemos aqui e agora vamos aqui fazer um Estado muçulmano, vamos fazer o que quisermos... O que é que vai sentir? O que é que vai sentir quando dissermos que temos aqui origens e vamos fazer aqui um Estado? Claro que vai dizer que somos malucos.
Outro aspecto: a cidade de Jerusalém sempre foi habitada pelos árabes. 5 mil anos antes do Islão, chegou uma tribo árabe do Iémen e habitou a zona. Foi antes de Abraão. Sempre passaram muitos colonizadores e conquistadores por esta região que foi mudando sucessivamente de mãos. O período do governo de Israel, estamos a falar do tempo de David, foi um curto período de tempo, não se compara com o período de outras potências que também ocuparam a região. Se vamos falar assim, há outros países que também podem reclamar direitos sobre Jerusalém porque passaram muito mais anos na região do que os próprios israelitas.

Nos últimos tempos, não sei se reparou que os dois exércitos mais fortes desta zona foram destruídos, nomeadamente o exército iraquiano e o exército sírio. 
O exército egípcio, graças a Deus, salvou-se. Por que é que os outros dois exércitos foram destruídos? Porque estes dois exércitos estavam próximo deste corpo ("estrutura" foi a palavra utilizada em árabe, pelo Grande Imã, para se referir a Israel) que tem de ser protegido e assim estes dois exércitos tinham de desaparecer. Foi para a estrutura (o Estado de Israel) sobreviver. Por isso foram elminados estes dois exércitos. Vi ultimamente com muita tristeza as potências ocidentais apelarem à Rússia para parar de matar pessoas nesta região e que devia acabar com os bombardeamentos. Esta é a prova nais clara do que estes países estão a fazer na nossa zona... Os cordelinhos que andam a mexer. Ficou muito claro

 P - A minha pergunta concreta era: o que é que os muçulmanos devem fazer em relação a Jerusalém?

R - Pode acreditar ou não, mas os problemas do Mundo, não apenas do Médio Oriente, não são resolvidos sem haver uma solução justa para Palestina.

Quero lembrar à União Europeia e aos homens com poder, nomeadamente nos Estados Unidos e na Rússia, que têm de fazer o trabalho deles... Têm de exercer pressão, têm de resolver este problema. O que é que os países árabes e os povos muçulmanos podem fazer? Não podemos fazer nada. 

O Mundo tem de assumir a sua responsabilidade.

Pinhal Novo, 22 de Março de 2018
josé manuel rosendo

domingo, 4 de março de 2018

Camaradas “invisíveis”


Bashiqa, Curdistão iraquiano, Novembro de 2016.
No topo de um monte, no meio do nada, onde o meu
fixer sabia que era possível aceder à Internet.
    
“Temos de ir para...” Tantas vezes esta frase que eu adoro ouvir. Se não a dizem, pergunto: “Então, não vamos...?”. Nem sempre gosto da resposta. O repórter quer sempre partir. Alguns telefonemas, emails, contactos, contexto, protagonistas, desenvolvimentos mais recentes, bilhetes de avião, dinheiro, equipamento... mal damos por isso estamos no meio de um turbilhão. Geralmente não dominamos a língua, e os conflitos ganharam uma complexidade que torna difícil distinguir as forças no terreno. É neste momento que precisamos de um “fixer”. E, por uma vez que seja, falemos deles.

Não conheço uma palavra na Língua Portuguesa que possa ser usada para uma tradução directa. O fixer, mais do que intérprete e guia, é aquele que, conhecendo o terreno, os protagonistas e a cultura, encontra os meios que nos permitem movimentar e aceder àqueles com quem queremos falar; sugere caminhos, antecipa o perigo e sabe dizer não, quando o stress do jornalista empurra para perigos desnecessários; nunca perde o jornalista de vista; providencia um arroz com feijão quando as horas de fome já parecem inevitáveis; encontra no mercado negro o combustível pouco falsificado que não deixe o carro parado a meio da viagem; conhece um local onde há rede de Internet ou energia eléctrica para carregar baterias; antecipa as escapatórias em caso das situações se complicarem em demasia; faz o que é preciso fazer em locais onde tudo parece impossível. Um fixer constrói pontes entre culturas, estabelece a confiança com agentes locais e consegue mediar soluções. Por vezes, não poucas vezes, o fixer partilha a responsabilidade da decisão que é preciso tomar.

Só assim as reportagens são concretizadas, mas eles nunca assinam o trabalho dos jornalistas. Permanecem anónimos e invisíveis. Algumas vezes porque assim querem, na maioria das vezes porque simplesmente não fazem parte da “ficha técnica”. Inevitavelmente, mesmo com esse anonimato, sofrem uma exposição local que, não raramente, significa risco de vida, para eles e para as famílias.
Fazem-se pagar por isso? Fazem! A economia de guerra implanta-se rapidamente nos locais de conflito e é frequente, no meu caso, receberem muito mais do que eu. Não tem discussão.

Já lhes chamaram “anjos da guarda” dos jornalistas. E são mesmo. Damos por isso de uma forma muito óbvia no dia em que, ajoelhados no chão, lado a lado, nos sussurram ao ouvido: não olhes! À nossa frente ouvimos o som inconfundível de um homem a puxar a culatra da Kalashnikov. O “anjo da guarda” repete baixinho: não olhes! Depois de alguns segundos de silêncio, ouvimos então os passos do homem que se vai embora. O meu fixer repetiu baixinho, quase em registo de súplica: não olhes! Não olhei.

Tenho tido a sorte durante as minhas reportagens de me ter cruzado com gente boa. Na sua grande maioria, se for necessário e se ainda estiverem disponíveis, não hesitarão em trabalhar comigo, da mesma forma que eu terei a certeza de que, com eles, o trabalho só não será feito se for de todo impossível.

NOTA: os nomes dos fixers que comigo têm trabalhado são omitidos por razões óbvias, mas a minha gratidão é eterna.

Artigo publicado no Courrier International edição de Março de 2018

Pinhal Novo, Março de 2018
José Manuel Rosendo