quarta-feira, 10 de outubro de 2018

O primeiro português a saber do Nobel para Saramago

Foto do facebook de Fernando José Rodrigues (o segundo português a saber do Nobel para Saramago), que disse desconhecer o autor mas disse que a foto é pertença de todos os que nela estão. Amadeu Batel é o segundo, em baixo a contar da esquerda; Fernando José Rodrigues é o último à direita na fila de cima

Amadeu Batel vive na Suécia há 55 anos. Saiu de Portugal para fugir da ditadura fascista e pela Suécia ficou a dar aulas de língua portuguesa. Um dia teve uma surpresa: a Academia contactou-o para tratar de um assunto urgente e esse assunto era o Nobel da Literatura para José Saramago. Amadeu era amigo de Saramago. Felicidade em dose dupla. A história já foi contada, mas Amadeu batel acedeu a recordar esses dias do Nobel.


Pergunta – Uma semana antes de ser revelado o Nobel atribuído a José Saramago a Academia Sueca telefonou para sua casa a pedir-lhe que fosse à Academia com urgência. Foi assim?

Resposta – Não uma semana antes, mas quase. Seis dias antes, numa sexta-feira, fui contactado pelo secretariado da Academia para, com urgência, fazer uma visita ao secretariado porque tinham algo para me revelar em relação ao Prémio Nobel.

P – Lembra-se do que lhe disseram?

R – Na altura, quando entrei, fui convidado a sentar-me até à chegada do secretário. Depois pediu para eu passar para um salão da Academia e então perguntou-me se eu sabia o motivo de ter sido convocado para a reunião. Eu, incrédulo, disse-lhe que não. Naturalmente que no trajecto para a Academia já tinha pensado que só poderia ser pela atribuição do Nobel. Na altura tínhamos os dois nobilizáveis quer eram o Lobo Antunes e o Saramago. Entretanto adiantou-me que no dia anterior, na quinta-feira 1 de Outubro, a Academia tinha reunido e, de forma consensual, tinha decidido atribuir o Prémio Nobel a um escritor português. Passou algum tempo, ele não me disse quem tinha sido, fiquei na expectativa e a determinado momento ele proferiu as palavras mágicas e disse que era para José Saramago. Foi uma alegria incalculável, difícil de descrever. Teria também ficado satisfeito se fosse atribuído ao Lobo Antunes.

P – Durante esse caminho para a Academia, em que sabia que havia dois escritores portugueses que poderiam ser galardoados, já tinha algum palpite qual deles seria?

R – Palpite… palpite… era mais devido a uma relação… não só à minha preferência pela generalidade da arte romanesca de Saramago, mas mais sobretudo pela amizade que tinha a um amigo e camarada. Mas também tinha algum receio, não no sentido de não ficar satisfeito, mas porque Lobo Antunes tinha estado aqui na Suécia várias vezes e tinha obtido o apoio de alguma crítica literária sueca que o preferia em relação ao José Saramago. Mas fui sempre na esperança de que o laureado fosse o José Saramago.

P – Depois de lhe revelarem a informação, pediram-lhe segredo…

R – Sim. Na altura, depois da divulgação do nome do laureado, o secretário foi buscar o documento justificativo da Academia para atribuição do Prémio, pediram-me para traduzir ou para mediar o texto para português. O texto é traduzido em inglês, francês, alemão e na língua do laureado. Disse-me que se quisesse consultar alguém para uma revisão do texto podia fazê-lo e ao mesmo tempo pediu-me um rigoroso sigilo porque ninguém pode ter conhecimento prévio e o laureado deve ser o último a saber. E disse-me que ficaria em contacto comigo, o que aconteceu vários dias em relação à tradução, porque tem de ser rigorosa e ser compatível com a tradução noutras línguas. Foram dois ou três dias a preparar essa tradução.
No dia 7 de Outubro, o secretário-adjunto da Academia telefonou-me às 14 horas e pediu-me para localizar o José Saramago em Frankfurt… em que hotel estava, o quarto, o telefone… para que no dia seguinte, uma hora antes da revelação do prémio, fosse contactado pelo Secretário Permanente. Nessa altura liguei para a (Editora) Caminho mas o editor, o Zeferino Coelho, estava em Frankfurt e o secretário estava a almoçar… Foi nessa altura que decidi telefonar à Pilar…

P – E nessa altura…

R – Foi na quarta-feira à tarde. E revelei-lhe que o José iria receber o Prémio no dia seguinte, pedi-lhe os contactos, inclusivamente disse-lhe que da Academia teriam de lhe telefonar bastante cedo. E pedi-lhe para não dizer ao José que lhe iria telefonar à noite. Notei que ela ficou emocionada, também me disse que seria difícil durante a conversa com o Saramago que ele não subentendesse que se passasse alguma coisa de anormal, mas suponho que ela nunca revelou, embora lhe tenha dado indicações para ele ficar mais um dia em Frankfurt.

P – Guardou segredo durante mais ou menos uma semana…

R – Sim, sim… se bem que por se tratar do José comecei a imaginar e a construir inúmeros cenários e a pensar qual seria a recepção em Portugal à atribuição do Prémio ao José…

P – Dorme-se bem com um segredo desses para guardar?

R – Não foi difícil porque era um segredo que me dava uma enorme satisfação. Não era um segredo que tivesse uma carga negativa ou dolorosa para transportar. Era um segredo que me dava uma certa satisfação, um gozo interior, uma alegria incalculável, posso dizer-lhe que para além do 25 de Abril foi o dia mais feliz da minha vida. Não só por ser o José a receber o Prémio mas também por o merecer. Era um Prémio que era dele mas era também para a literatura e língua portuguesa, de Portugal e, se quiser estendê-lo, também aos países lusófonos embora seja um termo que não me agrada. Era um Prémio que o José, entre poucos, sabia carregar com a responsabilidade de ser um laureado. Estou talvez a especular mas, em bom português, tinha estatura, tinha estaleca para aguentar o Prémio e carregar essa responsabilidade. Durante os anos que se seguiram foi chamado a participar em inúmeras manifestações em todas as partes do Mundo. E nesse aspecto fiquei muitíssimo satisfeito.

P – Lembra-se das palavras que trocaram por altura da entrega do Prémio?

R – As palavras… creio tê-lo abraçado quando ele chegou a Estocolmo no dia 5 de Dezembro. Estava no aeroporto, com o António esteves Martins, e creio ter sido o primeiro a abraçá-lo. O que é que se pode dizer… disse um obrigado… talvez, mais do que todas as palavras foi o abraço… o abraço que lhe dei e que ele me deu também para retribuir.

P – José Saramago é muito lido na Suécia?

R – É lido. Se é muito lido… mas tem um público. Se bem que nos últimos anos não tenha sido traduzido. Foi traduzido até 2010. Poder-se-á dizer que até à atribuição do Nobel tinha quatro títulos traduzidos em sueco e ganhou algum público. É difícil quantificar. Ainda tem alguma notoriedade. Passaram-se anos após a sua morte e portanto essa notoriedade tem de ser realimentada e a pouco-e-pouco, não só o Saramago, muitos caem na memória dos leitores.

P – Que influência é que a atribuição deste Nobel teve na comunidade portuguesa na Suécia?

R – Teve muitíssima, na altura. Saramago costumava dizer que os portugueses tinham crescido três centímetros. Nós aqui, durante esse período e sobretudo durante os dez dias da festa em Estocolmo, nós crescemos muito mais do que isso. A nossa comunidade na Suécia é pequena e sentíamos que não olhavam para nós, não reparavam. E nesse aspecto houve um período em que nós crescemos alguns centímetros. O Saramago sempre esteve disponível para a nossa comunidade e esteve aqui várias vezes. Esteve numa rádio livre que tínhamos aqui. Foi sempre prestável em transmitir questões muitas vezes relacionadas com a defesa da língua, com a defesa da cultura e respeito por determinados direitos linguísticos e culturais, que ele defendia. Para nós, eram e ainda são extremamente importantes, principalmente nos tempos que correm. As questões das minorias étnicas e os portugueses na Suécia são uma minoria. 

Estamos aqui há três ou quatro gerações. Tentamos prolongar Portugal na Suécia, o que não é fácil. E preservar e desenvolver a língua e a cultura portuguesa, muitas vezes sem os apoios de Portugal e que também não vamos exigir a Portugal que nos apoie, mas já que estamos a falar nisso, que houvesse uma outra política dirigida às comunidades portuguesas. Refiro-me a uma política linguística, educativa e cultural, para além de uma retórica de circunstância no dia 10 de Junho e em outras circunstâncias. As comunidades e os portugueses espalhados pelo Mundo não são tratados como portugueses equiparados aos portugueses residentes em Portugal.

Talvez de forma abusiva mas associando à defesa que o José Saramago sempre fez da língua e da cultura, poderia dizer que hoje muitas das causas que ele defendeu continuam também a ser as nossas causas. A questão que ele colocava sempre, a da tolerância – ele não gostava muito do conceito, utilizava igualância, que se prende com a igualdade de direitos – é uma questão que nós enquanto comunidade aqui na Suécia ainda retemos da mensagem do José Saramago.

Pinhal Novo, 10 de Outubro de 2018

josé manuel rosendo

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