Já vamos ver o que é que a “rua-portuguesa” pode ter a ver
com a “rua-árabe”. Antes disso registemos dois momentos.
Após cinco semanas de silêncio, o Presidente da República (PR)
reapareceu inspirado pelas manifestações de 2 de Março: “as vozes que se
fizeram ouvir não podem deixar de ser escutadas”. Na reaparição, Cavaco Silva
falou dos números do desemprego, do alargamento das situações de pobreza e
disse que as manifestações “merecem o maior respeito”. A “situação é
verdadeiramente dramática”, disse. Mas também disse que não se sentiu alvo dos
manifestantes e que as preocupações dos manifestantes há muito que fazem parte
das suas – dele, PR – intervenções públicas. Aqui chegados, Cavaco Silva, que
até parecia estar a entender alguma coisa, revelou que não entendeu nada. Ou
faz que não entende. Ele é também um alvo das manifestações.
Quanto ao Primeiro-Ministro (PM) veio dizer (e cito de cor…)
que não governa a partir de manifestações de rua e que um primeiro-ministro que
o faça não está apto a desempenhar as funções. Pedro Passos Coelho confunde
convicção e firmeza (obviamente necessárias a um líder) com cegueira e surdez. Pedro
Passos Coelho é líder de um Governo, não é administrador de uma empresa (o que
ainda assim tem que se lhe diga, para além dos números…) e por isso devia ouvir
o seu povo. Não adianta que repita à exaustão que tem uma maioria parlamentar
que o mesmo povo votou. Aliás, se olharmos ao que se passa na rua, esse
argumento significa precisamente que alguma coisa mudou. Não será
intelectualmente honesto pegar nas manifestações mais recentes para a partir daí
dizer, com rigor, que o resultado de eleições realizadas agora seria
substancialmente diferente do anterior, mas é nesse ponto – nesse sentir e
interpretar, na descodificação dos sinais – que os políticos se diferenciam dos
tecnocratas que governam apenas com números e estatísticas.
Para além disso, depois de rapar o tacho, depois de todos os
sacrifícios que tem exigido aos portugueses, um PM que diz que vai cortar mais 4
mil milhões de Euros na despesa do Estado e não diz onde, só pode estar a
brincar. Só pode estar a deitar gasolina na fogueira.
Talvez por isso, por tudo o que Pedro Passos Coelho disse e
tem feito, João Semedo, do Bloco de Esquerda lançou esta tarde, durante o
debate parlamentar, o desafio: “O povo está farto de si, o povo está farto da
sua política e do seu governo. Demita-se”. “Não tenha medo de eleições, deixe a
democracia falar por si”, disse ainda João Semedo.
Aqui chegados, percebe-se que nem o PR nem o PM estão a
querer entender o divórcio entre a rua e o actual poder. Não entendem a
diferença entre a rua, o povo, e o “Palácio”, esse enquanto símbolo do poder
instituído. Vamos às semelhanças entre a “rua-árabe” e a “rua-portuguesa”: a
rua, entenda-se opinião pública (não a publicada), está em profundo desacordo
com o governo. A “rua-árabe” começou assim a ser designada precisamente porque
representava um sentimento diferente daquele que expressavam os governantes,
por ser um registo de opinião completamente diferente e oposto ao que nos era
dado pelos respectivos líderes árabes. É verdade que esses líderes eram quase
todos uns ditadores (que por acaso tinham excelentes relações com os líderes do
chamado mundo ocidental…), mas também é verdade que em Portugal atravessamos um
momento muito semelhante. Basta ver os cartazes que idosos e outros cidadãos
pacíficos exibem para se perceber o divórcio e, pior do que isso, o respeito
que o Governo já perdeu. Das palavras de protesto passou-se ao insulto. Das
reivindicações passou-se ao pedido de demissão. É a raiva e o ódio do povo em
relação aos governantes, expressa em cartazes rudimentares mas que representam
um sinal político fortíssimo. Um sinal de que numa rua em chamas não há
bombeiro que possa valer ao “Palácio”.
Em Portugal não vivemos formalmente numa ditadura, nem o
Primeiro-Ministro pode ser acusado de tal, mas que há um fosso enorme entre o
que pensa e faz o Governo e o que pensa e quer a “rua-portuguesa”, qualquer político
com o mínimo de instinto já percebeu.
Foi a “rua-árabe” que fez cair ditadores, vamos ver o que
acontece ao actual Governo português perante este profundo desentendimento com
a mesma rua que lhe deu o poder. Não era nada má ideia não ter medo de eleições
e deixar a democracia falar.
josé manuel rosendo
Pinhal Novo, 6 de Março de 2013