Não vão longe os tempos em que a Europa
via em Mohamar Kadhafi uma espécie de seguro que mantinha muitos milhares de
deserdados longe do território europeu. O ditador líbio negociava benesses com
a Europa e era recebido nas capitais europeias a troco de negócios de petróleo
e porque, através do controlo que exercia nas tribos do sul da Líbia, controlava
as fronteiras porosas por onde muitos africanos tentavam passar para chegarem
ao Mediterrâneo. Certamente nos recordamos das ameaças de Kadhafi, ainda no poder,
em Março de 2011: milhares de pessoas vão invadir a Europa e não haverá ninguém
para detê-las. Kadhafi, morreu, a Líbia está mergulhada
no caos, refugiados e migrantes africanos tentam chegar ao Mediterrâneo
atravessando o país, sendo vítimas também de traficantes de seres humanos e das
próprias milícias que combatem na Líbia. É este o cenário.
Os que sobrevivem até entrarem numa barcaça
na costa líbia e conseguem depois atravessar o Mediterrâneo, são o problema que
o Presidente francês se propôs resolver numa mini cimeira, em Paris, que juntou
a Chanceler alemã, o Primeiro-ministro italiano, o Presidente do governo
espanhol, os Presidentes do Níger e do Chade, e o líder do Governo de Unidade
Nacional da Líbia. A Alta Representante da União Europeia para a Política
Externa e Segurança também esteve presente.
Aqui chegados, é preciso confessar que,
quando se fala de Europa, ninguém sabe ao certo do que se está realmente a
falar. Principalmente quando se fala de política externa do velho Continente. A
cada passo fica mais evidente que a União Europeia não tem uma Política Externa
(assim, com maiúsculas…). E desta vez, a evidência chegou de Paris, na já
referida cimeira. O objectivo de Emmanuel Macron é encontrar uma panaceia que
controle a chegada de refugiados e migrantes a território europeu. Nos planos de Macron, Níger e Chad devem
fazer o que a Líbia de Mohammar Kadhafi fazia: travar os africanos que
pretendiam atravessar o Mediterrâneo com destino à Europa, servindo de tampão
aos que fogem da guerra, da fome, da miséria económica e da completa
inexistência de uma perspectiva de futuro. Na perspectiva de Macron e, ao que
parece, dos que com ele se sentaram à mesa no Palácio do Eliseu, quanto mais
longe essa gente for mantida, melhor para a Europa.
Nesta mini cimeira ficou decidido que
Níger e Chad vão ser palco de zonas (campos) onde se vão juntar os refugiados
vindos de outros países africanos. Depois, compete às Nações Unidas avaliar, nesses campos, os
que merecem o estatuto de requerentes de asilo. Esses terão um bilhete (de avião?)
para território europeu.
Escreve a Deutsche Welle que o plano que
saiu da mini cimeira também “defende a preservação da segurança dos países africanos
para reduzir o número dos que se aventuram na travessia do Mediterrâneo”.
Descodificando: defende que os actuais governantes se mantenham no poder.
O Níger e o Chade são dois países do Sahel
(a faixa de território que atravessa o Continente e separa a África do deserto
– Sahara - e a África mais fértil) que vivem em conflito desde há décadas e
onde algumas potências europeias têm interesses a defender. O Chade é um dos
países mais pobres e um dos mais corruptos em todo o mundo. Tornou-se
independente da França em 1960. Idriss Déby é o Presidente desde 1990 depois de
um golpe de Estado para o qual, segundo a BBC, contou com a ajuda dos serviços
secretos franceses. Depois foi ficando e alterou a Constituição para poder
recandidatar-se indefinidamente. Neste momento o Chade já acolhe cerca de
400.000 refugiados-
O Níger, depois da independência (da
França) em 1960, viveu tempos atribulados. Mahammadou Issoufou é o Presidente
desde 2011, reeleito em 2016 numas eleições boicotadas pelo principal opositor,
que foi preso. O Níger acolhe actualmente mais de 300.000 refugiados.
Estes dois países são pobres, mas ricos em
recursos naturais que vão do ouro ao urânio. As populações são pobres e
sobrevivem principalmente da agricultura de subsistência. Os níveis de
analfabetismo são enormes. Os dois países são zonas de acção para o Boko Haram
(apesar do grupo não ter base no Níger). Níger e Chade estão no coração de África, zona estratégica para quem quer ser influente.
Há quase 10 anos, numa entrevista ao
Público, a advogada Delphine Djiriabe, activista dos Direitos Humanos no Chade
dizia que “a Europa tem de intervir no Chade enquanto UE e não sustentar as
posições da França. Temos a impressão de que a Europa promove a posição
francesa. Pensamos que a Europa deve adoptar a sua própria posição”. A Europa
não leu esta entrevista feita na sequência da alteração Constitucional que
permitiu ao actual Presidente manter-se no poder, após um conflito em que foi
apoiado pela França.
OPINIÕES (registadas pela Antena 1)
Desta mini cimeira em Paris, resultam
decisões que provocam muitas dúvidas e aconselham muita prudência. Carlos
Coelho, eurodeputado do PSD, considera que é positivo tudo o que seja feito
para evitar mortes no Mediterrâneo e combater o tráfico de seres humanos, mas
levanta três questões: é uma solução para ser, de facto, aplicada?; toda a UE
vai ser envolvida ou apenas os países que estiveram representados em Paris?; pretende-se uma resposta às pessoas que precisam de ajuda ou é apenas uma forma
de as empurrar para fora da Europa? Carlos Coelho lembrou que não há nenhuma
condição, no curto prazo, para ultrapassar as razões que levam as pessoas a
fugir. E a Europa está a ser lenta na resposta.
Raúl Braga Pires, investigador da Academia
Militar e especialista em questões do Sahel diz que duvida da capacidade da ONU para fazer o trabalho de avaliação das pessoas que pretendem chegar à
Europa e acrescenta que a iniciativa francesa pretende recuperar o terreno
perdido para os Estados Unidos quanto à influência externa na região. Os
norte-americanos ainda não decidiram onde vão colocar a sua grande base militar
em África e, por isso, França quer marcar território.
Pedro Góis, do Centro de Estudos Sociais
da Universidade de Coimbra, estudioso das migrações, chama a atenção para as
ausências (Senegal e Nigéria – países de origem de muitos refugiados e
migrantes) na mini cimeira de Paris e considera que o objectivo é mudar a
fronteira externa da União Europeia: “é uma proposta de projectar a fronteira
externa da UE para mais a sul de modo a trabalharmos com a ideia de que a
primeira fronteira para acesso à Europa já não são as fronteiras europeias, já
não é o sul do Mediterrâneo, é já o sul do Sahara, isto na ambição da França
enquanto estratégia defensiva contra as migrações”. Pedro Góis acrescenta que a iniciativa, com o patrocínio do Presidente francês, “projecta para o
interior de França a ideia de que os terroristas e os migrantes são o mesmo
corpo de pessoas, o que não é de todo verdade porque, como sabemos, muitos dos
terroristas que têm sido indiciados na Europa são cidadãos europeus ou vivem cá
há muitos anos”.
A juntar a tudo isto, sublinhe-se o apelo
lançado ontem por António Guterres para que a Líbia liberte imediatamente os refugiados e migrantes detidos. O Secretário-geral da ONU faz uma referência explícita à “violência
extrema dos traficantes, dos passadores, dos membros dos grupos armados e das
forças de segurança”, de que refugiados e migrantes estão a ser vítimas na
Líbia. Estima-se que estejam detidos em centros “oficiais” entre 7.000 e 8.000
pessoas, não se sabendo quantas mais estão detidas em centros controlados pelas
milícias.
Este ano, segundo a Organização
Internacional das Migrações, cerca de 120.000 refugiados entraram na Europa.
Cerca de 2.400 morreram no Mediterrâneo.
A chefe da diplomacia europeia disse em
Paris que o problema é a pobreza (nos países africanos) mas acrescentou que não
há necessidade de inventar um novo Plano Marshall (plano dos Estados Unidos
para ajudar à recuperação da Europa depois da II Guerra Mundial) porque a União
Europeia já investe anualmente 20 mil milhões de euros no continente africano.
Para além da indefinição da União Europeia
enquanto entidade que representa 28 Estados, convém dizer que o Reino Unido já “corre
por fora”. O Ministro dos Negócios Estrangeiros, Boris Johnson, esteve de
visita à Líbia. Foi a Tripoli, a Misrata e a Benghazi, onde se encontrou com
Khalifa Haftar (antigo companheiro de Kadhafi e depois exilado nos Estados Unidos), o marechal que controla uma boa parte do país embora não seja
reconhecido no acordo mediado pela ONU que deu origem a um Governo de unidade
nacional. Para o Reino Unido nada disso parece interessar e Boris Johnson disse
que o marechal Haftar tem uma palavra a dizer no complicado processo político
líbio.
É este o cenário. Cada Europa tem o Kadhafi que merece.
Pinhal
Novo, 30 de Agosto de 2017
josé
manuel rosendo