Manifestação no Iraque. Créditos: Prensa Latina |
Não
é difícil imaginar o aborrecimento para quem anunciou a morte da Primavera
Árabe. Para uns era apenas gente que anda sempre aos tiros e à pancada e nunca
irá entender-se; para outros, era coisa de gente que vive ainda na Idade Média
e por isso nada de bom será de esperar...; para outros ainda, tudo não passou
de algo orquestrado do exterior e não teve nada de espontâneo. Lamento, mas não
é possível concordar com qualquer destas teses simplistas. Seja como for, este
é o momento de recorrer à citação do escritor que utilizou o pseudónimo de Mark
Twain: a notícia da minha morte (é) foi manifestamente exagerada. Pois foi! A segunda
vaga da Primavera Árabe está aí. Tal como a primeira não se sabe no que vai
dar, mas está aí.
Foquemo-nos
em apenas três países, para umas breves notas de contexto.
Argélia
– já lá vão dez meses de protestos. Em Fevereiro de 2019, a população saiu à
rua depois de Abdelaziz Bouteflika manifestar a intenção de se candidatar a um
quinto mandato presidencial. Os militares controlam o poder e foram eles que
acabaram por resolver a questão exigindo a partida de Bouteflika. Assim foi,
mas a “rua” e o Movimento “Hirak” (sem qualquer estrutura dirigente conhecida)
exige o desmantelamento do sistema e a criação de instituições de transição que
reformem o sistema político. Um tribunal militar condenou várias pessoas por conspiração
(entre elas está um irmão de Bouteflika) e outras por corrupção (entre elas
dois antigos primeiros-ministros). A exigência da “rua” mantém-se e aumenta a
repressão contra os manifestantes. Instituições europeias e Organizações de
Direitos Humanos condenam a reacção das autoridades argelinas.As
eleições presidenciais de 12 de Dezembro tiveram cinco candidatos, mas o
Movimento Hirak acusou os candidatos de serem meros fantoches do poder
instalado e apelou à abstenção. Abdelmadjid Tebboune, um antigo
Primeiro-Ministro de Bouteflika, venceu com 58% dos votos, mas a abstenção
ultrapassou os 60%. Os manifestantes continuam a sair à rua, principalmente à
sexta-feira (mais de 40 consecutivas) e querem uma mudança radical do sistema
que dirige a Argélia desde a Independência, em 1962. Falta saber como o
Exército argelino vai lidar com tudo isto, sendo que é uma instituição com o
crédito de ser a herdeira do Exército de Libertação Nacional que travou a
guerra da independência (1954-1962) e deu provas recentes de unidade e
resistência a movimentos radicais islâmicos.
Iraque
– Como explicar que num país que “nada” em petróleo, a miséria seja a realidade
da maioria da população? Desde 1 de Outubro que, com excepção da zona curda, as
manifestações têm saído à rua. Exigem a saída dos actuais dirigentes políticos,
um poder que acusam de corrupto e incompetente. A repressão tem sido dura:
cerca de 500 mortos e vinte mil feridos. Também no Iraque “o povo exige a queda
do regime!” e, tal como no Líbano e na Argélia, não há qualquer liderança organizada
dos protestos. O poder xiita não está a conseguir lidar com a situação e foi
até numa cidade xiita (Nassíria) que a repressão deixou maior marca. O Irão,
aliado do actual poder em Bagdad, está também na mira dos manifestantes. O
Iraque tem sido um país à deriva desde 2003: desarticulação das instituições do
país (exército, polícia, etc..), depois a ascensão da Al Qaeda e,
posteriormente, a presença do Estado Islâmico. Entretanto, as grandes
petrolíferas instaladas no país utilizam mão de obra estrangeira deixando apenas
tarefas menores para os iraquianos. O preço das sucessivas guerras, o
desemprego da maioria dos jovens (60% da população tem menos de 25 anos) e a
guerra de bastidores entre Estados Unidos e Irão, conduziram o Iraque a uma
situação da qual não se sabe como é possível sair.
Líbano,
Argélia e Iraque, são países em que os ventos da Primavera Árabe de 2011 pouco
se fizeram sentir mas onde agora o grito de revolta é semelhante. Houve
manifestações, é certo, mas algumas promessas e alterações legislativas foram
suficientes para acalmar a “rua”. No Iraque, as preocupações eram outras e as
prioridades também. Desta vez o poder político está a braços com protestos que
não desarmam. Fartas de miséria e habituadas à violência, as pessoas parecem
querer dizer que já nada têm a perder.Líbano
(1975-1990) e Argélia (1991-2002) são dois países com memória muito recente de
guerras civis que custaram muitos milhares de vidas. São muitos anos de
violência que levam a população a reflectir antes de qualquer acto que
desestabilize estes países. Apesar disso, os protestos estão na rua, a determinação parece ser grande, e não se
sabe como tudo isto vai terminar.
Pinhal
Novo, 28 de Dezembro de 2019
josé
manuel rosendo