Páginas

sexta-feira, 30 de dezembro de 2016

Síria e as realidades paralelas


Esta é a noite em que nos anunciam o início de mais um cessar-fogo na Síria. Quem conhece a guerra saúda qualquer cessar-fogo, por muito breve que seja. Mais uma vez vamos ter de esperar para ver no que dá. E não seria honesto dizer que existe a esperança de um verdadeiro e prolongado cessar-fogo. O xadrez político é de enorme complexidade e o silêncio prolongado das armas não se obtém apenas com alguns sentados à mesa onde é tecido o acordo.

Um dos motivos que levou ao fracasso de sucessivos acordos e negociações sobre a guerra na Síria foi a ausência de grande parte dos grupos armados que fazem a guerra no terreno. Outro motivo foi a falta de acordo entre os países e grupos sírios que têm estado na mesa das negociações relativamente a quem deve ser considerado “terrorista”. Nunca se chegou a acordo sobre os nomes que deviam constar de uma lista de “terroristas”. Estes dois simples factos ajudam a explicar a evolução da guerra e a cada vez maior complexidade da situação na Síria. A cada dia que passa há novas alianças em nome da sobrevivência, a teia de interesses tem uma leitura cada vez mais complexa, criam-se novas dependências, há mais ódio, mais raiva, mais desejo de vingança.

Desta vez, no Cazaquistão, sem a presença dos Estados Unidos, mas com a presença da Rússia, Turquia e Irão, foi obtido um novo acordo de cessar-fogo. O Ministério da Defesa da Federação Russa divulgou entretanto uma lista de grupos da “oposição moderada” que se juntaram/aderiram ao cessar-fogo. Eis a lista: Feilak al Sham, Ahrar al Sham, Jaysh al Islam, Thuwar al Sham, Jaysh al Mujahideen, Jaysh Idlib e Jabhat al Shamiyah. Ao todo, estima o Governo russo, estes grupos têm mais de 50 mil combatentes. São grupos que até agora cabiam facilmente no catálogo da Rússia e do governo sírio relativamente a grupos “fundamentalistas”, “jihadistas”, “fundamentalistas”, “salafistas”, “extremistas” e por aí fora… Eram estes grupos, ou outros idênticos, que estiveram a combater em Aleppo. Mas nessa altura eram “terroristas”. Agora deixaram de ser e passaram a “oposição moderada”. Não há nada de errado em conseguir um cessar-fogo que incluiu estes grupos. Aliás, é dos livros que a paz é feita com os inimigos. O que é extraordinário  – e não é uma referência a Assad ou a Putin – é que alguns opinadores apressados tenham agora de meter a viola no saco e conceder que afinal os que combatiam em Aleppo contra Assad e Putin também se sentam à mesa para discutir acordos de cessar-fogo e, eventualmente, um acordo de paz. É bom que isso tenha sido conseguido apesar de poucas horas após o anúncio do cessar-fogo terem surgido vozes divergentes de alguns dos grupos anunciados como alinhados com o cessar-fogo.

À distância, as redes sociais têm potenciado a tendência para encontrar os bons e os maus desta guerra. Erro crasso. Não vale a pena tentar argumentar sobre a justiça ou injustiça desta guerra. Ela fez quase seis anos de caminho e não se pode voltar ao ponto em que teria sido possível evitá-la. Mas é bom que se diga que as primeiras manifestações contra o regime de Assad e que deram origem à revolta armada que degenerou em guerra foram manifestações pacíficas e apenas exigiam justiça para os que tinham castigado de forma indecente um grupo de jovens que cometeu o “crime” de escrever algumas frases revolucionárias nas paredes de uma escola. A repressão do regime a essas manifestações foi brutal. O próprio Assad reconheceu (JN 06.10.2013) que “acontecem erros pessoais", que "todos cometem erros" e que "até um presidente os comete”. Para quem agora defende a tolerância do regime de Assad é bom que revisite esses dias para perceber a tolerância de que fala.

O regime dos Assad nunca foi tolerante. Aliás, o filho Bashar seguiu, embora com um novo registo de comunicação, aquilo que o pai Hafez tinha feito nos quase 30 anos em que foi Presidente da Síria. Que o digam os habitantes de Hama e a Irmandade Muçulmana (sunita) quando, em 1982, foram bombardeados pela aviação síria. Ficou o registo de muitos milhares de mortos e uma cidade parcialmente destruída. Que o digam dirigentes políticos libaneses assassinados durante a guerra civil libanesa. Aliás, a alegada tolerância religiosa do regime de Assad só pode ser comparada à mesma tolerância praticada pelas antigas potências coloniais no Médio Oriente: sempre alegaram defender as minorias para terem um argumento de repressão contra qualquer tentativa de emancipação dos povos que dominavam.
Antes da revolta de 2011, a Síria vivia em “estado de emergência” desde há 48 anos. Bashar al Assad nunca deu um único sinal de que estivesse disposto a negociar fosse o que fosse e as reformas e eleições concretizadas já em tempo de revolta vieram atrasadas e foram uma mal-amanhada fuga para a frente.

Decorridos quase seis anos de guerra na Síria, Bashar al Assad parece ter encontrado os maiores defensores numa área de fundamentalismo laicista que não entende o peso da religião naquela região do Mundo. Gostemos ou não, queiramos ou não, a religião tem um peso muito diferente daquele que tem, por exemplo, em Portugal. Não aceitarmos isto nem as respectivas consequências de um olhar de cunho religioso em relação aos problemas políticos, vai levar-nos a leituras erradas. Não estou a dizer que a religião deva ter o peso que tem, mas tem! E não é por gostarmos mais ou menos que as coisas passam a ser diferentes. 

Os grupos que combatem o regime de Bashar al Assad têm génese religiosa? Sim, muitos têm. Mas a pergunta correcta será: qual é (na Síria) o grupo armado ou milícia que não tem uma génese religiosa? Talvez os curdos sejam os únicos que não têm na religião a sua principal premissa política. Aliás, os curdos ficaram fora deste cessar-fogo, tal como o Estado Islâmico e a ex-Front al Nusra. Espero que os defensores do democrata Assad não venham agora dizer que Curdos, Estado Islâmico e ex-Front al Nusra são uma e a mesma coisa.
                                                                                                              
Pinhal Novo, 30 de Dezembro de 2016
josé manuel rosendo


quinta-feira, 15 de dezembro de 2016

Aleppo, a guerra, os bons, e os maus…


Esta fotografia foi obtida em Benghazi (Líbia) em Fevereiro de 2011. As expectativas expressas nesta parede de um comité revolucionário são elucidativas do que os líbios pretendiam ao lutarem contra Kadhafi. Depois, a história mudou de rumo.

A batalha de Aleppo exacerbou alguns ânimos. Regressaram as visões maniqueístas com uma bússola que aponta o local onde estão os bons e, em contraponto, indica quem são os maus. Recorre-se à história para argumentar, fazem-se comparações descabidas, utiliza-se a propaganda de uma parte para acusar a outra parte de estar a fazer… propaganda. Fazem-se afirmações peremptórias perante realidades complexas e difusas. Apelida-se a contra-parte de ignorante. Este cenário não difere muito das noites televisivas em que os comentadores usam o cachecol do respectivo clube de futebol e defendem o indefensável até à “morte”. É assim nos debates futeboleiros, mas não devia ser assim na análise da política internacional.

Um dia destes fizeram-me uma pergunta: por que é que os sírios (egípcios ou líbios…) apenas podem escolher entre viver sob ditadura ou em situação de guerra? Porquê essa única opção? Não haverá uma outra possibilidade? Esta pergunta foi feita por um indignado estudante sírio que veio para Portugal. Conversávamos descontraidamente sobre a Síria e, de um modo geral, sobre o Médio Oriente. A pergunta do jovem sírio arrasta a indignação óbvia de quem quer ser um igual entre os que querem a Liberdade e defendem o direito a escolher por quem devem ser governados. E, diga-se, a pergunta não me era dirigida directamente. Foi, aliás, uma pergunta com um alvo bem definido: os que condenam a chamada Primavera Árabe e continuam a dizer que a actual situação na Síria e na Líbia se deve às revoltas que eclodiram nestes países. 

É verdade que se hoje perguntarmos a sírios e líbios se preferiam ter continuado a viver com os ditadores ou se preferem suportar as guerras em que estão mergulhados, uma esmagadora maioria dirá que preferia o passado. Essa, presumo, será a resposta da maioria – por razões óbvias – mas isso não invalida que Assad seja um ditador e que Kadhafi ainda era pior.

Não é abuso intuir que a pergunta deste estudante sírio se possa traduzir numa outra pergunta, muito simples, que necessita resposta sem rodeios: como é que alguém que defende a Liberdade e a Democracia pode ao mesmo tempo defender o poder de políticos como Kadhafi ou Assad? Como é que Liberdade e Democracia são compatíveis com Assad ou Kadhadi? Como é que alguém que defende a Liberdade e a Democracia pode dizer a outra pessoa que ela não tem outra alternativa a não ser viver sob a alçada de um ditador ou enfrentar uma guerra que lhe destrói a família e o país? Será bom que os que defendem Assad ou defenderam Kadhafi assumam isso: digam aos líbios e aos sírios, olhos nos olhos, que a única alternativa que lhes resta é viverem numa ditadura; digam-lhes que não são cidadãos de pleno direito nem têm o direito de lutar por isso.

Nas guerras sempre se cometeram atrocidades. Todos os envolvidos acabam por ceder em matéria de direitos humanos. Isso não invalida que os crimes sejam denunciados e os responsáveis punidos. Mas na política internacional não há um clube dos maus e outro clube dos bons. Não é assim, por muito que custe a quem recusa ver a realidade. Em Aleppo não deve ser diferente. Na Líbia não deve ser diferente.

Para avaliarmos os "bons" e os "maus" proponho um exercício simples: imagine-se que Barack Obama e Vladimir Putin trocavam de país. Obama no Kremlin faria muito diferente do que Putin tem feito? Putin na Casa Branca faria algo diferente do que Obama fez? Ora bem, isto não significa que Putin e Obama sejam iguais, que pensem da mesma forma e defendam os mesmos valores, mas significa que os Estados têm interesses que, muitas vezes, quase sempre, se sobrepõem ao que os dirigentes políticos gostariam de fazer. Certamente que Obama e Putin algumas coisas fariam de forma diferente, mas seria muito pouco. Esta constatação não desresponsabiliza os políticos mas ajuda a perceber que a perspectiva maniqueísta é uma venda nos olhos que não ajuda a entender a essência dos problemas e os conflitos de interesses que conduzem às guerras. Há quem lhe chame “Realpolitik”.

Pinhal Novo, 15 de Dezembro de 2016
josé manuel rosendo



quarta-feira, 14 de dezembro de 2016

Sentimos vergonha por Aleppo?


A foto é da autoria de Abdalrhman Ismail, da Agência Reuters, publicada na Al Jazeera.

Aleppo caiu. As forças rebeldes (Exército Livre da Síria e pouco mais) sucumbiram perante o maior poderio militar do governo sírio e das milícias do Hezbollah libanês que tiveram o apoio dos bombardeamentos aéreos russos.

Não se sabe ao certo quantas pessoas estão na zona oriental da cidade; não se sabe ao certo porque lá ficaram e se, agora, querem sair; não se sabe ao certo que tipo de garantia estas pessoas têm de que não vão ser acusadas de cumplicidade com os rebeldes; não se sabe, ainda, grande coisa, sobre o acordo de cessar-fogo. Há muito por saber, mas sabe-se – e a ONU pode falhar por omissão mas não costuma falhar quando faz acusações muito directas – que nas últimas horas 82 civis foram executados em casa pelas forças do regime sírio ou forças aliadas. E é bom não esquecer que o regime sírio tem cometido toda a espécie de crimes: tortura, execuções, prisões secretas, milhares de desaparecidos, bombardeamentos indiscriminados. Pode haver, e certamente há, muita propaganda contra Bashar al Assad, mas existem inúmeras fontes a darem conta desse tipo de atrocidades e não é mais possível ignorar a brutalidade do regime.

Do lado dos rebeldes também há notícias de atrocidades contra os civis, em particular contra os que tentaram passar para a zona oeste controlada por Damasco. Sendo tudo isto absolutamente condenável, não é fácil entender como é que algumas pessoas de esquerda em Portugal defendem um regime execrável apenas porque tem o apoio da Rússia e condenam os rebeldes apenas porque têm a simpatia de alguns países ocidentais; enquanto à direita apenas se condena os ataques com apoio da Rússia e do Irão esquecendo que do lado rebelde a forma de fazer a guerra também não é "flor que se cheire".

A Batalha de Aleppo, é uma moralizadora vitória para Assad e permite construir um eixo contínuo de cidades sírias (Aleppo, Idlib, Homs, Damasco e Daara) na região oeste do país. É um eixo que fica “colado” às duas províncias alawitas que são a base de apoio do Presidente Bashar al Assad. Estas cidades significam também a zona mais habitada, mais fértil e são a estrutura de suporte da Economia síria. Por outro lado estão concentradas num faixa pequena do território o que permite a sua mais fácil defesa em termos militares.

Mas a conquista de Aleppo não é um ponto final na guerra na Síria, uma guerra que tem duas frentes e até se pode dizer que são duas guerras. O regime sírio combate as forças da oposição que defende a revolta iniciada em 2011 e também combate o Estado Islâmico que ainda controla várias cidades sírias. A conquista de Aleppo parece ter levado a uma concentração do esforço militar na missão de Aleppo, obrigando a “destapar” outras necessidades militares como era o caso da protecção à cidade de Palmira. Essa opção (?) permitiu ao Estado islâmico reconquistar a cidade. Para além da derrota, as forças sírias perderam também muito equipamento militar para os extremistas. A Agência de notícias do Estado Islâmico divulgou esta terça-feira um vídeo de uma alegada base militar russa em Palmira, completamente deserta, e onde foi deixado muito armamento.

Agora resta saber qual é a capacidade militar do regime – fortemente diminuída após mais de cinco anos de guerra – para manter Aleppo e as outras cidades, para reconquistar Palmira e, vai ser terrível, desencadear um eventual ataque à capital do Califado, a cidade de Raqaa. Falta também saber qual a capacidade da oposição síria, em particular do Exército Livre da Síria, para reagrupar forças e tentar obter apoios internacionais para manter a oposição militar ao regime de Bashar al Assad. Em declarações à Al Jazeera, Haji Hassan, líder do concelho rebelde de Aleppo prometeu que a revolução vai continuar e desmentiu a influência da Jabat Fatah al Sham (antiga Front al Nusra, ligada à Al Qaeda) na cidade: “não são mais do que um por cento” dos rebeldes.

Esta é a análise fria da situação, mas o importante seria mesmo que as armas agora caladas em Aleppo se calassem em toda a Síria. As imagens que nos chegam de Aleppo deveriam envergonhar-nos a todos. O chamado falhanço da comunidade internacional é, nem mais nem menos, do que o nosso falhanço colectivo. Em pleno século XXI as nossas sociedades já deveriam ter força suficiente para exigir aos líderes políticos que encontrem forma de acabar com a tragédia.

Pinhal Novo, 14 de Dezembro de 2016

josé manuel rosendo

terça-feira, 13 de dezembro de 2016

Como vamos acompanhar a liderança de António Guterres na ONU?


O texto é longo, mas a importância do que está em causa justifica-o. 
Foi importante a diplomacia portuguesa para a eleição de António Guterres? Foi! Já foi dito e repetido e o Ministro dos Negócios Estrangeiros português fica com esse marco no currículo. Mas esta é uma conquista de António Guterres. Apesar de muito mal tratado (principalmente mal acompanhado) pela generalidade da comunicação social portuguesa durante os mais de dez anos em que foi Alto-Comissário para os Refugiados, Guterres adquiriu um capital de conhecimento e competência que fizeram dele o candidato mais capaz. Era o candidato óbvio, desde logo porque a questão dos refugiados é, e vai continuar a ser, assunto complicado por muito tempo, e neste caso Guterres sabe muito bem do que fala. Perante a profusão de escândalos que têm assolado a ONU, eleger um Secretário-Geral que apenas representasse um conjunto de interesses mas que não tivesse nenhuma ligação à realidade, nem aptidões evidentes para a função, seria mau de mais para uma organização que precisa urgentemente de "lavar a cara" e de dar sinal de que serve para muito mais do que tem servido até agora.

Dito isto, o discurso de Guterres perante a Assembleia Geral, depois de feito o juramento, foi quase brilhante. Tocou as questões essenciais e apontou caminhos. Talvez até, pela clarividência expressa, tenha colocado a fasquia demasiado alta. Guterres não vai conseguir fazer tudo o que disse ser necessário fazer e resta esperar para ver o que consegue.

E uma das questões que António Guterres abordou, subtilmente, foi a da recuperação do multilateralismo. É urgente recuperar o diálogo entre os Estados, prevenir conflitos e encontrar soluções para os já existentes, porque só esse diálogo multilateral poderá obter uma paz sustentável nas várias frentes. Até agora, na Europa e no Mundo, temos assistido a diálogos a dois e a três (poderosos) com os outros a assistir. Na União Europeia a Alemanha fala com a França e os outros assistem; por causa da Síria John Kerry fala ao telefone com Serguei Lavrov e os outros assistem. Isto é exactamente o contrário do que deve ser e é por isso, muito por isso, que as soluções encontradas raramente resolvem os problemas. É evidente que as grandes potências terão sempre uma palavra a dizer, mas esta é uma das questões mais importantes e a outra será a reforma da própria ONU. Outros a tentaram e não conseguiram. A relação de forças instalada resulta de uma guerra e, infelizmente, a alteração de forças no Sistema Internacional surge invariavelmente na sequência de conflitos bélicos. Se Guterres conseguir essa reforma (em particular a da constituição do Conselho de Segurança e o regime de veto) e se conseguir recuperar o multilateralismo, já será merecedor de um lugar no olimpo.

Mas António Guterres teve também a coragem de falar da Síria, do Iémen e Sudão do Sul (duas guerras esquecidas) e do conflito israelo-palestiniano, uma situação que se agrava a cada dia que passa mas que tem sido ofuscada pela urgência de atender a situações mais graves.

E deixou um recado para dentro: a ONU deve preparar-se para mudar. Guterres apontou para uma reforma global da estratégia e das operações da ONU, que dê mais agilidade e eficácia à acção no terreno. Agora começam as pressões como logo sublinhou, em Bruxelas, o Ministro Augusto Santos Silva.

Mas para além das dificuldades que António Guterres vai encontrar e das pressões que vai sofrer, há uma particular atenção, nossa, pelo facto de ser português. Será bom que a eleição de Guterres não sirva apenas para uns momentos de nacionalismo bacoco em que levantamos a bandeira e nos consideramos os melhores do mundo para logo a seguir passarmos a ignorar o feito conseguido. A chegada de António Guterres à liderança das Nações Unidas é igualmente uma oportunidade para algum jornalismo português. Talvez agora se possa rever o tal critério da "proximidade" sempre tão útil quando se pretende ignorar alguns assuntos em detrimento de outros que, supostamente, "interessam mais às pessoas". Guterres na liderança da ONU pode ajudar-nos a ultrapassar os tiques de jornalismo provinciano e de paróquia. Não se deve falar do mundo que nos rodeia apenas para que nos julguem viajados ou eruditos, ou até profundos conhecedores de realidades distantes; o que não se pode fazer é ignorar o mundo como se vivêssemos numa redoma que nos impede de sermos afectados por esse mundo à nossa volta. E o que mais espanta é estarmos sempre a repetir essa frase gasta de termos sido o povo que deu novos mundos ao mundo.

António Guterres na liderança da ONU pode ser a oportunidade para os portugueses saberem como funciona o Conselho de Segurança, onde fica o Sudão do Sul, qual é o problema das águas do mar do Sul da China reivindicadas pela China, qual é o problema em Caxemira, em que ponto está o conflito entre israelitas e palestinianos, quais são os países que acolhem mais refugiados (não, não são os países europeus...), o que é o Acordo do Clima, entre muitos outros assuntos. António Guterres pode devolver-nos o interesse pelo Mundo, assim os órgãos de informação queiram.

Confesso que esta minha esperança não é muito forte. Fico à espera para ver e estou curioso também quanto à cobertura que os órgãos de informação portugueses vão fazer, a partir de agora, da actividade das Nações Unidas e, em particular, da liderança de António Guterres.


Pinhal Novo, 13 de Dezembro de 2006

josé manuel rosendo

segunda-feira, 21 de novembro de 2016

Memórias do Irangate num check point no Iraque


Há dias assim: esperamos, esperamos… e nada. Esta segunda-feira, a força de elite do exército iraquiano, a “Divisão Dourada” decidiu que os jornalistas não passavam do chek point que antecede Bertalla, na estrada para Mossul. Por ali ficámos horas a fio à espera de uma luz-verde que nunca chegou.

Nos dias assim e em circunstâncias como as de hoje, os jornalistas metem conversa entre eles: de onde és, para quem trabalhas, onde estiveste ontem, como é que achas que podemos chegar aqui ou ali… são perguntas habituais neste tipo de conversa. Mas eis que, nesta segunda-feira, num check point perdido a este de Mossul, havia uma personagem que trabalha para a televisão norte-americana Fox News: Oliver North, ex-coronel dos fuzileiros navais. 

Acompanhado de uma dúzia de homens, entre seguranças, tradutores (não vi armas mas tinham carregadores nos coletes) e repórteres de imagem, Oliver North e muitos outros, depois de lhes ser barrada a passagem no check point, tal como aos jornalistas no local, desdobraram-se em telefonemas. Foram horas ao telefone. Para quem não sei, mas sei que passadas aí umas três horas, surgem dois carros blindados norte-americanos. Seguem-se contactos apressados com os militares iraquianos da força de elite que controla o check point, Oliver North e acompanhantes seguem para os quatro jipes blindados em que viajavam, formam uma coluna com um carro blindado a abrir r o outro a fechar, e dirigem-se ao check point… mas daí não passaram. O que os norte-americanos pensavam que estava resolvido (ou tentaram dar a entender que estava…) afinal não estava. Oliver North e restante comitiva voltaram para junto do grupo de jornalistas perante muitos sorrisos nada dissimulados.

A história ficaria por aqui, não se tivesse dado o caso de, quando os blindados norte-americanos recuavam do check point, ter surgido no extremo oposto uma milícia xiita (obviamente armada) que pretendia passar o mesmo check point. Discussão entre xiitas – a coisa esteve feia, muito feia, e um dos milicianos chegou a ser detido – gritaria, ânimos exaltados e… os dois blindados norte-americanos no meio, entre xiitas desavindos, sem saberem muito bem o que lhes tava a acontecer nem o que deveriam fazer. Tudo acabou em bem, prevalecendo a vontade dos homens da Divisão Dourada, donos e senhores do território.

Moral da história: os norte-americanos, sempre com aquela ideia de que o poder lhes permite mexer uns cordelinhos, podiam ter acabado entalados numa situação complicada, fruto de uma xico-espertice da comitiva de Oliver North, ao tentar resolver de forma egoísta uma situação que não o prejudicava apenas a ele. Não imagino por onde passaram os telefonemas e não sei se o ex-coronel ainda “mexe cordelinhos” no Pentágono, ou se porventura – já passaram muitos anos – ainda tem contactos criados no tempo da guerra Irão-Iraque, mas desta vez de nada lhe valeram. Ou então fez que estava a telefonar. Da Fox News (depois de ver o espectáculo que foram dando durante este dia) nada me surpreende. Desta vez, tal como no caso Irangate, as coisas não lhes correram de feição. E o mais surpreendente é que não percebem o ridículo.

Iraque, Erbil, 21 de Novembro de 2016

josé manuel rosendo

terça-feira, 15 de novembro de 2016

Uma noite em Bashiqa


Às seis da tarde tenho de interromper o trabalho. O Comandante chama para o jantar e não é possível tentar retardar com um “já vou” ou “são só dois minutos”. Estou no posto de comando Peshmerga de Bashiqa. Acaba por ser um regresso porque estive por aqui em Outubro do ano passado.

A mesa não chega para todos. É comer e andar, para dar o lugar a quem espera. Cada um tem direito a um tabuleiro com arroz de tomate, pão, rodelas de tomate e de pepino e há uns pratos com ovos estrelados. Cada um tira o que lhe está destinado. Depois há chá, quente e muito doce.

O jantar cedo está relacionado com o dia duro e com a noite que cai muito cedo. Fecham-se as cancelas e os portões. Depois do jantar os mais velhos e de posto mais elevado juntam-se para dois dedos de conversa. Ouve-se o som de uma televisão algures neste posto de comando que parece ter ocupado um centro de saúde ou algo parecido. Pelo menos há material médico e de enfermagem. As conversas são suaves.

Os Peshmerga conseguem aliar a experiência de guerrilha à disciplina de uma força militar tradicional. Tudo parece mal organizado, mas tudo funciona.

O Estado Islâmico foi corrido da cidade. Ficou a destruição. Desolação absoluta. Não há gaz nem electridade, a população abandonou a cidade. Talvez metade das casas estejam destruídas, muitas outras danificadas. Ruas esburacadas. Minas assinaladas com bandeiras vermelhas, explosivos à beira da estrada. De vez em quando o ronco de um avião. De vez em quando o som abafado de uma explosão, ao longe. É a guerra. A lua está grande e amarela. Estou cansado. Hoje não dá para mais.

Iraque - Bashiqa, 15 de Novembro de 2016


josé manuel rosendo

terça-feira, 1 de novembro de 2016

Juan Luis Cebrián, não me escrevas mais cartas!



“Escreveste-me” em 1998 e guardei a tua prosa no altar das mais queridas. Folheava-te de quando em vez. As tuas palavras como que arrumavam as minhas ideias, por vezes desordenadas, nas gavetas do pensamento. Apetecia-me responder-te, mas seria atrevimento escrever, assim, ao mestre. E afinal, que poderia eu dizer de novo ou de importante a quem tudo tinha dito? E tão bem dito. Nem sequer havia mais uma pergunta a fazer, porque todas as que imaginei encontravam resposta no que já havias escrito. Mas agora, escrevo-te.

E escrevo-te agora depois de saber que pressionaste o ex-líder do PSOE para não formar um governo à esquerda. Diz o teu concorrente El Mundo – sim, porque no teu El País não encontrei a história – que o teu Grupo, dono do El País, disse a Pedro Sanchéz que nem sonhasse com um governo de aliança à esquerda. Aqui vai o excerto da conversa com Jordi Évole reproduzido no El Mundo: “Y pese a que Évole perseveraba para arrancarle el nombre de Juan Luis Cebrián, Sánchez repetía que "nunca" se reunió con él, pero sí con "otros responsables" del periódico que le dijeron "claramente que o Rajoy o la línea editorial no iba a ir ni a facilitar que hubiera un Gobierno progresista liderado por el PSOE". Não é preciso dizer mais nada, ambos sabemos como funciona. Estamos a falar do “teu” jornal, de que foste fundador e director e que pertence ao grupo de que és presidente.

Foi o parágrafo da desilusão. E dei por mim a perguntar: será que por cá, por Portugal, também enviaste alguns recados do mesmo género quando o actual governo estava para ser formado? Não sei. Mas começo a não me admirar que o tenhas feito.

Pelo que me diziam, dás-te bem com Bildberg e não gostaste nada dos “papéis do Panamá”. Desvalorizei. Enfim, pensei, mudou de vida, desde que trocou o jornalismo pela gestão e presidência do Grupo Prisa, pensa mais em dinheiro do que em notícias. Mas quis acreditar que ainda guardavas na alma uns resquícios das cartas que me enviaste nesse ano de 1998. Mas, por outro lado, comecei a duvidar de mim próprio e do que, estava convencido, tu havias escrito. Na dúvida, fui à estante. Atirei uns quantos livros ao chão na ânsia de reler as tuas palavras. Pensando nisso agora até parece que fui à procura da confirmação de que não tinha andado enganado todo este tempo. Sei lá… podia ter lido mal… podia ter interpretado mal… mas não, não li nem interpretei mal. Está lá tudo.

Repara neste excerto de uma das muitas cartas que dirigista a Honório a propósito do perigo da concentração de empresas na área da comunicação social: “Profissionalismo é, pois, a palavra chave. Profissionalismo frente às pressões – sejam da própria empresa, do poder político ou publicitário, ou da opinião reinante da sociedade. Profissionalismo perante os sectarismos que nascem das próprias manias dos redactores, das suas bílis particulares, das suas vergonhas e devaneios. Profissionalismo, consistente em não dar notícias que não estejam devidamente verificadas, não ocultá-las por motivos alheios ao interesse do leitor ou do telespectador e não esconder opiniões e análises a respeito delas, por contraditórias que sejam com o nosso sentir ou com a linha oficial da empresa”.

Sei agora que renegaste tudo o que escreveste e, aparentemente, sem ponta de remorso.

Com que cara vou eu trabalhar? E se alguém decidir confrontar-me com esta tua traição? Aconselhas-me alguma resposta?

Coloco-me agora a questão de saber se as tuas “Cartas a um jovem jornalista” não terão sido escritas apenas porque sim, apenas porque era bem e de bom-tom. Dá jeito ter alguma coisa publicada que se possa ver. Dava-te pinta de bom jornalista, credível, escreveres umas palavras a preceito que te dessem aura de pensador e, até, quase poeta. Conheço-os e conheço o estilo. Mas tu… enganaste-me tão bem que até te coloquei no altar da estante aqui de casa.

A carta já vai longa e vou terminar. E digo-te: não vou queimar o teu livro porque os livros não se queimam. E também não penses que perdes o lugar na estante. Apenas retiro as “velas” que te alumiavam e ajudavam a santificar o lugar. Mas, em nome do rigor, e do profissionalismo que me deste como conselho, quando falar do teu livro a alguém vou ter de acrescentar que já não és o tipo que escreveu aquilo. E vou contar o que fizeste. Porquê? Como sabes, a traição custa sempre mais quando vem daqueles de quem menos a esperamos. E em jeito de vingança (pequenina) apenas para te tirar o sorriso que certamente estás a esboçar, digo-te que seguirei os conselhos das cartas que me escreveste e espero que um dia te possas amaldiçoar por teres dado esses conselhos que te vão estragar o negócio.

Fico à espera da tua resposta. E não precisas de demorar (como eu) 18 anos.

Cumprimentos
Pinhal Novo, 31 de Outubro de 2016

josé manuel rosendo

quinta-feira, 20 de outubro de 2016

Líbia, 5 anos depois de Kadhafi

Foto de um mural nas ruas de Benghazi, a 2 de Março de 2011

Cinco anos depois da morte de Kadhafi a Líbia está mergulhada no caos. E é esse caos que legitima a pergunta: valeu a pena afastar Kadhafi? Se todos temos legitimidade para fazer a pergunta, apenas os líbios têm legitimidade para responder porque são eles que estão a pagar a factura. Aliás, a pergunta mais frequente, “manter Kadhafi, ou o caos”?, é absolutamente inadequada. É como se ao povo líbio apenas pudessem ser colocadas essas duas possibilidades e não houvesse uma outra solução: a de viver em paz e com governantes decentes.

Em Março de 2011, quando Kadhafi dava sinais de insanidade, ameaçando uma carnificina quando reconquistasse Benghazi e prometendo uma perseguição (“zenga-zenga”) rua-a-rua, casa-a-casa, para caçar rebeldes, alguns países ocidentais decidiram intervir. Nicolas Sarkozy, presidente francês, foi um dos mais entusiastas. Muitos outros partilharam esse entusiasmo, embora os Estados Unidos tenham adoptado a chamada estratégia leading from behind (liderança a partir do banco de trás). Kadhafi, diziam, enlouquecera. Não andariam longe da razão. As imagens televisivas de Kadhafi a discursar na Praça Verde (nome com que Kadhafi rebaptizara a Praça dos Mártires, em Tripoli) mostravam um homem desvairado com fortes sintomas de ter “perdido o juízo”.

Os rebeldes, desorganizados, tinham dificuldades em combater as forças especiais lideradas por filhos de Kadhafi. Depois da surpresa inicial e das perdas territoriais, as tropas especiais recuperaram terreno e rapidamente ficaram às portas de Benghazi. E foi aí que a força aérea ocidental entrou em acção. Faltavam talvez 3 ou 4 quilómetros para que o primeiro tanque da coluna fiel a Kadhafi entrasse na cidade rebelde. A carcaça do tanque vítima desse primeiro ataque aéreo ficou no local durante bastante tempo. Não houve “zenga-zenga”.

Esta intervenção estrangeira teve a aprovação do Conselho de Segurança da ONU (com a abstenção da Rússia) mas a resolução aprovada não tinha uma interpretação consensual. A resolução impunha uma zona de exclusão aérea e autorizava “todas as medidas necessárias para proteger a população civil”. O problema é que ser civil também podia ser sinónimo de ser rebelde e a resolução aprovada serviu claramente para atacar as forças de Kadhafi com o argumento de que assim se pretendia impedir ataques a populações civis. Os rebeldes beneficiaram claramente desta situação. A Rússia discordou porque interpretava a resolução de forma diferente e foi esta diferente leitura da resolução para a Líbia que, depois, bloqueou no Conselho de Segurança várias resoluções sobre a Síria.

Sabemos hoje, mais de 5 anos depois do início da revolta na Líbia, como terminou o regime de Mohammar Kadhafi. O que talvez fosse importante discutir é a forma como estas intervenções estrangeiras têm lugar, sem qualquer preocupação que acautele o futuro dos países intervencionados. Poder-se-á questionar logo à partida se este tipo de intervenção tem alguma legitimidade à luz do Direito Internacional. É, de facto, uma questão para a qual não existe resposta consensual. Mas, admitindo que as intervenções acontecem – concordando-se ou não – uma outra questão se coloca: quem intervém não tem também a obrigação de proteger o país intervencionado? Desde há algum tempo que, associada às intervenções de carácter humanitário, surgiu a “responsabilidade de proteger” (RtoP ou R2P– responsibility to protect – na sigla em inglês), mas no caso da Líbia, se alguma protecção existiu enquanto Kadhafi resistiu, ela desapareceu por completo logo que Kadhafi foi morto.

De 2011 vem uma frase do presidente do Chade, Idriss Beby, que ilustra bem a situação na Líbia: “Não asseguraram o serviço pós-venda”. Barack Obama também reconheceu que foi subestimada a necessidade de uma presença ocidental no período pós-Kadhafi. Mas também é verdade que os líbios não queriam tropas estrangeiras no terreno. Disseram-no repetidamente. Recordo-me bem de estar em Benghazi no dia da primeira reunião do Conselho Nacional de Transição. O comunicado emitido e distribuído foi depois rectificado e novamente distribuído porque não explicitava essa recusa de tropas estrangeiras no terreno.

Os líbios ficaram como queriam, sem potências estrangeiras a interferir no terreno. Não houve boots on the ground mas houve muitas armas que atravessaram a fronteira. Nos dois sentidos. A Líbia está partida. Dois governos, dois parlamentos, senhores da guerra, Estado Islâmico com uma forte presença, futuro absolutamente incerto.

Mohammar Kadhafi, ora acusado de terrorista ora recebido com pompa nos palácios ocidentais, foi morto nas proximidades da cidade de Sirte a 20 de Outubro de 2011, não muito longe do local onde nasceu, quando tentava fugir do cerco à cidade. Foi apanhado por rebeldes, escondido numa conduta. Depois de Kadhafi fugir de Tripoli, em Agosto, os rebeldes sempre disseram que só descansariam quando o apanhassem, vivo ou morto. Há muitas versões sobre a morte de Kadhafi que responsabilizam diferentes actores. Uma dessas versões é a de que terá sido morto pela sua própria pistola em dourada. Terá sido um jovem rebelde a dar o tiro fatal. Terá sido, porque uma reportagem da BBC em Fevereiro deste ano, descobriu em Misrata a arma de Kadhafi e o jovem (então com 17 anos) que foi fotografado com ela enquanto era levado aos ombros no momento em que Kadhafi foi capturado e morto. O jovem nega ter sido o autor do disparo fatal.

Na perspectiva de quem apenas quer viver em paz, com justiça e liberdade, tudo correu mal na Líbia. Depois do ditador – é bom não esquecer que Mohammar Kadhafi esteve mais de 40 anos no poder e conquistou-o através de um golpe de estado, em 1969, que afastou o Rei Idris – os líbios demoram a encontrar o caminho. Seria bom, pelo menos, que o mau exemplo líbio fosse tido em conta, mas se pensarmos em Mossul, no Iraque, não é isso que está a acontecer. Já foi assim com Saddam – afastado sem que, quem o afastou, tivesse sequer noção de como ia ser o day after – e vai ser assim no combate ao Estado Islâmico em Mossul: não há nenhum plano para o dia seguinte. Pode vir a ser mais uma zona de caos.

Pinhal Novo, 20 de Outubro de 2016
josé manuel rosendo


terça-feira, 18 de outubro de 2016

Mossul, todos a querem. A que preço, não importa…

Esta foto foi tirada há um ano, em Bashika, onde a Turquia tem uma base militar para formação de forças curdas e sunitas. Daqui partem os Peshmerga curdos que estão a combater o Estado Islâmico. Mossul fica a uma dezena de quilómetros.

Sem nenhuma dúvida, as noites em Mossul são mal dormidas. Por esta hora, acredito, ninguém quererá fazer a (adaptada) pergunta: Mossul já está a arder? A pergunta, a original, terá sido feita por Adolf Hitler já em fase de desespero, quando os aliados entraram em Paris e os nazis perdiam batalhas sucessivas. Paris não chegou a arder. Não consta que o Estado Islâmico prefira ver Mossul arder devido à iminência de uma derrota militar face ao ataque iniciado esta segunda-feira, mas desta vez, e ao contrário de Paris, quem parece disposto a incendiar Mossul são os que atacam a cidade.

Em Dezembro do ano passado, regressado da região, fiz a pergunta (E depois do Estado Islâmico?) http://meumundominhaaldeia.blogspot.pt/2015/12/e-depois-do-estado-islamico.html e disseram-me que estava com pressa. Não estava. A questão era (é) mesmo essa, porque eu bem ouvi o que os curdos iraquianos diziam. Quem considerava que eu estava com pressa dizia-me então que primeiro era preciso derrotar o Estado Islâmico e depois logo se via. Errado. Mossul não é Faluja, nem Ramadi. Conquistar Mossul ao Estado Islâmico e manter a cidade sem criar um novo foco de guerra exige um plano para o pós Estado Islâmico. Um plano que seja do agrado de todos os que estão envolvidos neste ataque a Mossul. O problema é que são muitos os interesses e um plano assim parece impossível. Quem ataca a cidade converge na necessidade de tirar Mossul das mãos do Estado islâmico, mas diverge em tudo o resto. E basta estar atento às mais recentes declarações para se perceber que não há plano nenhum.

Depois de uma primeira ofensiva falhada no início da Primavera, desta vez parece que é para levar até ao fim. Forças do governo de Bagdad, milícias xiitas (Unidades de Mobilização Popular), milícias de tribos sunitas, milícias iranianas, milícias do Hezbollah, Peshmerga curdos, forças fiéis ao antigo governador de Mossul, norte-americanos e turcos no terreno, e ataques aéreos da coligação internacional. Não muito longe andam os guerrilheiros do PKK e das Unidades de Protecção Popular (sírias), bem como milícias Yazidis. A lista, certamente, não é completa, mas suficiente para se perceber como vai ser difícil decidir quem fica a controlar Mossul.

Não se sabe ao certo quantos habitantes tem a cidade (a ONU refere 1,5 milhões) nem quantos são os combatentes do Estado Islâmico. Mas a coisa pode correr muito mal. Um coordenador da ONU para os Direitos Humanos já alertou: “não acusem os civis de Mossul de pertencerem ao Estado Islâmico, e que não haja execuções sumárias, nem de civis nem de membros do Estado Islâmico”. O tom do aviso deixa claro o que pode acontecer. Ainda a ONU alerta para uma nova vaga de refugiados e faz saber do perigo de os habitantes ficarem encurralados no fogo cruzado, podendo ser vítimas de franco-atiradores ou serem utilizados como escudos-humanos. A ONG Save the Children alerta para mais de meio milhão de crianças em risco.

Alguns analistas consideram que nesta batalha joga-se o futuro do Iraque enquanto país com as actuais fronteiras. O governo do Iraque joga também o tudo ou nada, devido às sucessivas crises políticas mas, mesmo derrotando o Estado Islâmico, pode vir a revelar-se incapaz de gerir a situação futura, que pode degenerar numa efectiva desintegração do país.
Antes do ataque, aviões iraquianos lançaram panfletos na cidade aconselhando a população a ficar em casa e prometendo não atacar alvos civis, mas é impossível prever a evolução da batalha e a reacção da população.

As próximas horas vão fornecer indicadores mas as mais recentes declarações são um sinal claro do caldeirão em que Mossul pode ser transformada. Moqtada al Sadr, poderoso clérigo xiita que liderou o exército de Mahdi no combate à ocupação norte-americana, disse que a batalha de Mossul é uma guerra entre o governo de Bagdad e os terroristas e que o Iraque deve recusar o apoio turco em nome da soberania iraquiana; o Presidente turco, Erdogan, disse que “está fora de questão a Turquia ficar fora da ‘operação Mossul’” acrescentando que a Turquia estará na operação militar e também na (futura) mesa de negociações; o parlamento iraquiano já votou uma moção em que considera a presença turca como “ocupação” e violação de soberania”. Sendo a maioria da população de Mossul de origem sunita, não se sabe como vai reagir à entrada de milícias e tropas xiitas. O antigo governador de Mossul – aliás, acusado de ser o responsável pela queda de Mossul às mãos do estado Islâmico em 2014 – lidera uma milícia fiel, que é apoiada pela Turquia e propõe-se ser mediador entre as forças xiitas e os habitantes da cidade. Também a ter em conta que é a primeira vez que Peshmerga curdos e forças de Bagdad combatem lado-a-lado numa operação militar. Os curdos dizem que não têm interesses em Mossul mas vão ocupando algumas zonas que foram conquistando ao Estado islâmico. Em termos de declarações mais recentes, a cereja no topo do bolo veio de Moscovo, com a Rússia – acusada de crimes de guerra na Síria - a dizer que espera que a coligação internacional no Iraque tenha uma acção com precisão que evite vítimas civis.

Várias fontes referem 30 mil homens no ataque a Mossul, que estará defendida por cerca de 4 a 8 mil combatentes do Estado Islâmico. Não se sabe onde está o “califa” Abu Bakr al Bagdadi; não se sabe como será possível distinguir entre combatentes e civis (numa cidade com mais de um milhão de habitantes). É impossível prever o tempo que esta operação vai demorar mas alguns analistas apontam para um final de batalha em zona urbana, rua a rua, casa a casa. Mossul ainda não está a arder, mas são muitas as colunas de fumo negro e a dimensão do que está em jogo é de tal ordem que se alguém temer o pior não pode ser acusado de pessimismo.

Pinhal Novo, 18 de Outubro de 2016

josé manuel rosendo

segunda-feira, 10 de outubro de 2016

A balda dos táxis num país de “uber's" à balda


A foto que ilustra este texto foi feita por mim, em Abril de 2015. Chegado à estação de Campanhã, no Porto, entrei no primeiro táxi da fila – tem de ser assim - e, já lá dentro, deparo-me com este cenário: um pára-brisas estilhaçado! O táxi era velho e revelho, as mudanças entravam a “pontapé” e o motorista, coitado, muito mais velho do que o táxi, já merecia estar a gozar a reforma. Se juntarmos a este exemplo a manifestação/protesto desta segunda-feira (10 de Outubro) e as imagens de verdadeiros arruaceiros que os taxistas transmitiram ao país, podemos dizer que o sector está a precisar de uma enorme reciclagem. Isto para dizer que apesar deste mau serviço e destes maus exemplos considero que o que estão a fazer aos taxistas – aos profissionais dignos – é uma verdadeira “filha da putice”.

Num Estado de Direito Democrático (EDM) não parece defensável pretender manter uma actividade económica sem que esteja regulamentada (uber e cabify); num EDM não parece defensável ter regras diferentes para vários agentes económicos que concorrem na mesma área de negócio; num EDM alguém que inicie uma actividade económica sem enquadramento legal deve ser devidamente punido.

O que está em causa (táxis versus uber/cabify) não são novas tecnologias – as tais plataformas; não está em causa um novo serviço; ninguém descobriu a pólvora. O que está em causa é que uns quantos xico-espertos descobriram uma brecha na legislação - e tiveram cobertura política para crescer e apresentarem-se agora com um facto consumado - que tentam explorar, e consideram-se “muito à frente”; o que está também em causa são empresas de táxis que pararam no tempo e quiseram, num determinado momento, reduzir custos à conta de biscateiros mal preparados que não têm nenhum tipo de preocupação com o futuro da actividade a não ser receber o trabalho feito durante algumas horas depois do turno de trabalho normal na empresa onde realmente trabalham (todos conhecemos alguém que após um horário normal de trabalho entra(va) num táxi para fazer umas horas e aconchegar o orçamento); o que está em causa é taxistas sem brio profissional (sim, sem brio profissional: alguns são mal educados, alguns cheiram mal, usam camisas surradas, fumam dentro dos táxis): E que as empresas de táxis não venham acusar a uber de utilizar trabalho precário – o que é verdade – porque fazem (ou pelo menos já fizeram) o mesmo. Evidentemente que também há bons profissionais, mas tudo o que atrás foi referido contribuiu para a degradação do serviço.

A desregulamentação é a menina dos olhos dos neoliberais. No caso da uber e da cabify, beneficiaram de um momento em que Portugal tinha o Governo que todos sabemos; seria um bom sinal do actual Governo combater a desregulamentação neste sector e seria um sinal de afastamento de práticas e filosofias anteriores.

Melhores serviços todos queremos, mas entrar no facilitismo de admitir a desregulamentação das actividades económicas só porque, num determinado momento, há um ganho imediato da qualidade desse serviço, é abrir a porta a uma sociedade sem regras, ao trabalho à jorna, à selva. Quem agora pensa que ganha alguma coisa com essa desregulamentação não vai demorar muito a perceber que as perdas são muito maiores a médio-longo prazo. Hoje é o sector do serviço de transporte de passageiros em veículos ligeiros, ontem já foi assim com outros sectores, amanhã será ainda com outros. O lucro desta desregulamentação nunca beneficia quem trabalha ou quem utiliza os serviços. Nunca beneficia a Sociedade no seu conjunto.

No caso de que estamos a falar, tanto se me dá que lhe chamem uber, táxi ou cabify. Gostaria de ter um serviço que me transportasse num carro limpo, de preferência com poucos anos de uso e com um motorista educado que não reclamasse quando a corrida é pequena, quando não recebe o pagamento em dinheiro trocado ou quando não recebe a esperada gorjeta. E esse serviço terá de ser regulamentado, para defesa dos profissionais e dos cidadãos que utilizam o serviço. E já agora, também é bom que se diga que os motoristas da uber/cabify nunca fazem porventura o mesmo tipo de reclamações porque podem recusar os serviços que não lhes interessam. Os taxistas não o podem fazer.

Pinhal Novo, 10 de Outubro de 2016

josé manuel rosendo

segunda-feira, 26 de setembro de 2016

Outubro (vai ser) negro na Síria


Para “início de conversa”: ligo a Al Jazeera e oiço “100 mortos no sábado, 85 este domingo”; há informação confirmada da utilização de bombas de desfragmentação; as Nações Unidas alertam para mais de um milhão de pessoas sem água. Tudo isto em Aleppo. Quem pensa que já é suficientemente mau, prepare-se para que seja pior.

A declaração do embaixador sírio nas Nações Unidas, Bashar Jaafari, avisando que em Outubro não haverá negociações, parece indiciar que está encontrada a prioridade do regime sírio. Depois de mais um cessar-fogo que não deu em nada, a não ser no redobrar das ofensivas do governo de Damasco, as grandes potências limitam-se a trocar acusações e a mostrar-nos o que de pior tem a diplomacia: hipocrisia e total indiferença – não adianta dizerem que estão preocupados, estamos todos… - com o que se passa no terreno, com populações civis e cidades a serem bombardeadas. O regime sírio considera que tem capacidade e apoios para reconquistar territórios, e não precisa de negociar. E está com um olho em Mossul, no Iraque, porque da realidade iraquiana é importante, com o Estado Islâmico a ser o elemento que pode influenciar toda a evolução. O aliado Irão, também aliado do governo iraquiano, sabe bem o que está a ser preparado no Iraque, para reconquistar Mossul ao Estado Islâmico. A mensagem certamente já chegou a Damasco: esperem, para ver o que dá o ataque a Mossul.

Neste momento, o silêncio da comunidade internacional em relação à Síria é bárbaro. De nada adianta falar e nada fazer. Estamos cheios de declarações mais ou menos inflamadas contra a guerra na Síria. É vergonhoso. Eu sinto vergonha, uma vergonha alheia que nem por isso deixa de ser terrivelmente desconfortável.

A leitura que é possível fazer, com os dados que são conhecidos, é a de que apesar de Bashar al Assad manter o discurso de querer recuperar o controlo total do país, isso não vai acontecer, nem o presidente sírio quer. De nada lhe serve ter território que apenas dá problemas e reivindica recursos. Assad quer ficar com as províncias alauitas junto ao Mediterrâneo e, de preferência, associar-lhes, a oeste, o corredor norte-sul onde estão as principais cidades do país: Aleppo (antigo coração da economia síria), Idlib, Homs, Damasco e Daraa. Afinal, apenas ficam de fora as cidades curdas (inevitáveis locais de conflito se a Síria permanecesse unida sob o controlo de Assad) e as cidades de Raqqa, Palmira e Deir Ezzor. O resto é deserto, com excepção do vale do Eufrates. O petróleo nas zonas mais encostadas ao Iraque não tem grande expressão. É isto que Bashar al Assad quer, uma vez que não pode ter tudo. O pragmatismo de quem quer continuar a ser presidente obriga a deixar de lado o orgulho ferido de quem perde território.

Neste momento, a França já enviou o porta-aviões Charles de Gaulle para o Mediterrâneo; a Rússia também enviou o porta-aviões Amiral Kouznetsov para fazer companhia a 10 navios de guerra e submarinos. O Mediterrâneo está transformado numa base militar com rampas de lançamento que podem atingir qualquer local do Médio Oriente e todas as principais potências envolvidas na Síria e no Iraque têm militares no terreno.

Os Estados Unidos já disseram que a ofensiva para reconquistar Mossul pode começar em Outubro; o governo britânico disse que a ofensiva começa nas próximas semanas; o governo iraquiano tem dito o mesmo e as tropas de Bagdad juntamente com as milícias xiitas iranianas, e também iraquianas, e algumas tribos sunitas, estão a avançar no terreno. O Primeiro-ministro iraquiano, Al Abadi, tem-se desdobrado em contactos internacionais (incluindo a Turquia e os líderes curdos iraquianos) para preparar o terreno. Um ataque a Mossul levanta imensas preocupações humanitárias e não se sabe a resistência que o Estado Islâmico poderá opor. O custo em vidas humanas poderá ser terrível, inclusivamente entre os civis.

Dependendo de como a ofensiva venha a ser planeada, pode ser deixado um corredor de fuga para os combatentes do Estado Islâmico, e esse corredor pode conduzir a Raqqa, na Síria. Mas também pode acontecer que assim não seja e que Mossul seja cercada. E até pode acontecer que sejam planeadas ofensivas simultâneas a Mossul e a Raqqa. É impossível saber o que vai na cabeça dos estrategas militares e quais são os objectivos políticos imediatos ou a longo prazo.

Nesta complexa realidade, o Irão pode assumir um papel de relevo: os iranianos estão de bem com os Estados Unidos em relação ao Iraque, cujo governo tem telefone directo com Teerão, e estão de bem com a Rússia no apoio a Bashar al Assad. Podem acabar por ser o pivot que coordene acções atendendo ao mau momento Estados Unidos-Rússia. Seria a grande vitória de Teerão.

Mas, quanto à Síria, o cenário que neste momento parece mais agradável para Bashar al Assad e respectivos aliados é o de conquistar as grandes cidades a norte de Damasco, esquecer o deserto e os curdos do norte, e deixar à comunidade internacional e à oposição moderada a tarefa de combater o Estado Islâmico eventualmente acantonado em Raqqa (capital do califado) quando for expulso de Mossul. Falta saber o que poderá fazer o Exército Livre da Síria e a enorme miríade de grupos armados para contrariar esta estratégia de Assad e dos aliados russos.

Uma última nota: a Rússia poderá estar para uma “nova Síria”, como os Estados Unidos estão para Israel, o que não desagrada nada a Vladimir Putin.

É complicado? É! Mas é impossível tornar fácil uma realidade que envolve tantos interesses e protagonistas. Certo é que as nuvens negras (mais negras do que as que pairam sobre a região) estão a caminho e tudo indica que vai ser muito feio.

Pinhal Novo, 25 de Setembro de 2016

josé manuel rosendo

domingo, 25 de setembro de 2016

Deixem de brincar com a Síria


Sabendo o que se está a passar na Síria, é absolutamente desesperante ouvir as declarações dos principais responsáveis políticos, principalmente os das grandes potências. Os despachos das agências internacionais dão conta de sucessivos bombardeamentos em Aleppo e acrescentam constantes actualizações do número de mortos e infraestruturas destruídas. Estas notícias surgem intercaladas com as declarações políticas: John Kerry, Secretário de Estado norte-americano, a dizer que “o cessar-fogo não morreu”; Serguei Lavrov, Ministro dos Negócios Estrangeiros da Rússia, a dizer que o cessar-fogo “não tem razão de ser” se a oposição moderada não se demarcar dos grupos “terroristas”. Isto é algo esquizofrénico. E muito hipócrita.

John Kerry sabe perfeitamente que o cessar-fogo está morto e enterrado (para não falar das centenas de violações durante a semana em que esteve em vigor…) e não adianta fazer que não vê o que se passa em Aleppo e em muitos outros locais na Síria; Serguei Lavrov, antes de assinar o acordo de cessar-fogo, sabia perfeitamente que não iria acontecer a separação de grupos armados que agora vem exigir. Lavrov sabe que é mais fácil virar um acordo de pernas-para-o-ar do que separar grupos que combatem lado-a-lado numa guerra civil fratricida e só porque a Rússia acha que sim. 

Muitas negociações que decorreram em Genebra terminaram no momento em que os negociadores não conseguiram chegar a acordo sobre uma lista de grupos terroristas. Kerry e Lavrov dizem ambos que é importante preservar o acordo que assinaram a 9 de Setembro, mas sabem que a realidade já rasgou esse acordo e que se ele serviu para alguma coisa foi apenas para os combatentes terem uns dias de descanso, para o exército sírio se reorganizar e para haver uma pequena pausa na contagem dos mortos (que ainda assim continuou).

Sabemos que a hipocrisia é a dama a que nenhum diplomata consegue recusar um passo de dança, mas este salão está cheio de cadáveres e já era tempo de mandar a orquestra ficar em silêncio.

Como se não bastasse este cinismo das grandes potências, o Presidente sírio Bashar al Assad deu uma entrevista à Associated Press na qual diz que está para ficar, assumindo que a guerra está para durar e o embaixador sírio nas Nações Unidas foi muito claro ao dizer que em Outubro não haverá negociações. Setembro está a chegar ao fim.

A cereja no topo do bolo veio do presidente turco, que acusou os Estados Unidos de terem enviado dois aviões com armamento para os combatentes curdos no norte da Síria. A Turquia considera estes curdos terroristas; para os Estados Unidos são aliados. Turquia e Estados Unidos combatem o Estado Islâmico, fazem parte da mesma coligação que bombardeia o califado – e da NATO – mas escolhem amizades diferentes.

Quando será que alguém vai parar a carnificina e o que vai fazer a justiça internacional quando o banho de sangue terminar?

Nota: os créditos da foto que ilustra este escrito são de Ryad Alhussen (tirada na tarde de 24 de Setembro) e escolhi-a por constituir uma imagem que pode acordar consciências. Não há guerras sem mortos.

Pinhal Novo, 24 de Setembro de 2016

josé manuel rosendo

quarta-feira, 21 de setembro de 2016

António Guterres arrisca-se a ser o último Secretário-Geral da ONU


O Mundo atravessa um momento complicado. É comum tendermos a valorizar as dificuldades do presente esquecendo que outros momentos semelhantes já aconteceram e nem todos terminaram da forma dramática que, em determinado passo, foi previsto. Mas também é verdade que muitos analistas admitem estarmos a caminho de mais uma guerra mundial. Não se trata de pessimismo ou cedência às teorias deterministas. A escolha é dos homens, mas há muitos homens que não conseguem aprender nada com a história.

A guerra na Síria é um exemplo. As grandes potências e as potências regionais estão envolvidas; há actores locais fortemente empenhados; os povos estão desavindos; fronteiras questionadas; a religião utilizada como arma. Já lá vão mais de cinco anos de guerra e não há sinal de que os protagonistas cedam à necessidade óbvia de um acordo político. Como alguém já disse, até parece que toda a geopolítica do planeta está centrada na Síria. As Nações Unidas, herdeiras de uma Ordem Internacional criada há 70 anos, revelam total incapacidade para conter o conflito e para ser o tal fórum onde as desavenças se resolvem de forma civilizada. Aliás, a guerra na Síria e no Iraque, contém um dado poucas vezes abordado: o objectivo do Estado Islâmico é também o de contestar o próprio modelo de Estado-Nação, defendendo outro tipo de fronteiras.

Esta incapacidade das Nações Unidas que pode levar à sua irrelevância transporta-nos ao tempo da Sociedade das Nações, antecessora da ONU. Não deixa de ser curioso que tendo nascido de uma sugestão de um presidente norte-americano, o Congresso dos Estados Unidos tenha recusado ratificar o Tratado de Versalhes (onde constava a criação da Sociedade das Nações) e os Estados Unidos ficaram de fora. Criada após a I Guerra Mundial, a Sociedade das Nações acabaria por sucumbir precisamente por não ter conseguido o seu principal objectivo: manter a paz! O nazismo terá sido o principal impulsionador, mas muitos outros sinais de ambições territoriais já antes se tinham manifestado.

Um desses sinais veio da Etiópia e o aviso foi muito claro. Aliás, há um discurso que muitos diplomatas e analistas deviam rever, por todo o seu esplendor, pelo tom arrebatado, pela clarividência e, principalmente, por ser uma ode ao multilateralismo, tão em voga no nosso tempo mas que se resume sempre, e infelizmente, ao poder de meia dúzia de nações. Passam precisamente 80 anos sobre o momento em que o Imperador da Etiópia, Hayle Selassie, foi a Genebra dizer aos 52 países da Sociedade das Nações que os Tratados Internacionais não estavam a ser cumpridos e, pior do que isso, a Sociedade das Nações estava a olhar para o lado.

Depois de relatar em pormenor que as tropas italianas estavam a fazer na Etiópia (invasão) e o embargo a que a Etiópia estava sujeita e que não lhe permitia defender-se da ameaça de extermínio, o Imperador Hayle Selassie disse: “Os apelos que os meus delegados em Genebra dirigiram à Sociedade das Nações ficaram sem resposta; os meus delegados não testemunharam os factos; é por isso que resolvi vir eu próprio dar testemunho do crime perpetrado contra o meu povo e advertir a Europa do perigo que a espera se decidir vergar-se perante um facto consumado”. Era muito claro o aviso: hoje a Etiópia, amanhã poderá ser um de vós. 

A Sociedade das Nações protestou, mas a Itália de Mussolini passou impune. A Etiópia ficou entregue a si própria e à voracidade de uma Itália liderada por “Sua Excelência Benito Mussolini, Chefe de Governo, Duce do Fascismo e Fundador do Império”, como o próprio ditador se intitulava. Hayle Selassie foi certeiro na análise e a história acabou a dar-lhe razão. Os italianos utilizaram armas químicas e há relatos que referem meio milhão de mortos entre os etíopes. A II Guerra Mundial não tardou a bater à porta.

Aqui chegados, neste nosso tempo, temos António Guterres a subir a escada que o pode levar a Secretário-Geral da ONU. Não duvido das boas intenções do ex-Primeiro-Ministro português, mas esta ONU, da qual já se disse mil vezes precisar de uma reforma que lhe permita uma intervenção mais eficaz, não está a ser a instituição que o Mundo precisa para suster conflitos e regular divergências internacionais. 

Quem mais precisa de uma ONU forte são os mais fracos, povos e países, mas esta ONU está cada vez mais alinhada com as grandes potências. Não que isso seja uma vontade assumida dos 193 Estados membros, mas é o resultado de uma organização que já não corresponde (se é que alguma vez correspondeu) à relação de forças a nível internacional e mantém um Conselho de Segurança com regras que conduzem facilmente à inacção.

A história não se repete mas ao recusar ouvir os alertas semelhantes aos de Hayle Selassie, a ONU arrisca-se a ter o mesmo fim da Sociedade das Nações e António Guterres pode vir a ser o homem com a ingrata tarefa de fechar a porta. Esperemos que não.

Pinhal Novo, 21 de Setembro de 2016

josé manuel rosendo

segunda-feira, 19 de setembro de 2016

Quando Bruxelas se transforma num centro de agitação política

As famosas agências de rating andam mais caladas mas, tal como não há vazios em política, também não pode haver vazios na arte de agitar papões frente ao nariz dos que se comportam fora dos padrões considerados aceitáveis. Não sei se as agências começaram a ficar incomodadas com o seu próprio ruído ou se perceberam que já era contraproducente. Mas para que não nos falte nada, o recente silêncio das agências é substituído pelo ruído da Comissão Europeia (CE). Verdadeiramente preocupada com o povo deste cantinho da Europa a Comissão com sede em Bruxelas não pára de enviar recados, alertas e avisos. Por vezes até parece que conhecemos os verdadeiros autores tal a coincidência com alguns discursos.

Por exemplo, Bruxelas acha que a venda do Novo Banco (de que não se sabe qual vai ser o encaixe…) e a recapitalização da Caixa Geral de Depósitos (que não se sabe ainda quanto vai ser necessário…) pode ter um impacto nas contas públicas que pode comprometer a execução orçamental em 2016. Valha-nos neste caso que Bruxelas admite que são as broncas nos bancos que podem comprometer o défice. Está reconhecido implicitamente que não voltámos a viver acima das nossas possibilidades.

Outro exemplo, Bruxelas avisa que os riscos de financiamento de Portugal podem aumentar no médio prazo. Motivo? A volatilidade do mercado e as almofadas financeiras cada vez menores. Quanto à volatilidade (será nervosismo?) dos mercados estamos conversados. Quanto a almofadas financeiras, a Comissão esclarece que estão em linha com os valores de 2015 mas está abaixo do valor do fim de programa de assistência financeira.

Preocupações maiores de Bruxelas? Algumas reformas efectuadas durante o programa de resgate correm o riso de serem revertidas: sistema de requalificação dos funcionários públicos e regresso das 35 horas de trabalho semanais. O aumento do salário mínimo e a reversão dos cortes salariais temporários são outros factores de preocupação para Bruxelas.

Para além das preocupações e dos avisos de que se fazem acompanhar, Bruxelas diz que não foi identificado nenhum desvio orçamental significativo até ao momento (Maio – embora o relatório tenha alguma informação até meados de Julho). Não há desvio, mas a comissão diz que pode haver, porque há medidas adiadas para o segundo semestre que podem fazer aumentar o défice.

Isto é, a CE não tem um único dado objectivo para poder afirmar que a execução orçamental não está a ser cumprida, mantém para este ano as previsões do défice que já tinha feito (2,7% do PIB), mantém as previsões para 2017 (2,3% do PIB), mas consegue ter todas as dúvidas em relação aos próximos meses e exige medidas ao Governo.

O Governo respondeu que os dados da execução orçamental de Julho mostram que se mantém a tendência verificada em Maio – referida neste relatório da CE.

Em resumo, a CE dá-se ao luxo de dizer que não acredita que o limite do défice vai ser cumprido. Não acredita, e pronto. Não acredita, e quer medidas para passar a acreditar. A CE que apregoa aos quatro ventos a necessidade de estabilidade é a primeira a lançar a suspeita que enfuna as velas para fazer andar o barco da instabilidade e da desconfiança. Claro que depois não vai ter qualquer culpa num eventual aumento dos juros da dívida.

Este é, sem dúvida, um braço-de-ferro entre a CE e o Governo português do qual não pode resultar dois vencedores. Fechadas as contas, alguém vai perder. O problema é que se for o Governo português os portugueses saberão tirar ilações; se for a CE nada poderemos fazer. Esse é um dos dramas desta Europa.

Pinhal Novo, 20 de Setembro de 2016

josé manuel rosendo

sexta-feira, 16 de setembro de 2016

Não há ódio à classe média (qual classe média?) e os comunistas não vão comer criancinhas…

Não gosto da política partidária, mas gosto de Política. Há mais ou menos seis anos o Governo de então decidiu por Decreto-Lei que as famílias com rendimento anual superior a 100 mil Euros teriam cortes nos chamados subsídios sociais. A medida fazia parte do PEC 2011 que o governo antecipou para entrarem em vigor em 2010. José Sócrates foi a Bruxelas dizer que era uma medida com o apoio do PSD.

Agora, 2016, o (modelo do imposto está ainda a ser trabalhado, mas o) Governo prepara-se para taxar os imóveis que no conjunto do rendimento da família tenham um valor entre 500 mil e 1 milhão de Euros. Desse valor para cima os imóveis já eram taxados.

Lembrei o que aconteceu em 2010 (também com um Governo do PS) para constatar um facto simples: na lógica de então (2010) do PSD, 100 mil euros era patamar de riqueza suficiente para que alguém do agregado familiar sofresse perda total ou parcial do subsídio desemprego ou Rendimento Social de Inserção, mas agora, 500 mil Euros de património imobiliário não é patamar de riqueza suficiente para pagar mais um imposto, mesmo sendo o PSD quem mais agita o papão do eventual não cumprimento do limite do défice.

Durante o governo anterior houve também quem (CDS) conseguisse esse malabarismo de reivindicar ser o partido dos pensionistas e reformados e votar cortes em reformas miseráveis sem qualquer alerta na consciência. Neste momento, taxar quem tem património imobiliário de valor superior a 500 mil euros é sacrilégio…

Não entro – por dever de ofício - no debate político-partidário sobre se este governo está a governar bem ou mal, mas esta é uma questão Política muito objectiva: a de saber quem pode – porque tem património e rendimentos – pagar mais impostos e assim contribuir mais para o esforço que – dizem – é preciso fazer para equilibrar as contas. A isto chama-se deslocar a austeridade e procurar receitas fiscais em quem melhor as pode pagar. 

O “ajustamento” feito nos últimos anos colocou a classe média muito abaixo dos patamares anteriores e, actualmente, quem tem património imobiliário acima dos 500 mil euros é alguém que está com um pé (se não os dois…) no clube dos ricos ou, no mínimo, de uma classe média AAA. E esses podem pagar. Ou pelo menos, com toda a certeza, sentirão muito menos o que vão pagar a mais. Quem ganha 500, mil ou dois mil euros por mês, já paga que chegue.

E os “spin doctors” que se deixem de abastecer as redes sociais incitando os incautos (que não têm património de 500 mil Euros, nem lá perto…) a odiarem esta medida em nome da defesa da propriedade privada. Já ninguém acredita na história do agricultor que tinha duas vacas e teve que dar uma ao vizinho porque ele não tinha nenhuma. Não há ódio à propriedade… não há ódio à classe média (qual classe média?) … e não vem aí o comunismo. Até as criancinhas já sabem que ninguém as come ao pequeno-almoço.

Pinhal Novo, 16 de Setembro de 2016

josé manuel rosendo

segunda-feira, 12 de setembro de 2016

É preferível estabilizar ditadores? Essa agora…


11 de Setembro à noite. No momento em que liguei a televisão estava na TVI 24. Não costuma estar porque apenas por lá passo por dever profissional. Mas desta vez estava e ficou. O tema interessava-me. Médio Oriente, Estado islâmico… Os protagonistas – Jaime Nogueira Pinto, Francisco Seixas da Costa e Nuno Barrento Lemos – prometiam, porque são conhecedores, estudiosos e informados. E depois, porque não tinha apanhado o início da conversa que me agarrou, voltei atrás. Confirmei o que me pareceu ter ouvido e que me fez abrir a boca de espanto. 

Em determinado momento, a propósito de ser ou não possível estabelecer democracias tipo ocidental naquela região do mundo, e tendo em conta as consequências da queda de Mohammar Kadhafi (na Líbia) e Saddam Husseín (no Iraque), Francisco Seixas da Costa admitiu que, face às características dos países em causa, “custa dizer isto mas se calhar é verdade, por vezes é preferível estabilizar ditadores e mantê-los contidos” do que chegarmos a situações como as que vivemos actualmente na região em causa com guerras civis na Síria e no Iraque, e na Líbia. 

Admirei-me, vindo de quem vem, habituado que estou a vê-lo fazer a defesa dos direitos humanos, da liberdade e da democracia. Pensava eu que era uma defesa de âmbito universal que não discriminasse regiões nem as pessoas que nelas vivem. É certo que a experiência enquanto diplomata permite “almofadar” todas as afirmações e assim também sublinhou que o ocidente (entenda-se Estados Unidos) foi de uma incompetência absoluta na tentativa de reconstrução do Iraque.

De facto, não é possível, não pode ser possível, concordar com a “estabilização” e “contenção” de ditadores em nome de algo que permita ao ocidente viver em paz. Não é possível concordar com esta tese, nem em termos político-ideológicos nem em termos morais. Desde logo, e porque a data de 11 de Setembro nos traz à memória não apenas os atentados que atingiram os Estados Unidos mas também o golpe de Estado no Chile, que derrubou o Presidente eleito Salvador Allende e mergulhou o Chile numa ditadura militar. 

O Chile foi “estável” e Pinochet esteve “contido” entre 1973 e 1990. A lógica que levou os Estados Unidos e a CIA a prepararem o golpe militar no Chile contra Salvador Allende é mais ou menos do mesmo tipo que pode levar alguém a pensar que é preferível ter ditadores “estabilizados e contidos” no Médio Oriente. No caso dos Estados Unidos (a célebre Doutrina Monroe) era o de não ter à porta o elemento desestabilizador consubstanciado num Presidente socialista no Chile (já chegava Cuba…); no caso da teoria explanada esta noite na TVI – preferir os ditadores ao caos em que se transformou a região - é o de não ter uma (várias…) guerra (s) cujas consequências atingem a Europa, seja através dos atentados, seja através da vaga de refugiados. Apesar desta semelhança de lógicas deixo muito claro que acredito que Francisco Seixas da Costa não teve e não tem nenhuma simpatia pelo golpe que afastou Salvador Allende.

Outros factos que é preciso ter em conta sobre a situação no Médio Oriente é o de que Saddam caiu derrubado pelos Estados Unidos, Grã-Bretanha e ajudantes, numa clara tentativa de mudança de regime feita a partir do exterior; Kadhafi caiu devido à revolta dos líbios (embora com ajuda externa…) durante a chamada Primavera Árabe. No primeiro caso, acção absolutamente condenável, até porque assentou numa mentira fabricada para justificar a invasão; no segundo caso, acção perfeitamente aceitável porque qualquer povo tem o direito inalienável de ser livre e a tentar essa liberdade, desenvolvendo uma revolta para afastar um ditador, independentemente do resultado que venha a conseguir.

Basta atendermos ao exemplo de Portugal: o 25 de Abril de 1974 foi uma revolta militar que derrubou uma ditadura. Quando os militares saíram à rua ninguém podia garantir que a democracia seria instalada. E se o regime tivesse tido capacidade de resposta? E se tivesse havido uma guerra civil? Será que nós podemos tentar e os outros não? Aos outros reservamos os “ditadores estabilizados” e “contidos” para podermos viver a nossa vida sem o desassossego que as guerras no Médio Oriente nos provocam? O chamado Ocidente não pode ser assim tão egoísta. Acredito piamente que Francisco Seixas da Costa não tem qualquer tipo de simpatia por ditadores, mas acredito igualmente que é perigoso semear este tipo de ideias.

Pinhal Novo, 11 de Setembro de 2016

josé manuel rosendo