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domingo, 4 de março de 2018

Camaradas “invisíveis”


Bashiqa, Curdistão iraquiano, Novembro de 2016.
No topo de um monte, no meio do nada, onde o meu
fixer sabia que era possível aceder à Internet.
    
“Temos de ir para...” Tantas vezes esta frase que eu adoro ouvir. Se não a dizem, pergunto: “Então, não vamos...?”. Nem sempre gosto da resposta. O repórter quer sempre partir. Alguns telefonemas, emails, contactos, contexto, protagonistas, desenvolvimentos mais recentes, bilhetes de avião, dinheiro, equipamento... mal damos por isso estamos no meio de um turbilhão. Geralmente não dominamos a língua, e os conflitos ganharam uma complexidade que torna difícil distinguir as forças no terreno. É neste momento que precisamos de um “fixer”. E, por uma vez que seja, falemos deles.

Não conheço uma palavra na Língua Portuguesa que possa ser usada para uma tradução directa. O fixer, mais do que intérprete e guia, é aquele que, conhecendo o terreno, os protagonistas e a cultura, encontra os meios que nos permitem movimentar e aceder àqueles com quem queremos falar; sugere caminhos, antecipa o perigo e sabe dizer não, quando o stress do jornalista empurra para perigos desnecessários; nunca perde o jornalista de vista; providencia um arroz com feijão quando as horas de fome já parecem inevitáveis; encontra no mercado negro o combustível pouco falsificado que não deixe o carro parado a meio da viagem; conhece um local onde há rede de Internet ou energia eléctrica para carregar baterias; antecipa as escapatórias em caso das situações se complicarem em demasia; faz o que é preciso fazer em locais onde tudo parece impossível. Um fixer constrói pontes entre culturas, estabelece a confiança com agentes locais e consegue mediar soluções. Por vezes, não poucas vezes, o fixer partilha a responsabilidade da decisão que é preciso tomar.

Só assim as reportagens são concretizadas, mas eles nunca assinam o trabalho dos jornalistas. Permanecem anónimos e invisíveis. Algumas vezes porque assim querem, na maioria das vezes porque simplesmente não fazem parte da “ficha técnica”. Inevitavelmente, mesmo com esse anonimato, sofrem uma exposição local que, não raramente, significa risco de vida, para eles e para as famílias.
Fazem-se pagar por isso? Fazem! A economia de guerra implanta-se rapidamente nos locais de conflito e é frequente, no meu caso, receberem muito mais do que eu. Não tem discussão.

Já lhes chamaram “anjos da guarda” dos jornalistas. E são mesmo. Damos por isso de uma forma muito óbvia no dia em que, ajoelhados no chão, lado a lado, nos sussurram ao ouvido: não olhes! À nossa frente ouvimos o som inconfundível de um homem a puxar a culatra da Kalashnikov. O “anjo da guarda” repete baixinho: não olhes! Depois de alguns segundos de silêncio, ouvimos então os passos do homem que se vai embora. O meu fixer repetiu baixinho, quase em registo de súplica: não olhes! Não olhei.

Tenho tido a sorte durante as minhas reportagens de me ter cruzado com gente boa. Na sua grande maioria, se for necessário e se ainda estiverem disponíveis, não hesitarão em trabalhar comigo, da mesma forma que eu terei a certeza de que, com eles, o trabalho só não será feito se for de todo impossível.

NOTA: os nomes dos fixers que comigo têm trabalhado são omitidos por razões óbvias, mas a minha gratidão é eterna.

Artigo publicado no Courrier International edição de Março de 2018

Pinhal Novo, Março de 2018
José Manuel Rosendo

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