No momento em que termino este texto faltam poucas horas
para os egípcios começarem a votar nas eleições presidenciais: 26, 27 e 28 de
Março, são os dias da primeira volta – sendo certo que não haverá segunda. São
eleições onde não há lugar para a surpresa: Abdel Fatah al Sissi é o vencedor
anunciado. Al Sissi não é o único candidato, mas o seu único adversário (Moussa
Mostafa Moussa) é, simultaneamente, seu fervoroso apoiante, tendo feito
campanha por al Sissi até apresentar a própria candidatura no último minuto do
prazo.
Todos os outros putativos candidatos foram presos ou “desencorajados”
com destaque para o General Sami Anan, antigo chefe do Estado-Maior, que foi
preso poucas horas depois de anunciar a intenção de se candidatar, sob acusação
de ter violado a Lei militar; Ahmed Shafiq foi levado para um hotel, quando
regressou do exílio nos Emirados Árabes, e lá ficou até declarar que retirava a
candidatura; Mohammed Anwar Sadat, sobrinho do antigo Presidente Anwar al Sadat,
desistiu; Abdel Aboul Fotouh, antigo membro da Irmandade Muçulmana, foi preso. A
Irmandade Muçulmana está desarticulada e os militantes liberais ou de esquerda estão
presos ou calados com medo. Quanto a candidatos é isto.
O actual homem-forte do Egipto, Abdel Fatah al Sissi liderou
o golpe militar que afastou Mohammed Morsi, o primeiro civil eleito democraticamente
– democraticamente, de facto, com vários candidatos e até com uma segunda volta
em que derrotou Ahmed Shafiq, o último Primeiro-Ministro de Hosni Moubarak – e depois
venceu as presidenciais de 2014 com 96,9% dos votos. A votação por estes dias
não deverá ser diferente e todos sabemos o que significam resultados deste género.
Os egípcios enfrentam uma forte crise económica e apesar de
muitos falarem em recuperação, a tormenta continua com quase 30 milhões de
pessoas na pobreza e números de desemprego impressionantes. Quatro anos após a
Irmandade Muçulmana ter sido afastada do poder, o Egipto recebeu (em 2017) 8,3
milhões de turistas, quando em 2010 (ainda com Hosni Moubarak) tinha recebido
14,7 milhões.
A alegada segurança de que Al Sissi é o guardião no Egipto
parece ser o valor maior para um Ocidente que recusa olhar para a tenebrosa
situação em matéria de direitos humanos. “Há uma repressão sem precedentes e
muito pior do que no tempo de Moubarak. Assemelha-se à situação na Síria com
Hafez al Assad (pai de Bashar al Assad), diz Amr Magdi, investigador da Human
Rights Watch para o Médio Oriente.
Na sequência do golpe militar que derrubou Mohammed Morsi, a
Irmandade Muçulmana foi considerada “organização terrorista” e centenas de
apoiantes foram condenados à morte ou a prisão perpétua, entre eles o próprio Mohammed
Morsi e também o guia espiritual Mohammed Badie. Algumas destas penas foram,
entretanto, revistas. Muitos dos que participaram na revolta que derrubou Hosni
Moubarak estão também atrás das grades com penas de prisão perpétua; as
Organizações Não Governamentais trabalham sob controlo apertadíssimo; os órgãos
de informação estão mais do que controlados, há centenas de páginas de Internet
bloqueadas e o Egipto está em 161º lugar entre 180 países na classificação dos
Repórteres sem Fronteiras.
Al Sissi foi à televisão deixar um aviso claro aos
jornalistas: qualquer “insulto” ao exército ou à polícia será considerado
difamação do país e alta traição.
O Egipto continua a receber uma enorme ajuda militar dos
Estados Unidos e, em 2015, acertou com a França a compra de aviões caça por 6
mil milhões de Euros. Tal como Kadhafi ameaçou com a abertura de fronteiras
para deixar passar africanos que pretendiam chegar à Europa, al Sissi também disse
que se o Egipto não controlar as fronteiras quem vai sofrer é a Europa. O aviso
é simples: ou Al Sissi continua no poder ou o Egipto mergulha no caos e a
Europa paga a factura.
Al Sissi tem sido recebido por vários líderes ocidentais, e
também os tem recebido no Cairo. Já vimos este “filme” com outros líderes
(basta lembrar Kadhafi) que caíram em desgraça. Sabemos como vai acabar.
Por agora, Al Sissi terá o apoio genuíno de grande parte do
aparelho do exército e das forças de segurança, precisamente aqueles que
apoiavam Moubarak. Terá também o apoio dos cristãos coptas, embora nem todos.
Tal como como os Assad ou até Saddam Husseín, Al Sissi joga a cartada de uma
alegada protecção das minorias religiosas. E, certamente, terá o apoio dos que privilegiam
a segurança aceitando fechar os olhos aos atropelos a direitos fundamentais e
submetendo-se ao silêncio perante um todo poderoso poder político.
Recordo-me de estar no Cairo em plena revolta, com Hosni
Moubarak, teimoso, ainda agarrado ao poder. As ruas e a Praça Tahrir fervilhavam com
gritos de “o povo quer a queda do Raïs”, mas a televisão do Estado mostrava,
certamente com imagens gravadas, as margens nocturnas de um Nilo em
noites tranquilas onde nada acontecia.
Tal como em relação ao Rio Nilo sabemos onde é a foz mas não
temos certezas quanto ao local da nascente, também sabemos qual vai ser o
resultado das eleições presidenciais, embora ainda se discuta a verdadeira origem
da revolta que derrubou Hosni Moubarak e criou condições para a ascensão de
Abdel Fatah al Sissi. O Nilo continua a correr e Al Sissi vai continuar no
poder.
Pinhal Novo, 26 de Março de 2018
josé manuel rosendo
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