Foto retirada de informação disponibilizada pela ReliefWeb, serviço do gabinete da ONU para a coordenação de assuntos humanitários |
Há
quem diga que o nível de desenvolvimento de um país pode ser medido pela forma como
trata os velhos. É uma verdade intocável, mas não é menos verdade que a forma
como um Estado trata as suas crianças é ainda mais elucidativo, até porque as
mulheres e homens em que essas crianças se vão transformar, certamente não
esquecerão aquilo que (não) fizeram por elas. E isso, não tendo consequências nas
eleições mais próximas, acabará por ter consequências no futuro.
Mas
a questão nem é tanto essa, é mais a de saber se um Estado tem o direito de
abandonar as suas crianças, seja qual for o pretexto.
No
campo de Al Hol (nordeste da Síria) estão cerca de 3 mil crianças. São crianças
(acompanhadas das mães e de outras mulheres) que fugiram recentemente de
Baghouz, último reduto do Estado Islâmico (EI). Nesse contexto são consideradas
familiares de combatentes do EI. Algumas serão, outras não. A ONU já
alertou para este caso: as crianças não podem ser estigmatizadas como
terroristas por terem crescido em terras do Califado. Há outros campos, como o
de Roj, junto à fronteira com o Iraque e a Turquia (ver foto que ilustra este texto). É lá que estão duas
mulheres e três crianças portuguesas (ver reportagem de Rosário Salgueiro, na RTP, em 15 de Março de 2019) em situação semelhante.
A
ONU diz que há crianças de mais de 40 nacionalidades. Muitas são europeias.
Alemanha, França, Holanda e Bélgica são os países com maior quota nesta Babel
infantil. Portugal não escapa. Por agora, os países europeus demonstram a
indecisão do costume em matéria de política externa: empurram com a barriga
dizendo que procuram uma solução. Se fosse um qualquer défice orçamental que
estivesse fora dos parâmetros exigidos pelos Tratados, já estaríamos a assistir
a um frenesim de reuniões em Bruxelas. Depois ainda há quem não entenda porque
é que as pessoas se afastam do “projecto europeu”.
Para
além da indecisão habitual, e de uma atitude que parece traduzir a esperança de
que o problema se resolva sozinho, é bom lembrar aos governantes que estamos a
falar de Direitos Humanos. Os discursos bonitos na Assembleia Geral das Nações
Unidas têm de ter uma correspondência prática e basta passar os Olhos pela
Convenção (da ONU) sobre os Direitos da Criança para, se outras questões não
houvesse, logo encontrarmos a principal: “Todas as crianças têm o direito inerente à vida, e o
Estado tem obrigação de assegurar a sobrevivência e desenvolvimento da criança”.
Para que não
existam diferenças na relação do Estado com as crianças, a mesma Convenção
deixa tudo muito claro: “Todos os direitos se aplicam a todas as crianças sem
excepção. O Estado tem obrigação de proteger a criança contra todas as formas
de discriminação e de tomar medidas positivas para promover os seus direitos”.
Dito
isto, os governantes que sempre nos falam de um Estado de Direito Democrático,
não podem fazer de conta, a não ser que queiram deitar fora tudo o que têm
aprovado ao longo dos anos e que gostam de citar nos tais discursos em palcos
mediáticos.
Entretanto,
alguns países tomaram decisões: a França – que teve um plano de repatriamento
previsto, mas não o concretizou – acabou por aceitar algumas crianças órfãs e sozinhas
com menos de 5 anos; a Suíça diz que não coloca entraves ao regresso de
adultos, mas nada fará para isso; A Áustria trilha o mesmo caminho; a Alemanha
retirou a cidadania alemã a cidadãos que juraram lealdade ao EI; o Reino Unido
tirou a cidadania a uma jovem que se juntou ao EI quando tinha 15 anos – 15 anos;
a Bélgica recusou o repatriamento de duas mulheres e seis crianças. Portugal
está atento. É o que se vai sabendo.
Com
decisões de sentido oposto: Marrocos repatriou oito pessoas suspeitas de ligação
ao EI e a Bósnia está a preparar o repatriamento de dois combatentes do EI.
As
Forças Democráticas da Síria, tendo problemas suficientes, reclamam o
repatriamento dos combatentes do EI por parte dos países de origem; No Iraque
há estrangeiros a serem julgados e, segundo o Presidente iraquiano, arriscam a
pena de morte, enquanto defensores dos Direitos Humanos denunciam os riscos de
tortura durante os interrogatórios.
No
caso concreto dos países europeus, os nossos políticos gostam de dizer que a
Europa é a região com melhor Índice de Desenvolvimento Humano (Longevidade,
Educação e PIB – Portugal está em 41º lugar). Poderá ser verdade em termos
estatísticos, mas há outros dados que não entram nesta equação. Aliás,
verificando a lista e conhecendo alguns países – vendo misérias, luxos e
disparidades – o valor deste Índice é muito relativo. Os avanços
civilizacionais medem-se de outra forma.
Um
Estado que assuma a Democracia em toda a sua plenitude, jamais poderá fazer
dos Direitos Humanos uma questão menor, antes pelo contrário. E é tão só disso
que se trata: Direitos Humanos. Seja para as crianças, obviamente vítimas da
guerra e nunca culpadas do que aconteceu na Síria e no Iraque, seja para as
mães – algumas juntaram-se ao EI ainda no início da adolescência – e também
para os próprios combatentes do EI. Não há aqui nenhuma tentativa de desculpabilização dos
crimes cometidos, mas um criminoso é também um ser humano e não há Tratado, Lei
ou Convenção Internacional que permita que as pessoas sejam abandonadas como se
fossem lixo tóxico. Todos devem ser repatriados. As crianças ajudadas, as mães
e os combatentes investigados e julgados. É assim que funciona um Estado de
Direito Democrático. O resto é estar a ser igual ou muito parecido ao que se
pretende que fique longe de portas.
Ter uma nacionalidade é muito mais do que
ter um cartão do cidadão ou um passaporte: é fazer parte de um país! E não é
por acaso que a nacionalidade é algo que ninguém nos pode retirar (a não ser a
quem tenha mais do que uma nacionalidade e terá de ficar sempre com uma). Principalmente os países europeus, alguns com
centenas de séculos de História nacional, têm obrigação de entender que é
assim.
Não
pode haver lugar ao cinismo da política internacional quando está em causa a
vida de milhares de pessoas.
Pinhal
Novo, 17 de Março de 2019
josé
manuel rosendo