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domingo, 17 de março de 2019

Como se designa um Estado que não cuida das suas crianças?

Foto retirada de informação disponibilizada pela ReliefWeb, serviço do
gabinete da ONU para a coordenação de assuntos humanitários


Há quem diga que o nível de desenvolvimento de um país pode ser medido pela forma como trata os velhos. É uma verdade intocável, mas não é menos verdade que a forma como um Estado trata as suas crianças é ainda mais elucidativo, até porque as mulheres e homens em que essas crianças se vão transformar, certamente não esquecerão aquilo que (não) fizeram por elas. E isso, não tendo consequências nas eleições mais próximas, acabará por ter consequências no futuro.

Mas a questão nem é tanto essa, é mais a de saber se um Estado tem o direito de abandonar as suas crianças, seja qual for o pretexto.

No campo de Al Hol (nordeste da Síria) estão cerca de 3 mil crianças. São crianças (acompanhadas das mães e de outras mulheres) que fugiram recentemente de Baghouz, último reduto do Estado Islâmico (EI). Nesse contexto são consideradas familiares de combatentes do EI. Algumas serão, outras não. A ONU já alertou para este caso: as crianças não podem ser estigmatizadas como terroristas por terem crescido em terras do Califado. Há outros campos, como o de Roj, junto à fronteira com o Iraque e a Turquia (ver foto que ilustra este texto). É lá que estão duas mulheres e três crianças portuguesas (ver reportagem de Rosário Salgueiro, na RTP, em 15 de Março de 2019) em situação semelhante.

A ONU diz que há crianças de mais de 40 nacionalidades. Muitas são europeias. Alemanha, França, Holanda e Bélgica são os países com maior quota nesta Babel infantil. Portugal não escapa. Por agora, os países europeus demonstram a indecisão do costume em matéria de política externa: empurram com a barriga dizendo que procuram uma solução. Se fosse um qualquer défice orçamental que estivesse fora dos parâmetros exigidos pelos Tratados, já estaríamos a assistir a um frenesim de reuniões em Bruxelas. Depois ainda há quem não entenda porque é que as pessoas se afastam do “projecto europeu”.

Para além da indecisão habitual, e de uma atitude que parece traduzir a esperança de que o problema se resolva sozinho, é bom lembrar aos governantes que estamos a falar de Direitos Humanos. Os discursos bonitos na Assembleia Geral das Nações Unidas têm de ter uma correspondência prática e basta passar os Olhos pela Convenção (da ONU) sobre os Direitos da Criança para, se outras questões não houvesse, logo encontrarmos a principal: “Todas as crianças têm o direito inerente à vida, e o Estado tem obrigação de assegurar a sobrevivência e desenvolvimento da criança”.
Para que não existam diferenças na relação do Estado com as crianças, a mesma Convenção deixa tudo muito claro: “Todos os direitos se aplicam a todas as crianças sem excepção. O Estado tem obrigação de proteger a criança contra todas as formas de discriminação e de tomar medidas positivas para promover os seus direitos”.

Dito isto, os governantes que sempre nos falam de um Estado de Direito Democrático, não podem fazer de conta, a não ser que queiram deitar fora tudo o que têm aprovado ao longo dos anos e que gostam de citar nos tais discursos em palcos mediáticos.

Entretanto, alguns países tomaram decisões: a França – que teve um plano de repatriamento previsto, mas não o concretizou – acabou por aceitar algumas crianças órfãs e sozinhas com menos de 5 anos; a Suíça diz que não coloca entraves ao regresso de adultos, mas nada fará para isso; A Áustria trilha o mesmo caminho; a Alemanha retirou a cidadania alemã a cidadãos que juraram lealdade ao EI; o Reino Unido tirou a cidadania a uma jovem que se juntou ao EI quando tinha 15 anos – 15 anos; a Bélgica recusou o repatriamento de duas mulheres e seis crianças. Portugal está atento. É o que se vai sabendo.

Com decisões de sentido oposto: Marrocos repatriou oito pessoas suspeitas de ligação ao EI e a Bósnia está a preparar o repatriamento de dois combatentes do EI.

As Forças Democráticas da Síria, tendo problemas suficientes, reclamam o repatriamento dos combatentes do EI por parte dos países de origem; No Iraque há estrangeiros a serem julgados e, segundo o Presidente iraquiano, arriscam a pena de morte, enquanto defensores dos Direitos Humanos denunciam os riscos de tortura durante os interrogatórios.

No caso concreto dos países europeus, os nossos políticos gostam de dizer que a Europa é a região com melhor Índice de Desenvolvimento Humano (Longevidade, Educação e PIB – Portugal está em 41º lugar). Poderá ser verdade em termos estatísticos, mas há outros dados que não entram nesta equação. Aliás, verificando a lista e conhecendo alguns países – vendo misérias, luxos e disparidades – o valor deste Índice é muito relativo. Os avanços civilizacionais medem-se de outra forma.

Um Estado que assuma a Democracia em toda a sua plenitude, jamais poderá fazer dos Direitos Humanos uma questão menor, antes pelo contrário. E é tão só disso que se trata: Direitos Humanos. Seja para as crianças, obviamente vítimas da guerra e nunca culpadas do que aconteceu na Síria e no Iraque, seja para as mães – algumas juntaram-se ao EI ainda no início da adolescência – e também para os próprios combatentes do EI. Não há aqui nenhuma tentativa de desculpabilização dos crimes cometidos, mas um criminoso é também um ser humano e não há Tratado, Lei ou Convenção Internacional que permita que as pessoas sejam abandonadas como se fossem lixo tóxico. Todos devem ser repatriados. As crianças ajudadas, as mães e os combatentes investigados e julgados. É assim que funciona um Estado de Direito Democrático. O resto é estar a ser igual ou muito parecido ao que se pretende que fique longe de portas. 

Ter uma nacionalidade é muito mais do que ter um cartão do cidadão ou um passaporte: é fazer parte de um país! E não é por acaso que a nacionalidade é algo que ninguém nos pode retirar (a não ser a quem tenha mais do que uma nacionalidade e terá de ficar sempre com uma). Principalmente os países europeus, alguns com centenas de séculos de História nacional, têm obrigação de entender que é assim.

Não pode haver lugar ao cinismo da política internacional quando está em causa a vida de milhares de pessoas.

Pinhal Novo, 17 de Março de 2019
josé manuel rosendo

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