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segunda-feira, 30 de setembro de 2019

O comodismo da Amarsul


Não é compreensível a opção que a Amarsul fez em relação aos novos contentores para recolha de materiais recicláveis. As “bocas” de entrada dos novos contentores são demasiado pequenas e não contribuem em nada para melhorar os níveis de separação do lixo e a consequente reciclagem.

É surpreendente, em termos de imagem, o tiro dado no pé, por uma empresa cujo único negócio é o lixo, num momento em que a questão ambiental ganha visibilidade. Mesmo que por qualquer razão fosse bom para as finanças da empresa, e esquecendo até por um momento o interesse de quem a Amarsul devia servir, qualquer estagiário de marketing teria percebido que talvez fosse melhor não optar por este tipo de contentores.

Presumo que qualquer família acumula algum papel, embalagens e garrafas (eventualmente em pequenos contentores domésticos, ou de outra forma) e depois de reunir alguma quantidade desses produtos deposita-os no respectivo contentor. Não me parece que ao chegar ao contentor alguém esteja a retirar embalagens de iogurte, garrafas de plástico, embalagens de shampoo ou gel de banho, plásticos sujos, para as colocar uma por uma no respectivo contentor. Não vai dar resultado. Quanto às “bocas” do contentor de papel, cabem lá os jornais velhos e pouco mais. Podemos esgrimir o argumento que as pessoas devem ter o cuidado de cortar as caixas de cartão e de que não custa nada colocar as embalagens uma a uma. Podemos, sim, mas sabemos que não vai dar resultado.

Aliás, é quase caricato que, Sandra Silva, Presidente do Conselho Executivo da Amarsul, tenha afirmado em entrevista ao Jornal do Pinhal Novo que tem a percepção que “a maioria das pessoas não separa (o lixo) por comodismo, porque dá trabalho. Não é porque não sabem onde têm de colocar os resíduos”. Sandra Silva terá alguma razão, mas não será a dificultar a colocação dos resíduos nos contentores que esta situação se altera. Aliás, Sandra Silva justifica a alteração das “bocas” dos contentores de resíduos de uma forma pouco crível: “ou não fazíamos qualquer redução nas bocas e iríamos verificar que os indiferenciados seriam colocados no ecoponto, ou reduzíamos as bocas”.
Não sei se será assim noutros sítios, mas o que vejo perto de minha casa é precisamente o contrário: resíduos (garrafas, cartão, papel e plásticos) colocados no contentor de lixo indiferenciado, e não o lixo indiferenciado nos ecopontos. Acontece, mas não é o principal problema.

Deduz-se das declarações da presidente da Amarsul que havendo uma atitude incorrecta das pessoas ao não separarem o lixo ou não o colocando no contentor certo, não teria sido possível sensibilizá-las para alterarem essa atitude e por isso mudaram as “bocas” dos contentores; mas, agora, a presidente da Amarsul considera possível sensibilizar as pessoas para colocarem embalagens uma a uma (sujas, precisamente porque serviram para alguma coisa...) e papel/cartão em “bocas” de dimensão mínima.

Aliás, seria muito melhor que os novos contentores tivessem informação em lugar de destaque e com dimensão adequada sobre o fim a que se destinam. Mas não têm. Essa informação necessária está num autocolante manhoso numa das esquinas do contentor, que ficará ainda pior após dois meses de sol. O que é possível ver em destaque nos contentores é o nome e o slogan da Amarsul, a bandeira da União Europeia, o programa “Portugal 2020” e POSEUR (Programa Operacional Sustentabilidade e Eficiência no Uso de Recursos), como se isso fosse mais importante para as pessoas. Há gente que não sabe fazer as coisas e dá sinal de que nunca irá aprender.

Convém sublinhar que a Amarsul existe (ou devia existir...) para servir as pessoas dos concelhos da margem sul do Tejo; não são as pessoas que devem servir a Amarsul. Contrariando essa perspectiva, é a empresa que dá sinal de grande comodismo ou até de um quero, posso e mando, inexplicável e inaceitável. A Amarsul tem a Mota-Engil como acionista maioritário. Ninguém tem uma bola de cristal, mas não será nenhuma surpresa que esta opção da Amarsul provoque uma redução da quantidade de resíduos recolhidos para reciclagem. Isso significará um aumento do lixo indiferenciado. E tal como a própria presidente da Amarsul alerta, significará também que mais os Municípios vão pagar à Amarsul e mais nós vamos pagar na nossa factura da água. Quem ficará a ganhar com isto?

Pinhal Novo, 30 de Setembro de 2019

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josé manuel rosendo

quarta-feira, 25 de setembro de 2019

Oh Jerusalém

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Partilho este texto publicado no "À Margem da Literatura", volume que é uma iniciativa da UCCLA (União das Cidades Capitais de Língua Portuguesa) e que resulta do VII Encontro de Escritores de Língua Portuguesa e da 6ª edição do Festival Literário de Macau - Rota das Letras. 

A revisão competente, e que muito beneficiou o texto, é de Rosário Rosinha, a quem agradeço.


TEXTO PUBLICADO

Começo por um livro, porque por um livro pode começar uma longa viagem. Sem que inicialmente nos apercebamos disso, nem tenhamos comprado bilhete, os livros podem surpreender-nos de tal forma que acabamos a fazer caminhos nunca imaginados e a eles ficamos eternamente gratos, principalmente quando a viagem se revela enriquecedora e o caminho abre horizontes, tantas vezes dolorosos, para nós, para os nossos, e para outros, mas ao mesmo tempo magníficos e belos.
Estava de partida para a Palestina, em 2004, quando comprei alguns livros que abordam esse quase eterno conflito israelo-árabe-palestiniano. Recordo-me que um deles, “Oh Jerusalém”, uma 2ª edição da Bertrand de 2001, de Dominique Lapierre e Larry Collins, contribuiu para a minha grande paixão nos anos que se seguiram: o Médio Oriente e esse imenso e complexo tabuleiro que, dia após dia, me esforço por entender, descodificar – do qual tenho sempre a sensação de não saber quase nada – partilhando essa aprendizagem através do exercício do jornalismo. “Oh Jerusalém” são mais de 600 páginas de uma maravilha pura e de um fascínio que vão acompanhar-me sempre. Lapierre e Collins apertaram o gatilho da minha ânsia de conhecimento que, até hoje, continua, e em crescendo. Um livro, por muito que nos ensine, só é um livro extraordinário se nos provocar inquietação e desassossego.
Viajei para Jerusalém com “Oh Jerusalém” na bagagem de mão. As palavras de Lapierre e Collins aligeiraram, e de que maneira, a sensação de claustrofobia que os aviões me provocam e esgotaram-se numa cama de hotel logo após os primeiros dias na Cidade Santa. Não, não foi tempo perdido e reclamado pela reportagem. Foi conhecimento e contexto para o conflito que me levou a Jerusalém. E a reportagem ficou a ganhar. Que melhor local para finalizar uma leitura como esta!? E devo dizer que, não vos estando a escrever sobre um livro em língua portuguesa, ele acabou por conduzir-me ao “Egipto – notas de viagem”, de Eça de Queirós. E a outros autores portugueses, como por exemplo Adalberto Alves, e aos escritos de António José Rodrigues, ou a autores estrangeiros – tantos – como Amira Hass ou o Nobel Naguib Mahfouz. Livros e autores de que porventura nem teria sabido da sua existência se não me tivesse cruzado com o “Oh Jerusalém”. E tive ainda essa possibilidade de entrevistar o “Livreiro de Cabul” real, Shah Muhammad Rais, tornado célebre (com o nome de Sultan) devido ao livro da jornalista norueguesa Asne Seierstad. O livreiro de Cabul, zangado, sentindo-se traído e insultado, também escreveu um livro em resposta ao livro de Asne Seierstad, em que acusa a autora de se ter enganado na interpretação do contexto da vida social afegã e de, assim, se ter equivocado na essência da temática que constitui o livro. Que bela tarde passei na livraria de Shah Muhammad Rais, bebendo chá, sentado ao lado de um livro em lugar de destaque com a fotografia de Osama Bin Laden, ouvindo a versão de Shah, e de onde ainda trouxe um livro –The Debris of Dreams – de poemas de amor da afegã Marghana Sharq, editado no tempo do domínio soviético.
A nossa memória, sempre selectiva, faz uma escolha de pormenores que não sabemos explicar. Em relação ao conflito israelo-árabe-palestiniano, de que trata Oh Jerusalém, recordo-me perfeitamente do atentado de Munique, quando um comando palestiniano sequestrou parte da equipa de Israel que disputava os Jogos Olímpicos. As fotos de Eduardo Gageiro nesse Setembro de 1972, tinha eu 11 anos, ficaram para nos refrescar a memória. Todos sabemos o que aconteceu nesse mês de Setembro, em Munique, e não é isso que agora vem ao caso. E também me lembro, não sei porquê, de ver, em casa dos meus pais, na televisão em cima de uma pequena mesa a um canto da cozinha… lembro-me… estou a ver e a ouvir, Rui Romano, nas notícias na RTP, a referir-se aos “terroristas” dos países africanos que Portugal então colonizava. Era essa a nomenclatura e a ela não se podia fugir. Mas recordo-me perfeitamente que foi essa a primeira vez que a palavra “terrorismo” entrou no meu ainda reduzido léxico. E não sei o porquê de me recordar destas coisas, mas recordo-me. E é essa outra faceta da viagem que também me fascina, aquela a que a nossa memória nos transporta sem que façamos seja o que for para que isso aconteça. Pergunto-me até se algo de insondável nos formata os mecanismos da memória para que ela registe aqueles momentos que mais tarde se vão revelar elementos associados aos nossos interesses de estudo, investigação e trabalho.
As minhas viagens, a esmagadora maioria, foram viagens de trabalho em reportagem para a rádio pública portuguesa. Já imaginam a felicidade de quem pode fazer o que gosta, é pago para isso, e ainda lhe pagam as viagens. Há outras viagens, é certo, como por exemplo ao cemitério do Escoural para colocar flores nas sepulturas da família depois da pedra mármore ser escovada e lavada até ficar de um branco imaculado. Ou as viagens ao Norte, a Viana do Castelo, onde durante a noite e enquanto o sono não chegava, ia sabendo as horas através do sino de Santa Luzia. Ou ainda as pequenas viagens diárias à vacaria de onde trazíamos o leite tirado directamente das vacas e onde, por vezes, me deixava ficar em dia que uma vaca parideira estivesse quase a dar à luz. O senhor Diamantino ensinou-me então a pegar na palha, que servia de cama à mãe vaca, para melhor segurar e puxar as patas da cria, ajudando-a a nascer. Recordo-me de ver essas vacas mães a olharem para trás na busca de um primeiro olhar ao filho que estava a nascer. Não sei se estas viagens de que vos falo nestas últimas linhas são grandes ou pequenas viagens, mas por alguma razão as guardei na memória.
No entanto, é de outras viagens que vos quero falar. Daquelas que nos levam para longe de casa, para povos e culturas com quem nunca contactámos. Viagens que nos obrigam, e ainda bem, a reformular ideias e conceitos, que nos confrontam com o nosso ser e que, no meu caso, desmontam muito do que até esse momento eu pensava que sabia, fruto de uma narrativa que eu não tinha forma de questionar.
No Outono de 2004, depois de várias passagens pelo Iraque, na sequência da invasão que levou à queda de Saddam Husseín, respiro pela primeira vez o ar de Jerusalém. Não sei se devido a esse contacto, até hoje gosto muito mais de cidades com história e com memória, em detrimento de cidades chamadas modernas, repletas de avenidas largas e edifícios altos e envidraçados. Prefiro, de longe, as pedras e os locais da História às propostas de uma alegada modernidade desprovida de sentido. Jerusalém tem isso e tem pessoas que são, também elas, são uma espécie de História viva. Tendo lido “Oh Jerusalém”, não tive qualquer dificuldade em perceber que, ainda hoje, aquelas pessoas com quem nos cruzamos dentro do muro da Cidade Velha poderiam ser precisamente as mesmas pessoas de que Dominique Lapierre e Larry Collins nos falam.
Dentro das cidades, das montanhas ou das planícies, é a vida das pessoas que importa. Em locais culturalmente muito diferentes, o estrangeiro não passa despercebido. Por muito que tente vestir roupa local e esconder as referências ocidentais (no meu caso), o tempo de resistência do disfarce é mínimo. Se tivermos necessidade de comunicar directamente com os locais, é uma questão de segundos. Depois das saudações tradicionais na língua nativa, não há mais conversa. É esse o momento em que os papéis se invertem: o jornalista, habituado a fazer perguntas, passa a responder às perguntas que servem para saber quem ele é, de onde vem, e o que anda por ali a fazer. São aquelas situações em que se confirma plenamente a convicção de que não há uma segunda oportunidade para provocar uma boa impressão. Ou o chá transborda do copo de vidro e está bem doce, ou vai ser difícil fazer amigos.
Para quem gosta de escrever, para quem gosta de contar histórias, a rádio é uma permanente frustração. Embora também exista uma escrita característica da rádio – tantas vezes contestada pelos linguistas e puristas da língua – a frustração a que me refiro está relacionada com o que fica por contar, sacrificado em nome da necessidade de os ouvintes entenderem a mensagem de forma clara, de modo a não se perderem, travados por uma qualquer palavra ou frase que, por ser mais elaborada, atrapalhe a percepção da mensagem.
Os ouvintes não podem voltar atrás para retomar a leitura, como amiúde fazemos quando temos um livro na mão. E é essa característica do meio que impõe um travão, ou melhor dizendo, que nos convida a um estilo de escrita mais condicionado onde algumas liberdades de estilo tendem a ser evitadas.
Talvez que um bom livro também seja assim: percorrido da primeira à última página, sem tropeções que nos façam voltar atrás, não significando isso que a escrita seja básica ou o raciocínio do autor seja simplista. Voltar atrás, num bom livro, deve apenas significar ter o prazer de o reler, seja uma meia-dúzia de páginas, seja de fio a pavio.
Não me parece correcta a afirmação de que o jornalismo é uma espécie de literatura apressada. Sê-lo-á no sentido de que o texto jornalístico, imprensa ou rádio – excluo a televisão porque a imagem também conta parte da história e a escrita é muito condicionada por esse elemento – é construído, na maioria dos casos, sempre a olhar para os ponteiros do relógio. Há sempre um jornal ou uma revista que espera o texto e a contagem decrescente a caminho da hora de fecho não perdoa; há sempre um noticiário que espera a peça de reportagem que já devia ter passado no noticiário anterior e que não pode ter mais de dois minutos. E já é uma excepção. Estas duas situações não permitem grandes oportunidade de revisão apurada de texto, de uma mais eficaz construção de frases, até, por vezes, de corrigir a pontuação. No caso da rádio é sempre possível melhorar a forma de dizer o que está escrito (e assim foi escrito – para ser dito); é sempre possível melhorar a respiração, a pronúncia, o tom, a convicção da voz, e por aí fora. São essas frustrações que ficam e uma outra que, sendo frustração assumida, não anula o prazer do que fica feito. E essa frustração maior – no meu caso – é a de deixar de fora o que não pode ser contado em um minuto e meio de rádio.
Já senti muitas vezes a tentação de deixar de lado o gravador áudio e agarrar-me ao bloco de notas. Já me aconteceu registar de forma tão frenética o que me passa à frente dos olhos que acabo a ter dificuldade em entender a minha própria escrita. Há momentos em que são tantas as coisas para registar que quase apetece pedir uma cadeira e ficar ali, apenas a escrever, indiferente às consequências que possam resultar de ficar, por vezes, em locais pouco aconselháveis. Há pessoas, há expressões, há trocas de palavras, há frio e calor, pó e chuva, sapatos empoeirados e roupas rasgadas, esgares de sofrimento, gritos de alegria, música e choros, vidas que mudam num ápice, gente que se transforma, armas que cospem fogo, uma mão que pede ajuda, um desconhecido que nos acolhe, um prato de arroz que se divide.
Sinto, por vezes, na condição de jornalista a que não consigo fugir, e tentando, a partir de um outro ponto de observação, olhar-me a mim próprio, o que me parece ser uma atitude quase egoísta, cínica até, por estar em sítios dos quais apenas quero contar e trazer a história. Se não existisse uma guerra, com todas as consequências que isso implica para as pessoas envolvidas, eu não estaria ali e não teria aquela história para contar. Sei que não é o jornalista que provoca a guerra, mas este é um dilema que não consigo resolver: o de querer contar a história e, ao mesmo tempo, preferir não ter de a contar.

É por isso que a literatura, apressada ou não, em forma de livro ou de um qualquer texto, é também uma urgência para tentar compreender e dar a conhecer o mundo e o outro, que – como alguém já disse – somos nós. A literatura que nos acompanha numa primeira viagem pode muito bem levar-nos a querer partir uma e outra vez. Se um livro, por uma vez, provocar essa vontade de partir, despertando a vontade e a necessidade sentida de conhecer, será sem dúvida um belo livro.

josé manuel rosendo
Pinhal Novo, 2 de Dezembro de 2017

segunda-feira, 23 de setembro de 2019

Falta saber de onde partiu o ataque à Arábia Saudita. E quem é responsável. Houthis, Irão, Iraque ou...?

Houdeida, cidade portuária no Iémen, voltou a ser bombardeada pela Arábia Saudita após os ataques às instalações petrolíferas sauditas. Foto: jmr, Julho 2019




























Analisar a guerra no Iémen não é fácil e a leitura que aponta para uma guerra entre sunitas e xiitas é absolutamente redutora e não retrata a realidade. Se o conflito já tinha contornos bastante opacos, agora, com o ataque às instalações petrolíferas da Arábia Saudita e com a incerteza quanto à autoria desses ataques, tudo ficou ainda mais difícil.
Nada disto tem uma leitura fácil, no sentido de haver “os bons e os maus” ou de se saber exactamente o que motiva cada acção/movimento num conflito armado. Tem sido sempre assim, mas isso deve obrigar-nos a especiais cuidados na análise e ainda mais nas conclusões. 

Sabemos que os Houthis do Iémen reivindicaram o ataque à Arábia Saudita (como muitos outros que fizeram anteriormente) e disseram que é uma resposta aos constantes bombardeamentos de que são alvo por parte da coligação liderada pela Arábia Saudita.

Esta assunção da responsabilidade por parte dos Houthis parece não agradar à Arábia Saudita e aos Estados Unidos e desde o início que o dedo acusador de Riad e de Washington aponta para Teerão. Ainda foi admitida a possibilidade de o Iraque ter sido ponto de partida do ataque, mas Bagdad negou e não se voltou a falar nisso.

Teerão também rejeita responsabilidade, mas a Arábia Saudita mostrou o que disse ser provas inegáveis do envolvimento do Irão. Segundo Riad, terão sido utilizados 25 drones e mísseis contra as instalações sauditas, incluindo um avião não-tripulado iraniano e mísseis de cruzeiro Ya Ali (construídos no Irão). O Ministério da Defesa saudita disse que o ataque chegou do Norte e foi inquestionavelmente patrocinado pelo Irão. Isto é o que temos: uma convicção e restos de material iraniano.

Para o Secretário de Estado norte-americano, Mike Pompeo, existe um consenso no Golfo de que a responsabilidade é do Irão e que o ataque às instalações sauditas foi “um acto de guerra”. É certo que Pompeo também disse que quer uma solução pacífica, mas Washington já decidiu reforçar a sua presença militar na Arábia Saudita. A incerteza e a falta de provas concretas traduzem-se em declarações reproduzidas na comunicação social e atribuídas a altos responsáveis norte-americanos, mas sempre a coberto do anonimato.

Não deixa de ser curioso que depois das acusações ao Irão, a Arábia Saudita tenha bombardeado alvos em Houdeida (cidade portuária no Iémen) com o argumento de que daí partiam ataques com mísseis e drones.

Temos ainda na memória os recentes ataques a petroleiros no Golfo de Omã. O dedo acusador foi inicialmente apontado ao Irão, houve muito burburinho, mas tudo se perdeu na espuma dos dias: de concreto, rigorosamente nada! Houve sim, mais sanções, que os donos do mundo aplicam, sempre que entendem, a seu bel-prazer. E também temos na memória a forma como a Arábia saudita tentou negar responsabilidade no assassínio do jornalista Jamal Khashoggi, até ter de se render às evidências.

A situação criada com o mais recente ataque à Arábia Saudita coloca-nos ainda uma questão incontornável para podermos ter uma noção sobre o que realmente aconteceu: tenha sido a partir do Yémen, do Irão ou do Iraque, como é possível que vários drones tenham voado centenas de quilómetros, sem deixarem rasto/registo, num território que deve ser dos mais vigiados do Mundo?

Será útil recordar que o Bahrein, a menos de cem quilómetros de Abqaiq - um dos locais atacados na Arábia Saudita - alberga a 5ª Frota da Marinha dos Estados Unidos (responsável pela região do Médio Oriente) e alberga também uma base britânica. Na região há também outras bases norte-americanas. Não sendo especialista em Defesa, tenho dificuldade em perceber como é que drones, aviões não-tripulados e mísseis, cruzam este território – um dos mais vigiados do mundo – sem serem detectados. Dizem os entendidos que os drones podem voar quase rente ao solo e por isso difíceis de detectar... E que nem sempre os satélites e os radares estão “apontados” para as zonas que terão sido utilizadas nos ataques. Dizem-me também que até poderão eventualmente ter sido detectados mas num momento em que já não havia tempo para a intercepção. Tudo isso pode ser verdade, e até pode ser que estejam agora a ser revistos os sistemas de vigilância da região para verificar se ficou registada a passagem dos instrumentos utilizados nos ataques. 

Perante situações anteriores em que a credibilidade de alguns protagonistas ficou de rastos, por terem forjado provas, será bom que as eventuais provas encontradas desta vez não deixem qualquer tipo de dúvidas.

Principalmente os Estados Unidos ficam muito mal neste episódio se a passagem dos drones, aviões e mísseis, não foi notada e dela não ficaram registos. 

Ou então teremos de questionar quem terá essa capacidade de utilizar drones, aviões não-tripulados e mísseis, sem deixar qualquer tipo de rasto.

Destes recentes ataques (aos petroleiros e às instalações petrolíferas sauditas) resultam dúvidas que importa esclarecer de forma muito rigorosa, sob pena de ganhar força a teoria de que alguém quer mesmo implicar o Irão e arrastar o mundo para mais uma guerra no Médio Oriente. Sabemos todos quem mais ganha com isso.

No meio deste desassossego, as Nações Unidas enviaram peritos à Arábia Saudita para tentar desvendar o mistério da responsabilidade do ataque. Até que mais alguma coisa se saiba, António Guterres referiu-se à necessidade de “nervos de aço” para evitar uma nova guerra.


Pinhal Novo, 23 de Setembro de 2019

josé manuel rosendo