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quinta-feira, 31 de outubro de 2019

O novo líder do Estado Islâmico

Cidade de Serin, Curdistão sírio, a sul de Kobani. Foto: jmr/30 de Outubro de 2015
Abu Ibrahim al Hachemi al Qurashi (ou Quraysh) terá sido escolhido pela Shura (assembleia) como sucessor de Abu Bakr al Baghdadi. A agência AMAQ anunciou a decisão ao mesmo tempo que confirmou a morte do antigo líder e também do antigo porta-voz, Abu al Hassan al Mouhajir.

Quem deu a notícia foi precisamente o novo porta-voz da organização Abu Hamza al-Qurashi, através de uma mensagem audio com sete minutos.

O novo Califa é assim Abu Ibrahim al Hachemi al Qurashi e o novo porta-voz passa a ser Abu Hamza al-Qurashi. O último nome de cada um dos dois novos protagonistas, significa que ambos são directamente descendentes da tribo do Profeta Maomé. O Profeta pertencia ao clã dos Hachemitas que por sua vez pertencia à tribo dos Coraixitas (Qurashi, ainda dominante em Meca). Reclamar esta descendência tem um significado óbvio. Aliás, foi também da mesma tribo que saíram os primeiros califas que sucederam ao Profeta Maomé. Para além dessa referência à tribo do Profeta, o nome do novo líder tem também a marca (al Hachemi - O Hachemita) do clã a que pertencia Maomé.

A informação sobre a nova liderança do Estado Islâmico é ainda escassa. Por exemplo, não se conhece nenhuma fotografia do novo líder. Quanto aos nomes revelados, eles podem ser apenas os "nomes de guerra", tal como acontecia com Abu Bakr Al Baghdadi, que na realidade tinha o nome de Ibrahim Awwad Ibrahim al-Badri (algumas fontes acrescentam Al Samarri, sinalizando o local de nascimento - Samarra).

A mensagem da nova liderança retoma um último apelo do antigo líder para que os combatentes libertem os militantes presos e recrutem mais combatentes para a causa do Califado. A mensagem incluiu ainda uma ameaça aos Estados Unidos, por celebrarem a morte do Califa, e promete continuar a luta do Estados Islâmico dentro e fora do Médio Oriente.

Não se sabendo ainda exactamente quem é o novo líder, fica também por saber que estratégia vai ser a do Estado Islâmico. Abu Bakr al Baghdadi não era um combatente, mas sim um líder religioso (extremista), sendo que muitos analistas se lhe referiram como "o pequeno Imam que chegou a Califa". Tinha com ele esse feito, marcante para os seguidores, de ter proclamado o Califado.

Devido à perda de influência e território, Abu Bakr al Baghdadi era, ultimamente, um líder acossado e em fuga. A nova liderança, como qualquer outra, vai querer deixar uma marca e afirmar-se. Apenas será possível ter uma ideia de como isso poderá ser feito quando se souber quem é, de facto, o novo líder. 
O nome apontado, Abu Ibrahim al Hachemi al Qurashi, não estava no lote dos que se perfilavam como potenciais sucessores do Califa. Nesse lote constavam vários antigos oficias de Saddam Husseín, não se sabendo ainda se foi algum deles a adoptar o nome que foi agora apresentado como novo Califa.

*** Algum do conteúdo deste texto poderá, obviamente, ficar rapidamente desactualizado. 

Pinhal Novo, 31 de Outubro de 2019
josé manuel rosendo

terça-feira, 29 de outubro de 2019

Donald Trump, o cão, e Abu Bakr al Baghdadi


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Abu Bakr al Baghdadi, aquando de uma alegada entrevista à Agência de Media do Estado Islâmico, Al Furqan.


O Presidente dos Estados Unidos há muito que nos habituou a uma desbragada incontinência verbal, mas ao contrário da tese de que não pode ser levado a sério, será de bom conselho estar muito atento a tudo o que diz. Não apenas porque é o Presidente da (ainda) maior potência mundial mas porque, podendo parecer apenas paleio de fanfarrão, tudo tem um sentido e um objectivo. A única coisa que permanece um mistério é se as frases que se transformam em notícia são da autoria do próprio ou têm origem no círculo que o apoia e lhe escreve os discursos e/ou as sequências de mensagens no twitter. De uma forma ou de outra, a mensagem representa o pensamento da actual administração norte-americana.

Donald Trump anunciou a morte de Abu Bakr al Baghdadi dizendo que o líder do Estado Islâmico se fez explodir num túnel durante uma operação de forças de elite norte-americanas no noroeste da Síria: “o bandido que tanto queria intimidar os outros passou os seus últimos momentos em pânico total, cheio de medo, aterrorizado pelas forças norte-americanas que o perseguiam”. Trump descreveu o momento ainda mais com mais pormenores: “morreu depois de correr num túnel sem saída, gemendo, chorando e gritando”, acrescentando que o líder do Estado Islâmico fez explodir um colete de bombas, suicidando-se e matando os três filhos que estavam com ele. Dito isto, Donald Trump rematou: “Morreu como um cão”. Não satisfeito, reforçou: “ele não morreu como um herói, morreu como um cão”.

É a esta frase (morreu como um cão) que é preciso dedicar especial atenção. Se os pormenores da operação dão que pensar, quanto mais não seja porque a fonte – Trump – não é de confiança, a comparação de Abu Bakr al Baghdadi a um cão, é um insulto que pode escapar aos não muçulmanos mas é profundamente significativa para a maioria dos seguidores do Islão. E, não querendo ficar por aqui, menos de 24 horas depois, eis que Donald Trump volta à carga, revelando que o líder do Estado Islâmico tinha sido encontrado por um...cão.  Através do twitter, o Presidente dos Estados Unidos revelou a foto (desclassificada) do “herói” mas disse que o nome do cão é mantido em segredo.

Foi encontrado por um cão e morreu como um cão, assim Donald Trump quis deixar vincada a morte do líder do Estado Islâmico. Com estas duas frases, Donald Trump tenta humilhar o inimigo, depois de morto, e ao mesmo tempo todos os Muçulmanos. E como não fossem suficientes todas as referências que já tinha feito a Abu Bakr al Baghdadi, Donald Trump ainda fechou uma conferência de imprensa na Casa Branca dizendo que “era um animal, um animal sem coragem”. Para além de constituírem uma fanfarronice, todas estas frases são uma imprudência perigosa. Não se humilham os inimigos e Donald Trump devia saber. Ou alguém lhe devia dizer.

Acossado internamente com um processo de destituição quase certo e desacreditado externamente em diferentes negociações de que não se vislumbra fim nem consequências, Donald Trump aposta na fuga para a frente, não medindo, ou estando-se nas tintas, para o mal que pode provocar ao mundo quando procura ofender a comunidade muçulmana desta forma. Verdade seja dita que um facínora como o líder do Estado Islâmico não fica a fazer qualquer falta, mas a ofensa e a humilhação ao inimigo eram dispensáveis, um verdadeiro estadista nunca as faria, e nada podem trazer de bom.

Sem surpresa, a elegância no trato e a ponderação nas palavras é algo que, definitivamente, não podemos esperar de Donald Trump. Mas também é algo obrigatório na atitude de um Presidente, dos Estados Unidos ou de qualquer outro país.


Pinhal Novo, 29 de Outubro de 2019
josé manuel rosendo


segunda-feira, 21 de outubro de 2019

Os curdos vão desistir? Claro que não!

Cartaz no Curdistão sírio em que se pode ver o líder do PKK, Abdullah Öcalan ladeado por mártires combatentes, as siglas das unidades curdas da síria (YPG e YPJ) e a frase: "Os nossos mártires são a nossa honra". Neste cartaz a Turquia é classificada como fascista. Fotografia: jmr/Abril 2019


A afirmação em título pode ser arriscada, mas é isso que a História nos diz. É impossível à Turquia, a não ser através de uma ocupação militar, contrária à Lei Internacional, impor uma zona de segurança com 30 quilómetros de profundidade ao longo de todo o norte da Síria (cerca de 480 km). Isso significaria a ocupação de uma enorme para do Curdistão sírio.

Nessa região (Rojava, entenda-se Curdistão Ocidental) que faz fronteira com a Turquia, desde o Verão de 2012 que o Partido da União Democrática (PYD), força política dominante entre os curdos da Síria, tenta criar instituições que construam a autonomia que os curdos desejam. Para isso foram criados três cantões (Afrin, Kobani e Jazira) e o sistema político de governação assenta numa democracia de base (quase democracia popular), inclusivo em relação a minorias e que tem como grande bandeira (aliás explorada à exaustão em muitas reportagens) a paridade entre homens e mulheres. As Unidades de Protecção Populares (braço armado do PYD) têm grupos de combate masculinos (YPG) e femininos (YPJ) lutando sob a mesma bandeira, sendo que a única diferença é a cor em que assenta a estrela vermelha e a sigla “YPG”: a dos homens é amarela, a das mulheres é verde.

Esta tentativa de construção de autonomia dos curdos da Síria passou muito despercebida porque as atenções estavam centradas na guerra civil na Síria e, depois, no combate ao Estado Islâmico (EI). Só quando a guerra em Kobani saltou para o topo das notícias, os curdos da Síria ganharam visibilidade, muito à custa da luta aguerrida que travaram e dos mártires que encheram os cemitérios.

Diga-se que o combate ao EI foi feito com o apoio aéreo da Coligação Internacional liderada pelos Estados Unidos, mas a derrota do EI e o recuo a que foi forçado, dificilmente teria sido conseguido sem as forças curdas com “botas no terreno”. A Turquia, do outro lado da fronteira (Kobani é em cima da linha de fronteira) “não mexeu uma palha” nesse combate aos fundamentalistas, tendo apenas autorizado a passagem de Peshmerga (forças militares dos curdos iraquianos) que foram em auxílio dos curdos da Síria. Aliás, basta recuar a fita do tempo para nos lembrarmos da relutância da Turquia em deixar entrar os sírios que fugiam do avanço do EI.

Neste contexto, é preciso entender o que está em jogo no Curdistão Sírio. Temos os curdos da Síria, que acabam de fazer um acordo com o Governo de Bashar Al Assad, para combaterem a invasão turca. Os curdos e Al Assad (quase) nunca se combateram desde que começou a guerra na Síria, sendo que as forças do governo foram obrigadas a retirar do norte do país devido a derrotas consecutivas na luta contra o então Exército Livre da Síria (que agora passou a Exército Nacional Sírio e é aliado da Turquia na invasão em curso) e também contra as milícias de génese religiosa, e mais tarde contra o EI. Al Assad esteve sempre a recuar até que o apoio da Rússia virou o destino da guerra mas, mesmo com o domínio curdo na região norte, as forças governamentais sempre mantiveram presença militar em pelo menos Qamishli (onde Al Assad tem uma base aérea) e Hassaqé. Temos depois a Turquia, que vê nos curdos (PYD e YPG) uma emanação do PKK (Partido dos Trabalhadores do Curdistão), com o qual mantém uma guerra no sudeste do país há mais de 30 anos. A Turquia tem razão neste aspecto porque os próprios curdos assumem essa ligação (até a bandeira das YPG tem a mesma estrela da bandeira do PKK), mas também não se pode esquecer que o próprio PKK enviou forças para combater o Estado Islâmico, nas montanhas de Sinjar (a montanha dos Yazidi) e na zona leste do Curdistão Sírio. A razão turca não chega para chamar terroristas às YPG. É aliás um absurdo a que apenas se pode fechar os olhos devido a um excessivo cuidado diplomático em não querer ofender o Presidente turco.
Os Estados Unidos fazem a dança do costume e descartam aliados como quem muda de camisa. Assumindo a ligação aos curdos da Síria na fase da luta contra o EI, batem em retirada depois de acertarem com a Turquia a invasão que está a decorrer, querendo surgir depois como arquitectos da trégua, ameaçando a Turquia com sanções e com Donald Trump a dizer que a guerra entre curdos e turcos é muito longe de casa e não é do interesse dos Estados Unidos.
A Rússia vai mediar e, a par com o Irão, terá muito mais possibilidades de evitar um confronto directo entre as forças militares sírias e turcas, porque vai chegar o momento em que muito provavelmente vão estar “frente a frente”. É a última coisa que a Kremlin pretende é ver dois países amigos a digladiarem-se.

Esta ofensiva turca no norte da Síria é a prova, se tal fosse necessário, de que o Conselho de Segurança das Nações Unidas está bloqueado e fica à vista de qualquer Estado com ambições expansionistas ou de guerrear um Estado vizinho, que basta ter capacidade militar para tal. A chamada “comunidade internacional” não vai passar das declarações desgarradas de condenação do acto. O Direito Internacional foi mais uma vez enviado às urtigas, e não será a última, porque o que está a acontecer é a violação clara da soberania de um Estado, por outro Estado.

Mas para além de todos estes considerandos sobre os protagonistas, há um aspecto que não deve ser negligenciado: há décadas que os curdos lutam pela autodeterminação, principalmente na Turquia e no Iraque. Os sucessivos governos turcos não os conseguiram derrotar, apesar do líder do PKK estar preso há cerca de 20 anos; no Iraque, nem Saddam Husseín conseguiu, mesmo depois dos massacres com que tentou conter as ambições curdas; na Síria os curdos, também tratados como cidadãos de “segunda ou terceira” pela família Assad, até a nacionalidade síria viram recusada. O PKK é bombardeado há anos até nas bases que mantém no Curdistão iraquiano.

O Curdistão, nos diferentes países por onde está dividido, tem diversas tonalidades políticas (algumas até muito divergentes) e diferentes formas de organização, mas há um sentimento que une os curdos: o direito ao Curdistão. Quem já andou pelas montanhas do Curdistão sabe que os curdos as conhecem como ninguém e é o ventre dessas montanhas que alberga o espírito da autonomia curda. Não há bola de cristal que nos mostre o caminho que a História vai seguir, mas quem quiser derrotar os curdos, talvez só tenha dois caminhos possíveis: assume um genocídio ou arrasa todas as montanhas da região. Se assim não for, os curdos vão resistir.

Pinhal Novo, 21 de Outubro de 2019
josé manuel rosendo