Páginas

quarta-feira, 23 de setembro de 2015

Estados Unidos e Rússia preparam “retirada” de Bashar al Assad para uma "nova Síria"


Praticamente desde o início da guerra na Síria que se fala da possibilidade de criação de um novo Estado que albergue Bashar al Assad e os Alauitas, ramo xiita a que pertence a família Assad. A "nova Síria" teria por base as províncias de Tartus e Lataquia, onde estão concentrados os Alauitas e que são as duas províncias mais a Oeste do actual território sírio, encostadas ao Mar Mediterrâneo.

Em termos puramente militares é por demais evidente a incapacidade das forças de Assad para recuperarem território: já perderam grande parte da Síria para as várias facções que combatem o regime mas que também combatem entre elas (por vezes em alianças de ocasião), apenas dominam a capital – ainda assim praticamente cercada –, as zonas controladas pelo Hezbollah libanês e algumas bolsas de terreno no resto do território, para além das duas províncias junto ao Mediterrâneo. Assad, enfrenta vários inimigos, conta com o apoio do Hezbollah libanês e de militares iranianos mas já não tem capacidade de recrutamento próprio. A confusão na Síria é muito grande. Arrumar a casa pode exigir um plano que comece por resolver o “problema Assad” e que passará por dar ao actual Presidente um território que seja étnica e religiosamente homogéneo. Depois se verá como pode evoluir o combate ao Estado Islâmico e quem ficará no que restar do território da actual Síria.

Os mais de quatro anos de guerra já provocaram mais de 240.000 mortos, vários milhões de refugiados e deslocados. Os países vizinhos albergam milhões de refugiados sírios e, também eles, querem ver rapidamente terminado uma guerra que facilmente pode galgar fronteiras. Os curdos capitalizam o esforço de guerra que têm feito contra o Estado Islâmico e vão certamente querer que isso se traduza em algo mais, quer na Síria quer no Iraque, sendo que na Turquia o governo dá sinais de não querer ser reactivo e já se apressou a tomar a iniciativa de modo a que os curdos não sintam qualquer margem de manobra a exigências que sempre assustaram Ancara. Se nada for feito a guerra na Síria só pode alastrar.

O entendimento Estados Unidos/Rússia conhecido nos últimos dias, com responsáveis militares dos dois países a discutirem a situação na Síria é um sinal claro de que algo está a ser preparado. Tem havido uma roda-viva nos corredores da diplomacia: Washington, Moscovo, Teerão, Riad, Omã, são algumas das capitais que guardam o segredo do que está a ser preparado. Dos últimos dias vem também a deslocação do Primeiro-Ministro israelita a Moscovo. O chefe da diplomacia síria esteve em Omã (deslocação rara a um país sunita), o chefe da secreta síria esteve em Riad… Teerão já terá um plano para a divisão da Síria que poderá ser um ponto de partida para um entendimento. Assad terá de perceber que não podendo ganhar esta guerra terá de perder alguma coisa para não perder tudo. Basta para isso que os interesses da Rússia sejam satisfeitos e que o Irão não estique demasiado a corda, até porque o acordo com o grupo dos 5+1 sobre o programa nuclear parece ser algo de que Teerão não se quer desviar.

Falta saber qual é a linha de fronteira no interior da Síria que Assad vai querer estabelecer e até pode acontecer que queira manter num futuro Estado algumas das cidades que há muito lhe escaparam da mão. Várias cidades, de Damasco a Aleppo, passando por Homs e Hamah, todas elas a poucos quilómetros da costa mediterrânica, seriam a cereja no topo do bolo da solução que parece estar a caminho. Assad pode ficar satisfeito com Lataquia e Tartus e mais uma faixa de território até Damasco. A fronteira com o Líbano é território em que pode ter a ajuda do Hezbollah. Todos os sinais apontam para que Assad aceite uma solução que lhe permita de algum modo salvar a face numa guerra que não pode vencer. Para trás fica terra queimada entregue a extremistas e a rebeldes que vão continuar a bater-se e onde as várias potências vão esgrimir argumentos, explorar apoios e fidelidades. Ainda assim a solução da “nova Síria” poderá também ser agarrada com ambas as mãos pelos rebeldes do Exército Livre da Síria, cansados de esperar por apoios externos que nunca chegaram.

Já se percebeu que os países ocidentais não querem colocar tropas no terreno. Também já se percebeu que os ataques aéreos da coligação internacional contra o Estado Islâmico não estão a conseguir alterar a situação. Por outro lado, já se viu que a Rússia está a enviar equipamento militar para as duas províncias junto ao Mediterrâneo (sem oposição dos Estados Unidos), sinal de que poderão estar a ser criadas as infra-estruturas militares mínimas que garantam a defesa de um futuro Estado de Assad. Se isso vier a acontecer, não é de todo desajustado considerar que é a Rússia quem mais beneficia deste longo braço de ferro em que nunca “deixou cair” Bashar al Assad no Conselho de Segurança da ONU. Afinal, se os Estados Unidos já contam com um fiel aliado na região, a quem dão um forte apoio militar (Israel), a Rússia mantém o aliado Assad e reforça a presença militar no Médio Oriente. Israel, se não sentir a sua segurança em risco, não se vai importar com este novo desenho até porque é conhecida a política russa em relação a movimentos islâmicos mais radicais. Talvez o Irão seja o parceiro mais difícil de contentar nesta solução. Quanto ao Líbano, encravado entre Israel a sul e uma “nova Síria” a norte e a leste, há muito que é um barril de pólvora mas essa característica também tem produzido ensinamentos que ajudam a enfrentar realidades complicadas. 

Fazer este tipo de previsões é arriscado, mas olhando para a geografia, para os interesses das potências envolvidas e para os últimos desenvolvimentos da agenda diplomática, a criação de uma “nova Síria” é a solução para onde todos os dados apontam.


Pinhal Novo, 23 de Setembro de 2015

josé manuel rosendo

terça-feira, 15 de setembro de 2015

Está instalado o cerco ao Labour de Jeremy Corbyn (ou será melhor dizer que abriu a caça a Jeremy Corbyn?)


Vem aí um novo Syriza. É o alerta dos arautos da morte das ideologias perante a eleição de Jeremy Corbyn para líder do Labour (Partido Trabalhista). Para estes arautos só há uma política e um pensamento, podem existir acertos de pormenor nos orçamentos mas, para lá disso, tudo o resto é impossível. E nem se coíbem de dizer que a União Europeia e a real politik (assim algo que ninguém entende muito bem mas que determina o nosso futuro – algo que a vontade dos homens não pode alterar) já mostraram que não há espaço para Syrizas e Labour’s liderados por gente como Corbyn. Nem se apercebem que estão a dizer que já não há espaço para a democracia, mas escrevem-no com todas as letras. Rendidos aos poderosos da Europa e do mundo financeiro que traçam as linhas com que nos cosemos, os intérpretes do mainstream hesitam relativamente ao futuro de Corbyn: coveiro do Labour ou líder efémero. A nada de melhor Corbyn pode aspirar.

Estas leituras fazem-se em Portugal, mas também lá por fora. As “bíblias” regularmente citadas afinam pelo mesmo diapasão: Corbyn pode tirar o Reino Unido da União Europeia; o homem não percebe o mundo em que vive e é inelegível como Primeiro-Ministro; foi eleito líder porque os trabalhistas votaram com o coração e não com a cabeça. Em resumo, Jeremy Corbyn tem um conjunto de opiniões que não agrada ao mainstream. Daí, o mainstream conclui que é um perigoso esquerdista, um republicano em terras de sua majestade Isabel II, falava com o Sinn Fein e com Hugo Chávez, quer o Reino Unido fora da NATO e, talvez, fora da União Europeia, quer nacionalizações, não quer austeridade, deu as boas-vindas aos refugiados e, pecado de recente homologação, gosta de conversar com Varoufakis, esse mesmo, o ex-ministro das finanças que a troika obrigou a Grécia a atirar para fora do Governo de modo a ter o tal terceiro resgate e o empréstimo intercalar. Ora, bem vistas as coisas, Jeremy Corbyn só pode ser um “bandido” da pior espécie.

Os líderes trabalhistas que sucederam a Tony Blair (e antecederam Corbyn) não deixaram marca política que se veja a não ser a das derrotas eleitorais, atribuídas a um discurso que nuns dias era de esquerda e noutros dias de direita. Aquela tentativa de agradar a deus e ao diabo que os partidos socialistas blairistas seguiram nos tempos mais recentes. 

Assim sendo, a referência das análises e das opiniões é o tempo de Blair embora ninguém pareça querer aprofundar a descaracterização do Labour realizada precisamente por Tony Blair e ninguém parece querer saber do que Blair fez enquanto Primeiro-Ministro britânico na guerra de 2003 no Iraque. Não, isso não interessa, é um tabu que o mainstream ignora olimpícamente. Mesmo num país em que, como alguns escribas reconhecem, a direita (acrescento eu, em função da liderança errática de Blair) se apoderou de bandeiras da esquerda, ter agora um líder que as pretende recolocar onde devem estar, isso não interessa.

Há até quem defenda que Corbyn só foi eleito porque, vejam lá, ou era ele ou era o vazio. Corbyn venceu com cerca de 60% dos votos. A eleição agradou às bases do Labour, mas foi evidente que não agradou à nomenclatura. Vamos ver no que dá a liderança de Jeremy Corbyn, mas o que chateia desde logo é o preconceito e a caixa quadrada em que alguns comentadores e analistas se movimentam, não aceitando nada de diferente do habitual embora gostem de encher a boca (e os textos) com as virtudes da diversidade e da diferença.

Perante o que foi escrito e dito nas horas que se seguiram à eleição de Corbyn, torna-se evidente que o cerco está montado, tal como esteve montado ao Syriza quando venceu as eleições gregas e varreu alguns dos políticos tradicionais, esses sim, com fortes responsabilidades na situação a que a Grécia chegou. Entenda-se por cerco a opinião e análise predominante nos media. Como é evidente, toda a gente tem direito (era o que faltava que não tivesse…) a ter opinião e a liberdade de a tornar pública. É o caso de muitos dos que ocupam posições que lhes dão acesso regular aos media e de outros que nos media têm poder de decisão. O problema é que a esmagadora maioria dos que têm esse acesso e dos que ocupam esses lugares com poder de decisão têm sempre tendência a defender determinada área política em detrimento de outra. 

Dizer que o pluralismo de opinião nos media é um dado adquirido e algo substantivo em Portugal, é um acto de grande esforço e um bocado zarolho.

Pinhal Novo, 15 de Setembro de 2015

josé manuel rosendo

PS - créditos da foto: The Guardian

Refugiados na Europa? É a globalização, estúpido!


As coisas estavam a correr de forma quase perfeita. Circulavam os capitais e os bens, mas as pessoas estavam quietinhas, ou pelo menos pouco se movimentavam… os lucros acumulavam-se e era importante manter o ritmo.

Em tempos de absoluto desprezo pelas pessoas e de endeusamento do dinheiro e dos pseudo gurus da Economia, os ditos-cujos sempre defenderam a absoluta normalidade da deslocalização (adoro a novilíngua…) de empresas, em regra para países de mão-de-obra barata que permitia aumentar os lucros (diziam que era em nome da competitividade, da viabilidade das empresas, essas coisas…); os mesmos ditos-cujos acham normal a livre circulação de capitais e que seja possível comprar acções na bolsa de Pequim ou Tóquio durante a manhã, fazer o mesmo à hora de almoço em Paris ou Londres, e terminar o dia em negociata na bolsa de Nova Iorque; os mesmos ditos cujos acham normal os off-shores que não passam de uma forma de fuga ao fisco que sonega dinheiro aos orçamentos dos Estados; os mesmos ditos cujos defenderam, em nome dos negócios (entenda-se dinheiro que fabrica dinheiro sem produzir qualquer riqueza), que a comercialização de bens deve ser o mais alargada possível e desregulada ao máximo, e que as fronteiras a essa circulação devem ser derrubadas; os mesmos ditos-cujos sempre disseram que que a globalização é algo imparável, incontornável, inevitável, disseram até que não adianta tentar controlar o que é incontrolável e que mais tarde ou mais cedo vai acontecer. 

Defenderam tudo isto enquanto a máquina registadora facturava, mesmo que todas estas opções e desregulação provocassem, simultaneamente, vagas de desemprego e empobrecimento nos países em que a mão-de-obra é mais dispendiosa. Diziam que era um sinal dos tempos e que nada havia a fazer. Ou talvez houvesse, como por exemplo desvalorizar o trabalho nos países em que era mais dispendioso. Olhavam com desprezo para quem os contrariava e largavam a estafada fórmula: é a Economia, estúpidos!

Para estes tempos de endeusamento do dinheiro e de desprezo pelas pessoas, um mundo em que as empresas pudessem mudar de país e em que as pessoas não pudessem fazer o mesmo, seria, era, o mundo ideal. 

Mas eis que as voltas da guerra, com que alguns muito lucram, trocam as voltas a este cenário perfeito. De repente, milhares de pessoas sem alternativa metem pés ao caminho e decidem procurar um local seguro onde não sintam a ameaça de um bombardeamento, de um tiroteio ou a perseguição de fanáticos loucos com sede de sangue. Procuram um porto seguro e querem, porque a isso têm tanto direito como aqueles que vivem na Europa, um trabalho, uma casa, uma vida normal. Apenas isso: uma vida normal. E eis que, aqueles que se referiam à globalização como algo de incontrolável e inevitável se apressam a tomar medidas: levantam muros, criam campos de acolhimento, convocam militares e polícia, encerram espaço aéreo (fronteira Hungria/Sérvia), alvitram a possibilidade da entrada de terroristas e da invasão muçulmana… traçam cenários negros… os mais conservadores recusam quotas de acolhimento. Todos estão atarantados com algo que não esperavam e não desejavam. Uma chatice: estava tudo a correr tão bem.

Se as empresas podem deslocalizar-se com o argumento de irem em busca de mercados de mão-de-obra mais barata, por que razão as pessoas que fogem da guerra não poderão deslocalizar-se em busca de locais seguros e de empregos que lhes assegurem uma vida normal? Sendo certo que a movimentação de pessoas não pode ser um processo desregulado e anárquico, esta sim é a verdadeira globalização: a das pessoas! Porque o mundo é de todos. A globalização é desejável, enquanto enriquecimento colectivo através do que cada um de nós pode dar e aprender com o outro.

Pinhal Novo, 15 de Setembro de 2015

josé manuel rosendo

sexta-feira, 4 de setembro de 2015

A Europa errada está a sofrer o efeito boomerang


Sem saber o que fazer, a União Europeia está em crise profunda. É assim desde há muito tempo, mas conseguia disfarçar. E não é por falta de avisos e sinais que se deixa chegar a este ponto. Há muitos meses que os refugiados estão a chegar à Europa; há anos que os europeus andam a fazer asneira no local de origem da maioria dos refugiados que chegam às fronteiras europeias; há anos que a União Europeia não tem uma política externa comum; há anos que, sobretudo os países do Sul da Europa deixaram-se enredar em interesses de outros Estados europeus para os quais a vizinhança do Mediterrâneo é algo distante e fora da agenda. Por fim, uma coisa chamada Frontex (Agência europeia de gestão das fronteiras externas da União Europeia) mostrou toda a sua falência. Estamos a pagar a factura. O efeito boomerang nunca falha.

A resposta a esta crise mostra que esta tem sido a União Europeia errada e toda a gente tem encolhido os ombros, principalmente líderes políticos deslumbrados com as luzes da ribalta política, com a possibilidade de passear na Grand Place de Bruxelas e com um lugar à mesa nas grandes cimeiras, transformadas em passadeiras da vaidade, de onde não saem políticas nem ideias consistentes que façam deste continente esse lugar de paz, de verdadeira solidariedade, de desenvolvimento e de farol dos Direitos Humanos. Tem sido o vazio, onde a especulação financeira é o grande deus. Apenas isso.

Curiosamente, são pessoas, sim, pessoas, pessoas com problemas, que destapam o caldeirão dos desentendimentos e põem a nu a verdadeira natureza dos líderes europeus e a inconsistência das políticas europeias. É habitual vermos os líderes europeus enxofrados – muitas vezes apenas fazem de enxofrados para as respectivas opiniões públicas – com questões económicas e financeiras, mas desta vez estão em desacordo por causa de pessoas. O que os líderes europeus já deviam estar a fazer nesta altura era estar em campo com um discurso pedagógico para que nos vários países a opinião pública percebesse que todos temos o dever de auxiliar.

Torna-se óbvio que esta Europa não sabe lidar com problemas das pessoas. Estes líderes apenas estão habituados a relatórios e power points que tratam de problemas financeiros e económicos, sempre assessorados por grandes gabinetes da consultadoria e ouvindo sempre os impérios da banca. Os problemas reais das pessoas são algo de estranho para eles, mas desta vez têm pessoas a bater à porta e nenhum deles arrisca apontar o caminho de regresso ao mar a todos aqueles que já entraram na Europa.

É triste ouvir o líder do PS dizer que os refugiados podem vir limpar florestas “porque está habituada a trabalho agrícola”. António Costa está mal-informado: grande parte dos refugiados que estão a chegar à Europa vindos da Síria e do Iraque são classe média, muitos com formação universitária e não estão nada habituados a trabalhar na agricultura. É triste ouvir o Governo português mostrar abertura a acolher mais refugiados, mas como sempre, apenas depois de a Alemanha dizer o mesmo. Ainda é mais triste ouvir o Primeiro-Ministro húngaro dizer que os refugiados põem em risco a cristandade na Europa e ao mesmo tempo admitir que, depois de construir um muro na fronteira com a Sérvia, pode agora construir um muro na fronteira com a Croácia. Continua a ser triste e preocupante saber que a Hungria e a Bulgária perguntaram a Israel como se constroem os muros nas fronteiras (a agência Reuters deu a notícia), algo em que Israel tem muita prática. A Hungria esqueceu rapidamente o Muro de Berlim e a cortina de ferro.

É difícil saber qual é a resposta adequada a esta chegada de milhares de refugiados? É verdade! Mas para já a questão é humanitária. É preciso ajudar quem apenas procura sobreviver. Ter uma visão utilitarista, tentando antever o que a Europa pode ganhar com a chegada destes refugiados é algo de cínico, mesmo que sirva de argumento para ajudar a convencer a opinião pública europeia. Um refugiado deve ser ajudado porque está em fuga e fragilizado. Apenas isso. É o dever de auxílio a quem está nestas condições.

Neste momento há uma tentação de agradecer a sírios, afegãos, iraquianos, líbios, somalis, e tantos outros, por nos terem ajudado a perceber a União Europeia que temos. Pura e simplesmente não existe, a não ser para a grande negociata e bela vida em Bruxelas e arredores. Não é possível dizer quando nem como, mas esta União Europeia vai ruir qual castelo de cartas. Pelo menos aproxima-se a passos largos do abismo.

Pinhal Novo, 4 de Setembro de 2015

josé manuel rosendo

quinta-feira, 3 de setembro de 2015

Ai Lusa, ai, ai… expliquem lá isso como deve ser.




Não tenho por hábito meter a foice em seara alheia e quando é a minha seara que está em causa trato as coisas dentro de portas, mas desta vez a coisa deixou-me atarantado.
Oiço ao final da manhã a notícia do afastamento de Fernando Paula Brito, director de informação da Agência Lusa; oiço que a decisão foi tomada pela administração presidida por Teresa Marques; oiço que os directores adjuntos – Nuno Simas e Ricardo Jorge Pinto – demitiram-se, solidariamente, logo que souberam da decisão da administração.

Ponto prévio: não conheço e nunca trabalhei com nenhum dos envolvidos; Teresa Marques foi administradora da RTP, mas nem sei se alguma vez nos cruzámos na empresa.

Mas o ter ficado atarantado deve-se apenas aos argumentos de Teresa Marques: a Lusa precisa de um director de informação que tenha também “outros requisitos em termos de experiência de gestão e controlo orçamental que antes não eram tão vistos na função de director de informação, porque era uma função mais editorial.” EUREKA, Teresa Marques acaba de descobrir que um director de informação tem que ser um super-homem: jornalista e gestor. É estranho, muito estranho, que um director de informação seja afastado por estes motivos quando a própria administração elogia o trabalho desenvolvido.

Teresa Marques acrescenta um daqueles argumentos redondos que estamos habituados a ouvir em circunstâncias semelhantes: diz que esta mudança insere-se numa reorganização com o objectivo de “gerir a empresa de uma forma diferente que tem a ver com o momento”. Excelente! Temos uma presidente de uma administração de uma agência de notícias que não sabe comunicar. Talvez seja necessário uma administradora que saiba um pouco de jornalismo. 

Aliás, toda a terminologia utilizada por Teresa Marques e reproduzida pela própria Lusa é significativa: a parte editorial continua a ser o core business; a Lusa é uma marca; o futuro director terá de ser alguém reconhecido no mercado. Eu pensava – tão ingénuo – que uma agência de notícias produzia informação e notícias e devia preocupar-se com a qualidade e credibilidade dessa informação. A terminologia utilizada não deixa dúvidas: sei agora que é um negócio. E apenas um negócio quando o próprio gabinete de Poiares Maduro, quando Teresa Marques foi nomeada, disse que o projecto de futuro da Lusa assentava “no reforço da qualidade do seu jornalismo e da sua estratégia de internacionalização”. E desde logo, não há marca que se safe nem mercado que não fique nervoso quando uma mudança destas acontece a um mês das eleições.

O que me parece ter ficado bem evidente nesta situação da Lusa é que sai a pessoa errada e fica a pessoa errada. Talvez ainda se venha a saber mais alguma coisa sobre o assunto, mas isto não cheira nada bem. Se estou errado, que me desculpem.

Pinhal Novo, 2 de Setembro de 2015
josé manuel rosendo

terça-feira, 1 de setembro de 2015

Memórias de Gevgelija – arame farpado, lágrimas e sorrisos


A fronteira – Gevgelija – entre a Grécia e República da Macedónia é, por paradoxal que possa parecer, um local de lágrimas e sofrimento, de sorrisos e alegria. Sente-se a dor de quem chega vindo da Grécia, após longas jornadas desde a Síria, Iraque ou Afeganistão, transportando no corpo as sequelas de longas caminhadas, noites mal dormidas e da incerteza do dia seguinte, ou do minuto seguinte, não sabendo se a fronteira vai ser a porta da esperança ou o muro inultrapassável; alegria porque os sorrisos e os “thank you” nos mais diversos sotaques são o sinal de que foi cumprida mais uma etapa. Os corpos chegam cansados e sujos, os pés arrastam-se. As pequenas mochilas e sacos são um peso tremendo numa viagem assim. Na alma vem outro tipo de dor: a família que se deixou para trás, a terra de onde fugiram porque a guerra não os deixou ficar, os amigos que morreram pelo caminho. Depois de uma viagem sabe-se lá em que condições, através de um Mediterrâneo que já é cemitério de muitas centenas e às mãos de gente sem escrúpulos que cobra fortunas por esta passagem para a Europa, há ainda essa enorme incerteza sobre o acolhimento: vão ser bem recebidos ou vão ser escorraçados? Vão demorar a saber.

Os refugiados que atravessam a fronteira Grécia/República da Macedónia são agrupados ainda na Grécia, depois, sempre em grupos de 100/150 pessoas, atravessam uma “terra de ninguém” até à fronteira da República da Macedónia. Aí chegados é o arame farpado e os militares que coordenam o avanço dos vários grupos que nunca param de chegar. Quando passam a fronteira são encaminhados para um campo de acolhimento onde é feito um registo e recebem um escasso apoio das ONG’s, Nações Unidas e Cruz Vermelha. Alguns entram directamente do campo de acolhimento para uma gare ferroviária improvisada. O comboio, sem paragens há-de percorrer cerca de 200 quilómetros até à fronteira com a Sérvia. Outros andam mais umas centenas de metros até aos autocarros estacionados à entrada da cidade e seguem o mesmo destino. Também há taxistas em busca de negócio. Depois das autoridades terem assumido o controlo da situação, os refugiados nem chegam a contactar com a população de Gevgelija. A Estação ferroviária deixou de ser o caos das últimas semanas.

O nosso lado humano regista, inevitavelmente – e eu não quero deixar de ser assim – o olhar das crianças; a expressão sofrida das mães que amamentam à sombra de um toldo que não consegue iludir o calor sufocante; a atitude brusca de pais, dominados pela ansiedade, que arrastam a criança que chora e faz birra no momento do grupo avançar; os bebés que tomam um banho, se calhar o único em muitos dias, com a água das garrafas fornecidas pela UNICEF; o grupo de homens desorientado com a viagem que não sabe a direcção de Meca para orientar a posição da oração; pessoas que, mesmo com fome, preferem comer pão com nada e não comem o paté fornecido pelas Nações Unidas porque não sabem se tem carne de porco e a legenda da embalagem é indecifrável; pessoas que não entendem a língua do país onde estão e são alvo da brutalidade verbal de polícias e militares; homens que carregam mulheres às costas para que não fiquem para trás; pessoas de muletas e braços engessados que travam uma enorme luta com o cansaço para não perderem mais uma etapa da longa viagem; casais com quatro e cinco crianças – duas ou três ao colo e às cavalitas, as outras pela mão; pessoas que desesperam porque de um momento para o outro ficam separadas da família quando ficam num grupo que avança e a família fica noutro que aguarda; mulheres grávidas que são assistidas pela Cruz Vermelha; pessoas doentes que mal conseguem mexer as pernas e que acabam, também elas, levadas pela Cruz Vermelha; grupos de pessoas solidárias que, simultâneamente, lutam por um lugar no grupo que se prepara para avançar; pessoas que não sabem responder à pergunta “para onde quer ir?”.

Nestas reportagens fica sempre aquele sabor estranho ao sentirmos que, terminado o trabalho no terreno, voltamos ao nosso conforto caseiro, enquanto estas pessoas continuam a enfrentar os mesmos dramas e problemas. Gostava de saber que destino seguiu Barzan, o sírio curdo de Kobani que ficou momentâneamente separado da família e dos amigos na zona de fronteira e que me pediu ajuda na tentativa de reencontro (que acabou por acontecer sem nenhum mérito meu); gostava de saber o que aconteceu a Mohammad, um sírio que vinha de uma zona onde já estive – Montanha de Jabal al Akrad, junto a Aleppo – e que ao saber disso falou comigo até eu querer; gostava de saber o que aconteceu a Salim e Yusman, dois paquistaneses que já estavam há muitos meses na Grécia e que confessaram estar a aproveitar a vaga de refugiados para chegar a outro país europeu; gostava de saber o que vai ser do iraquiano xiita que me disse que é impossível viver em Bagdad, que o antigo Primeiro-Ministro iraquiano al Maliki “não prestava” e que o actual, al Abadi, não é melhor. 

Gostava que estas pessoas nunca mais sentissem o medo que as levou a recusar falar para uma câmara de televisão por receio de represálias contra a família que deixaram para trás ou por poderem ser prejudicadas nos países onde querem chegar. O meu receio, agora, é que a Europa as decepcione.

Pinhal Novo, 31 de Agosto de 2015

josé manuel rosendo