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quinta-feira, 24 de março de 2016

Diz-me como está o negócio das armas, dir-te-ei como está o Mundo


Pode ser como está no título, mas também pode ser de outra forma: diz-me quem vende mais armas e dir-te-ei a quem serve o status quo. E a resposta é: os Estados Unidos dominam o comércio mundial e reforçaram esse domínio nos últimos cinco anos (2011-2015). Os Estados unidos passaram de 29% de quota de mercado (em 2006-2010) para 33% (em 2011-2015). A Rússia surge logo a seguir (25% das exportações mundiais), depois a China (5,9%, com grande crescimento), Alemanha (4,7%) e França (5,6%, ambas com assinalável recuo). Os números são do SIPRI (Instituto Internacional de Investigação para a Paz, de Estocolmo, Suécia). 

A directora do Programa de Armamento e Despesas Militares do SIPRI, Aude Fleurant, sublinha que “Os Estados Unidos venderam ou deram armamento a pelo menos 96 Estados nos últimos cinco anos, e a indústria de armamento norte-americana tem grandes encomendas de exportação pendentes, incluindo 611 aviões de combate F35 para nove países.

A Rússia está neste momento a ser afectada depois das sanções ocidentais contra Moscovo devido à guerra na Ucrânia. A Rússia exporta para a Índia mais do que os Estados Unidos. A Índia é o maior importador mundial de armamento. A China tem como grandes clientes Paquistão, Bangladesh e Birmânia. Regra geral o comércio de armamento foi afectado pela crise europeia com as compras dos países do velho Continente a recuarem 41%. Ainda quanto aos importadores, a Índia lidera a procura (14%), o dobro da Arábia Saudita e o triplo da China.

Outros aspectos a sublinhar:
Entre os períodos 2006/10 e 2011/15 as importações dos países africanos aumentaram 19%. Argélia e Marrocos são os dois maiores importadores de armas na região, com um total de 56% por cento das importações africanas.
A importação de armas no México cresceu 331% em 2011/15 em comparação com 2006/10; o Azerbaijão aumentou 217%; o Iraque aumentou 83%.
A França concluiu vários grandes contractos de exportação de armas em 2015, incluindo os dois primeiros contractos de venda (Egipto e Qatar) dos aviões de combate Rafale. De notar que já em 2016, a França fechou um outro contracto com a Índia para a venda de 36 Rafale.

O SIPRI refere que estes dados reflectem a quantidade de armamento transaccionado e não o volume de negócios. Quem quiser saber mais pode consultar: http://www.sipri.org/

Pinhal Novo, 23 de Março de 2016

josé manuel rosendo

quarta-feira, 23 de março de 2016

Rever as fronteiras do Médio Oriente para acabar com o “Estado Islâmico”


Há muitas formas de abordar o que aconteceu esta terça-feira em Bruxelas. Podemos optar pelas mais sérias e consequentes ou pelas mais fáceis e populistas. Começando por estas últimas, que se despacham mais depressa, coloca-se mais polícia na rua, investe-se em novos equipamentos para controlo das entradas de locais estratégicos, reforçam-se os anéis de segurança, e vamos todos para as redes sociais chamar nomes aos autores dos atentados. 

Podemos juntar a esta abordagem o habitual descarregar de bombas contra os locais onde estarão os núcleos duros das organizações a que pertencem os autores dos atentados. Como consequência inevitável teremos mais danos colaterais e mais gente a odiar o Ocidente. Desabafamos, bombardeamos – saciando a sede de vingança – ficamos com a ilusão de uma segurança reforçada e o tempo encarregar-se-à de diluir a memória do que aconteceu. Até ao próximo atentado.

Se optarmos por uma abordagem mais séria, dá mais trabalho, exige leituras mais informadas e demora mais tempo. E, ainda assim, só o tempo dirá da sua eficácia. Exige, portanto, paciência. Algo que só uma sociedade mais educada e informada terá – paciência – para poder esperar pelo resultado.

Dentro desta abordagem mais séria convém, desde logo, rever a lista de algumas amizades, como por exemplo a da Arábia Saudita, país de onde parte uma fatia muito considerável do financiamento aos grupos islamistas mais radicais. Depois, convirá perceber as rotas do armamento que chega à organização Estado Islâmico e também as rotas da venda de petróleo. Quem vende armas ao Estado Islâmico? Quem compra petróleo ao Estado Islâmico? Armas e dinheiro. Não há organização que resista se o fluxo destes dois bens for cortado.

Em termos políticos e diplomáticos há outras abordagens possíveis. E muito mais complexas. Desde logo, atendendo ao ódio e à guerra sunitas/xiitas, devemos, neste momento colocar a questão: faz sentido admitir a criação de um “Sunistão” nos actuais territórios do Estado Islâmico, ou em fronteiras a definir? Não adianta iludir a questão: o Iraque e a Síria, tais como os conhecemos no último século, com as fronteiras ditadas pelo acordo Sykes-Picot, parecem estar condenados. Será preciso depois acomodar xiitas no Iraque, alauítas na Síria, e curdos na Síria (sendo que no Iraque, Turquia e Irão, a questão curda também se coloca). De caminho será absolutamente indispensável resolver a questão do Estado da Palestina.

Considerando tudo isto falta saber se a organização Estado Islâmico está disposta a conversar. É impossível para já dar uma resposta a esta questão, mas há sempre uma porta pela qual a diplomacia pode tentar entrar. Podemos pensar que o diálogo com uma organização pródiga em selvajarias é algo inaceitável, mas ao mesmo tempo devemos reter que até o Estado Islâmico pode mudar se, por exemplo, os sunitas que nele se acolhem por falta de alternativa, perceberem que existe a possibilidade de terem o seu próprio território.

Estamos a falar de um redesenho das fronteiras do Médio Oriente, algo que muitos já perceberam ser inevitável e que convém encarar de uma forma muito séria, sob pena de estarmos perante um ciclo de violência que nos vai colocar rotineiramente num debate inconsequente após cada atentado.

Esta é a abordagem que me parece mais séria. Dirão que é complexa, que é impossível e que é utópica. Talvez. É também uma abordagem que, para além de mexer com os actuais interesses nos territórios em causa, mexe também com os interesses das potências internacionais nesses territórios. Resta tentar.

Pinhal Novo, 22 de Março de 2016
josé manuel rosendo

terça-feira, 22 de março de 2016

Os dias da asneira…


Asneira, clichés e lugares-comuns. Sempre que há um atentado em espaço europeu o desfile de figuras comentadeiras nas rádios e televisões é algo de impressionante. Salvo raras e assinaláveis excepções, onde se deve incluir a jornalista Cândida Pinto, que sabe do que fala e tem a experiência de terreno necessária para não se ficar pelas teorias dos “Think tanks” difundidas nas publicações internacionais, ficamos pelos lugares-comuns, pelos clichés do terrorismo e, inevitavelmente, pela asneira.

É assim que reage uma sociedade impreparada para lidar com estes fenómenos. Uma sociedade em que se incluem as redacções, cada vez mais viradas para tratar o que anda nas redes sociais, para o que é viral e dá audiências, para as feiras de sapatos que pagam as viagens dos jornalistas e para seguir os políticos de topo que arrastam sempre uma tribo e jornalistas à procura de um soundbite. Não é que isto não possa ser feito, sobretudo em relação aos políticos, que são afinal quem toma as decisões que afectam o nosso quotidiano. O problema é que pouco mais se faz para além disso. E futebol, claro.

Perante isto, quando surge uma manhã como esta, com atentados em Bruxelas, as redacções tremem. E agora? Quem vamos ouvir sobre isto? Venha de lá a lista e vamos ouvir os do costume. O primeiro a atender o telefone, serve. Vem a estúdio ou entra em directo pelo telefone. Talvez nesse momento de decisão ninguém faça uma pergunta mais completa: o que é que queremos saber e a quem devemos perguntar?!

As redacções são afinal apenas uma parte do todo que é o país. Um todo impreparado porque mal informado e com os níveis de educação conhecidos. Os espaços na rádio e na televisão em que o povo entra a dar opinião são excelentes barómetros que permitem aferir o nível de conhecimento geral sobre os mais variados temas. Quando assim é, qualquer comentário serve. Se o comentador tiver um lencinho no bolso do casaco, ainda melhor.

No caso concreto dos atentados de hoje em Bruxelas, o conhecimento deveria passar por toda a complexidade do Médio Oriente, pela história e pela actualidade. Mas isso é sempre visto como uma chatice… é uma coisa lá longe, que não interessa às pessoas, como se o interesse público fosse o interesse do público. Informação e educação são a chave para o desenvolvimento de qualquer sociedade. Infelizmente, uma e outra, andam pelas ruas da amargura. Não adianta papaguear que lutamos pela democracia e pela liberdade se estas duas vertentes não forem devidamente cuidadas. É tudo isto que explica a forma como abordamos o assunto.

Pinhal Novo, 22 de Março de 2016

josé manuel rosendo

A elegância de Obama

                               Foto de Ismael Francisco/Cuba debate

É importante? É! Não é o essencial, nem traduz a importância dos acontecimentos? Não! Mas a elegância de Barack Obama na abordagem à velha questão de Cuba confere-lhe uma aura de sabedoria e credibilidade. Gostemos ou não das políticas de Obama (e dos Estados Unidos), o homem beneficia da inépcia absoluta do antecessor Bush e, certamente, de qualidades inatas que o gabinete de comunicação e imagem pode burilar, mas não poderia fabricar. Obama é assim.

Do aperto de mão a Raúl Castro durante as cerimónias fúnebres de Nelson Mandela, ao encontro com o Presidente cubano em Havana, foi um longo percurso. Obama tenta sair com elegância do isolamento – nesta matéria – a que os Estados Unidos foram votados por causa do embargo económico a Cuba (apenas Israel votou ao lado dos Estados Unidos na mais recente Assembleia Geral da ONU); chega a Cuba com elegância, levando a mulher e as filhas; passeia em Havana com elegância (apesar das ruas vazias…) e coloca flores no memorial de José Martí. Só faltou o encontro com Fidel. Talvez fosse demais. Ainda assim nunca se sabe se o velho revolucionário não convidou Obama para uma cuba libre longe dos holofotes.

Mas desta visita a Cuba há um aspecto que é impossível iludir, apesar de toda a elegância de Barack Obama: os Estados Unidos não podem cantar vitória neste longuíssimo braço de ferro com Cuba. A pequena ilha resistiu e enfrentou o gigante. E o gigante dobrou o joelho. Com muita dignidade, é certo, mas Obama, ao lado de Castro, até disse que não discordava de Castro quando o presidente cubano se referiu à indivisibilidade dos vários direitos humanos (quando procurava justificar a falta de liberdade de expressão em Cuba). Obama foi muito claro quando assumiu as diferenças entre os sistemas políticos de Cuba e dos Estados Unidos e a sua grandeza é carimbada nesse momento: somos diferentes mas tivemos uma conversa franca.

Sabemos todos que não mostrar tudo, e por vezes, muitas vezes, esconder o mais importante, faz parte do ADN da diplomacia, mas que Barack Obama tem feito coisas, lá isso tem. Basta lembrar o discurso do Cairo, logo em início de mandato, quando estendeu a mão ao mundo árabe, depois dos desastrados tempos de George W. Bush; basta lembrar a retirada do Afeganistão e do Iraque, não havendo quem criticasse os Estados Unidos por lá estarem, para depois dizerem que a retirada foi precipitada; basta lembrar a vontade de encerrar Guantánamo e, agora, a visita a Cuba. 

Muitos anos passaram desde que, em 1928, o então presidente norte-americano Calvin Coolidge visitou Cuba. Passaram muitos presidentes democratas e republicanos, mas foi Barack Obama quem foi a Cuba estender a mão a Raúl Castro. Esperemos que um qualquer Trump não estrague o que está feito.

Pinhal Novo, 21 de Março de 2016

josé manuel rosendo

sábado, 19 de março de 2016

“We got him”

Mais de doze anos depois, um secretário de estado do governo belga, Theo Francken, repetiu através do Twitter a fórmula utilizada pelo governador nomeado para o Iraque, Paul Bremmer, quando em 13 de Dezembro de 2003 anunciou a captura de Saddam Husseín: “We got him!”. Em 2003, o anúncio foi feito numa conferência de imprensa na “zona verde” de Bagdad e Paul Bremer antes do “We got him” disse um “Ladies and gentlemen”. Na pequena sala em Bagdad ouviram-se aplausos e vivas. Desta vez, a recuperação da fórmula por parte do governante belga, para anunciar a captura do alegado responsável (Salah Abdeslam) pelos atentados de Paris em Novembro de 2014, excluiu o “Ladies and gentlemen”, talvez por ser no Twitter.

É certo que os contextos são radicalmente diferentes mas recuperação da fórmula não é inocente. Ela simboliza uma visão de poder a que alguns se arrogam o direito. Uma visão de um poder que necessita de se exibir. No caso dos Estados Unidos, no Iraque, foi uma visão de quem se julgava no direito de entrar por um país dentro espezinhando tudo o que era Direito Internacional e respeito por outros povos; no caso de Theo Francken porque vê no exemplo dos então líderes norte-americanos um exemplo a seguir – daí a recuperação da fórmula. Aliás, basta ver a filiação política (Nova Aliança Flamenga) de Theo Francken e as polémicas em que recentemente esteve envolvido para desde logo entender melhor a frase escolhida.

No entanto, Theo Francken esqueceu-se que Barack Obama não utilizou essa fórmula quando anunciou a morte de Osama Bin Laden. Outra visão do poder. Ter-se-á esquecido também que a captura de Saddam Husseín nada de substancial mudou para além de levar à morte do ditador. E não terá percebido que a captura de Salah Abdeslam, e a sua eventual condenação, nada vai mudar no que é substancial na questão do terrorismo. É evidente que a captura deste homem é significativa e envia um sinal aos que possam estar a pensar em repetir algo semelhante ao que aconteceu em Paris, mas isso não justifica o tom triunfalista do governante belga. Aliás, os comentadores e especialistas que se referiram à captura de Salah Abdeslam disseram precisamente isso.

Já agora, é melhor deixar escrito para não ser acusado do contrário: acho que Salah Abdeslam deve ser julgado pelos crimes de que é suspeito e deve pagar por todo o sofrimento e morte que provocou. Dito isto penso ficar a salvo de interpretações enviesadas.

Pinhal Novo, 17 de Março de 2016
josé manuel rosendo


As últimas 24 horas dos refugiados para chegarem à Europa


A União Europeia fechou a fronteira. A partir de Domingo, os refugiados que cheguem às ilhas gregas serão reenviados para a Turquia. Não é literalmente assim, mas com o que é possível saber do acordo entre a União Europeia e a Turquia, o resultado prático é esse. Aliás, basta ver as cautelas com que os próprios líderes europeus abordaram a questão após a assinatura do acordo. António Costa, Primeiro-ministro português, foi muito claro: “não deve ser visto com a ilusão de que o problema está resolvido”. Em conferência de imprensa, o Primeiro-ministro turco Ahmet Davutoglu disse que é “um dia histórico”, mas ali ao lado o Presidente do Conselho Europeu, Donald Tusk, pôs o pé no travão: “não sei se é um dia histórico… é um dia importante”.

O texto final da cimeira em que o acordo foi obtido também é muito claro: a partir da meia-noite de domingo “todos os novos migrantes irregulares que se deslocarem da Turquia para as ilhas gregas serão reenviados” para a Turquia. Restam 24 horas. Todos os refugiados que não quiserem ser abrangidos por este acordo terão de chegar a terra europeia antes da meia-noite de domingo.

A União Europeia tenta sublinhar que com este acordo o negócio dos passadores de refugiados vai sofrer um duro golpe. Na prática o que ele representa é que a Turquia passa a ser um Estado tampão que recebe em troca muito dinheiro e facilidades no processo de adesão à União Europeia. Mas a Turquia é um país em que os direitos humanos são palavra morta e em que a liberdade de imprensa nas ruas da amargura. Outro aspecto que a União sublinha neste acordo é que os processos de pedido de asilo vão ser apreciados individualmente, como a lei obriga, e não poderá ser efectuada a expulsão de grupos de refugiados.

Após serem conhecidas as linhas mestras do acordo União Europeia/Turquia, muitas ONG’s imediatamente se insurgiram. Ao dia histórico referido pelo Primeiro-ministro turco, a Amnistia Internacional contrapôs um “dia negro” para a convenção das Nações Unidas sobre o Estatuto dos Refugiados, para a Europa e para a Humanidade. Agência das Nações Unidas para os Refugiados, UNICEF, OXFAM, Save the Children, teceram duras críticas e lançaram vários alertas, nomeadamente para a possibilidade da Grécia ficar transformada num país com centenas de milhares de pessoas a viverem em campos de refugiados.

Mais uma vez a União Europeia deu uma resposta errada. São erros consecutivos. Aliás, basta ver como estão a ser cumpridos os anteriores acordos e o ritmo de chegada dos refugiados aos vários países que aceitaram acolhê-los. Esta União Europeia pensa que tudo resolve atirando dinheiro para cima dos problemas e empurrando com a barriga as questões que não se resolvem com a passagem de um cheque. 

A Europa sempre chantageada e sempre a deixar-se chantagear. Foi assim com Kadahfi quando ameaçou deixar passar os africanos que fugiam da miséria e queriam chegar á Europa; outra recente chantagem foi a do Presidente do Egipto, Abdel Fatah al Sissi que alertou para a consequência de ser afastado do poder e o caos que alegadamente se seguiria (“Somos 90 milhões e a Europa irá sofrer consequências”); agora é a Turquia. Jorram milhões de euros dos cofres europeus para regimes opressivos. E a Europa não aprende.

Pinhal Novo 18 de Março de 2016
josé manuel rosendo

quinta-feira, 17 de março de 2016

Curdos da Síria avançam para a autonomia…


Os curdos estão em contra-relógio. Sem lugar à mesa nas negociações que decorrem em Genebra (por vontade da Turquia e contra a vontade da Rússia e, até, dos Estados Unidos), os curdos da Síria estabeleceram outras prioridades e tentam aproveitar o tempo e o contexto. A ausência de uma autoridade central na Síria, ou a sua absoluta debilidade, dá aos curdos a oportunidade que há tanto esperavam.

Esta quarta-feira, em Rmeilane, na província de Hassakeh, cerca de 150 representantes de partidos curdos, árabes e assírios, estiveram (e vão continuar) reunidos para definir as bases de um novo sistema de governo para o norte da Síria (a zona curda), entenda-se bases de administração autónoma curda. Para além dos cantões (províncias) de Afrin, Kobani e Jazeera, os curdos conquistaram território ao Estado Islâmico e pretendem agora unificar todo o território que controlam para exercer sobre ele uma administração que seja autónoma de Damasco. Um projecto de declaração já conhecido e que deverá ser divulgado esta quinta-feira, 17 de Fevereiro, refere que uma federação democrática será a única solução para garantir os direitos de todos os indivíduos. Paralelamente a este grito de autonomia, os delegados dizem que este primeiro passo não é um passo em direcção à independência, mas pode ser um exemplo para todo o território sírio.

Já se sabe que a Turquia não quer nem ouvir falar em autonomias curdas e não será de estranhar que um qualquer argumento justifique novos ataques curdos a zonas controladas pelas Unidades (curdas) de Protecção popular (YPG), o braço armado do Partido da União Democrática (PYD), que considera “terroristas”.
A reunião de curdos da Síria e o resultado esperado pode ser visto também como um aviso aos que estão em Genebra a negociar: é preciso contar com os curdos e eles estão dispostos a não deixar isso em mão alheias.

Os curdos controlam cerca de 10% do território sírio e cerca de 75% da fronteira sírio-turca e já falam abertamente de uma solução federal. Em Genebra Turquia e Síria já rejeitaram a ideia. O regime sírio responde que isso será um fracasso absoluto e vai provocar divisões entre os sírios; aTurquia concorda (porque tudo o que é bom para os curdos é mau para a Turquia) e já disse que considera a ideia inaceitável. 

Seja como for, considerados pelos Estados Unidos como a força mais eficaz no combate ao Estado Islâmico, os curdos apresentam agora a factura dessa luta que travou o avanço dos fundamentalistas: querem administrar o seu próprio território.

Pinhal Novo, 16 de Março de 2016

josé manuel rosendo

terça-feira, 15 de março de 2016

Rússia retira forças militares da Síria. A guerra vai continuar…


Assim, sem ninguém esperar, a Rússia decide retirar parte da sua força militar que participa na guerra na Síria desde 30 de Setembro do ano passado. Putin decide, Putin anuncia, e a demora nas reacções apenas demonstra que toda a gente foi apanhada de surpresa. Silêncio em Washington, silêncio em Bruxelas, silêncio…

A Rússia retira mas mantém a presença no porto de Tartus e na base aérea na região de Latakia. Os aviões russos, diz Moscovo, vão vigiar um cessar-fogo que nunca o chegou a ser com todas as partes a acusarem-se mutuamente de violações da trégua.

A partir de agora: diplomacia. Para consumo da opinião pública é este o posicionamento determinado por Putin. O Presidente russo considera que o objectivo foi atingido, entenda-se que foi conseguido “mudar radicalmente a situação na luta contra o terrorismo, desorganizar as infra-estruturas dos inimigos e atingi-los com um golpe importante”. Isto quer dizer uma de duas coisas: o Kremlin considera que, apenas com o recurso aos ataques aéreos, já fez o que era possível fazer (intensificar os bombardeamentos poderia ter um custo político contraproducente…) e que as forças do governo sírio reconquistaram poder face a inimigos muito fragilizados. A Rússia considera que cortou as fontes de abastecimento dos “terroristas”, que muitas regiões controladas por “terroristas” estão isoladas e que o exército sírio recuperou milhares de quilómetros quadrados de território e controla agora cidades importantes, como por exemplo Alepo. Certamente que Putin terá boa informação, mas é algo que está por confirmar.

O que parece evidente é que Putin sente que pode fazer o que quer, desde logo porque sabe que europeus e norte-americanos não vão meter os pés na Síria, e para já a situação está controlada. Por outro lado, a faceta pacificadora que resulta desta retirada dá à Rússia mais força negocial em Genebra. O Kremlin foi claro neste aspecto: “O trabalho dos nossos militares criou as condições para o início do processo de paz”. É certo que a posição de Bashar al Assad é agora mais forte e a oposição chamada de moderada está mais fragilizada, mas há um aspecto que parece incontornável: a oposição não aceita que Assad continue Presidente e Assad não aceita sequer que a presidência seja assunto das negociações (o regime sírio diz que é uma linha vermelha).

Com Barack Obama em final de mandato, Vladimir Putin marca o compasso da agenda internacional. Não deixa de ser estranho que Putin, depois de alinhar com Obama no cessar-fogo, decida sair parcialmente da Síria sem uma palavra aos norte-americanos. Ainda assim, a estratégia de Putin é clara: maior influência no Médio Oriente. Uma estratégia que não deixa grande margem para os críticos porque há sempre a possibilidade de comparação com a estratégia norte-americana. Basta que nos lembremos da retirada norte-americana do Iraque (2011) e do Afeganistão após longos anos de ocupação: nestes dois casos qual foi o objectivo atingido? Pois… o mesmo acontece agora com a Rússia: qual foi o objectivo atingido? A organização Estado Islâmico continua activa, a oposição considerada moderada está debilitada mas não desiste, os curdos tentam ganhar terreno e influência, o Irão continua com o aliado Assad no poder, a Turquia continua a sofrer atentados e a apontar o dedo aos curdos e a limitar a liberdade de imprensa.

Em cima da mesa está ainda a Resolução das Nações Unidas, aprovada por unanimidade em Dezembro de 2015, que estabelece um processo de solução política: negociações entre oposição e o regime; cessar-fogo; um governo de transição a designar até Junho e eleições até Junho de 2017. Eleições? Na Síria? Alguém acredita?

A diplomacia esconde sempre alguma coisa e está por saber qual é o real objectivo de Vladimir Putin, sendo certo que o Kremlin disse que no telefonema em que Putin comunicou a Assad que as tropas russas iriam retirar, o futuro do Presidente sírio não foi abordado. Uma pequena Síria, com Assad no poder, que garanta a presença russa na região, será suficiente? Uma Síria federal poderá ser uma solução? Muitas soluções se podem colocar, mas não há nenhuma que satisfaça todos os intervenientes nesta guerra.

Pinhal Novo, 15 de Março de 2016

josé manuel rosendo

quarta-feira, 9 de março de 2016

A Turquia à procura de uma política externa


A Turquia está mal com a Rússia, está mal com a Síria de Bashar al Assad, está assim-assim com Israel, está assim-assim com a NATO e os Estados Unidos, e não se sabe como está com a União Europeia. Nem é preciso falar da questão curda, porque a Turquia continua a bombardear posições dos curdos na Síria. Com os curdos iraquianos a questão é diferente. Depois, continua a ser acusada de apoiar alguns grupos extremistas envolvidos na guerra na Síria. A par disso, em termos internos, a maioria das atitudes do governo turco contrariam os valores que deviam ser respeitados atendendo a uma eventual entrada na União Europeia, nomeadamente os vários ataques à liberdade de imprensa. Isto significa que a chamada política “zero problemas” com os vizinhos é já um assunto do passado. Já não existe.

O actual Primeiro-Ministro turco, Ahmet Davutoglu é o teórico da política externa turca dos últimos anos. Em termos gerais, a política de “zero problemas” com a vizinhança assentava na ideia da estabilidade regional para o desenvolvimento da Turquia e o país colocava as questões económicas no topo da agenda das relações internacionais. O líder do PKK, Abdullah Ocalan estava preso, o Partido da Justiça e do Desenvolvimento (de Erdogan) estava no poder e a Turquia queria aderir à União Europeia. Duas destas premissas mantêm-se, mas quanto à União Europeia, as dúvidas são muitas.

Quando eclodiram as revoltas da Primavera Árabe, a Turquia foi apontada como possível modelo e exemplo a seguir. Um país muçulmano, em que o Estado, dizia-se, estava separado do poder religioso. O Ocidente achava que sim e que podia ser essa a fórmula para travar os movimentos islamistas nos países da Primavera Árabe. E a Turquia também gostou da ideia. Aliás, a possibilidade da Turquia retomar influência nos países em ebulição no Mediterrâneo Oriental e no Norte de África seria assim como que um regresso ao antigo espaço do Império Otomano. A Turquia tinha ainda o lastro da zanga com Israel por causa do ataque israelita ao navio turco que tentou furar o bloqueio à Faixa de Gaza e bater o pé a Israel é sempre algo muito simpático para o mundo árabe. 

Em determinado momento, a Turquia apostou claramente na aproximação aos vizinhos, na tentativa de ganhar influência regional em detrimento da aproximação ao Ocidente e à União Europeia, embora nunca tenha assumido essa estratégia. O problema é que quase tudo mudou. Ocalan continua preso e Erdogan no poder, mas o Irão está mais forte, as relações com Israel foram normalizadas, os curdos marcam pontos e a aposta turca na queda de Assad demora a concretizar-se. Entretanto a Turquia está inundada de refugiados e enfrenta uma maior actividade dos independentistas curdos. A Turquia parece que voltou a aproximar-se do Ocidente e da União Europeia (pelo menos para receber o cheque de apoio aos refugiados que a União Europeia não quer ver chegar ao velho Continente), mas a política “zero problemas” está definitivamente enterrada.

A Turquia, por imposição da geografia, é de facto a ponte entre o Ocidente e o Oriente, mas aproveitar essa mais-valia para construir uma política externa coerente e sem demasiadas ambiguidades é uma tarefa difícil quando tudo à volta parece estar a desmoronar-se. Talvez por isso, a política externa da Turquia parece um barco de refugiados perdido no Mar Egeu, movido a remos e muito ao sabor das marés. Veremos qual a terra firma a que vai chegar.

Pinhal Novo, 9 de Março de 2016

josé manuel rosendo

quinta-feira, 3 de março de 2016

O DIA EM QUE OS MÉDICOS COMPRARAM AS AGÊNCIAS FUNERÁRIAS (Sem ofensa para médicos nem agentes funerários)

Uma ex-ministra das finanças e actual deputada confirmou que está "iminente" a sua nomeação para administradora não executiva de uma empresa que tem clientes em Portugal como o Banif, Millenium BCP, Montepio e outros. A líder do Bloco de Esquerda, Catarina Martins, referiu-se à dita empresa como "uma empresa que, enquanto o sistema financeiro era tutelado por Maria Luís Albuquerque, fez dinheiro comprando crédito malparado ao Banif. A Arrow Global é também dona de empresas portuguesas, como a Whitestar, que é a empresa que neste momento avalia os activos do Banif que o Santander não quis e que estão no Estado". 

O Boss da dita empresa disse que a ex-ministra "vai enriquecer" o grupo. A ex-ministra, por seu lado, fez sair um curto comunicado em que afirma não haver "nenhuma incompatibilidade ou impedimento legal pelo facto de ter sido Ministra de estado e das Finanças e de ser deputada", acrescentando que "nenhuma decisão tomada pela empresa no passado foi condicionada ou influenciada por qualquer tipo de decisão que eu tenha tomado".


Estes são os factos e o problema vem a seguir: é que quando acontece este cruzamento de interesses todas as perguntas são legítimas. Em relação ao futuro, mas também em relação ao passado. Desde logo a de saber se as decisões tomadas pela então ministra não estariam já condicionadas por uma qualquer perspectiva de actividade futura. Será isto lançar uma suspeita? Não, não é. O problema existe e a questão coloca-se precisamente porque há um conflito de interesses evidente entre um governante com uma determinada tutela que vai trabalhar para uma empresa com interesses directos na área que tutelou. 

Aliás, existe uma recomendação do Conselho de Prevenção da Corrupção, de Novembro de 2012 ("Conflito de Interesses no Sector Público") que tem uma passagem muito clara que a ex-governante não deve ter lido: "Podem igualmente ser geradoras de conflitos de interesses, situações que envolvam trabalhadores que deixaram o cargo público para assumirem funções privadas, como trabalhadores, consultores ou outras, porque participaram, directa ou indirectamente, em decisões que envolveram a entidade privada na qual ingressaram, ou tiveram acesso a informação privilegiada com interesse para essa entidade privada ou, também, porque podem ainda ter influência na entidade pública onde exerceram funções, através de ex-colaboradores". 

Naturalmente que nada é ilegal neste país... 

Pinhal Novo, 3 de Março de 2016
josé manuel rosendo