Entrevista ao Grande Imã da Mesquita de Al Azhar, Ahmed Al Tayyeb, por ocasião dos 50 anos da Comunidade Islâmica em Portugal.
Pergunta - O poeta português, Fernando Pessoa,escreveu que os portugueses têm uma grande tradição árabe de tolerância e que isso torna os portugueses diferentes. Pensa que Portugal é o guardião do espírito árabe na Europa?
Resposta - Em nome de Deus o Misericordioso, em primeiro lugar quero agradecer ao Estado português, ao senhor Presidente da República e ao povo português, a boa e calorosa recepção que tive em Portugal.
Quanto à sua pergunta, desde o momento que cheguei a Portugal senti que o povo português é muito aberto, um povo que é um exemplo único de tolerância e de respeito pelos outros. Quando me refiro aos outros são aos que não são portugueses. Dentro da cultura portuguesa há aspectos muito positivos e um deles é a tolerância.
Em muitos países que já visitei e já celebrei cerimónias, e estive em conferências sobre a tolerância não vi nada como em Portugal. Portugal é um caso único. É uma experiência que é um exemplo e espero que se estenda aos outros países europeus, no sentido da tolerância, da convivência e da coerência. Este povo nunca tem medo de dizer que as outras culturas também estão relacionadas com a cultura portuguesa.
P - Na conferência que deu na Universidade Católica, o senhor falou muito de ética, foi crítico em relação ao Ocidente - disse que permanece o individualismo - e que o coração bate ao ritmo das bolsas de valores. A Religião é algo que o Homem não pode dispensar?
R - Acredito que o homem não pode ser homem se não for guiado pela religião, no sentido da ética da religião. A religião é o único caminho certo. Quais são as outras alternativas? São o avanço técnico, económico e científico. Estas questões sofrem alterações diárias, não são aspectos imutáveis. Cada avanço é diferente do outro. Por exemplo: o interesse de um país pode colidir com o interesse de outro país. Estas equações mudam constantemente e se deixarmos a Religião de fora, estas contradições e estes aspectos que estão em oposição levam a humanidade para um caminho de conflito e de tensão. Por isso a Religião é uma necessidade para a convivência, para as pessoas saberem o que devem e não devem fazer. Por vezes, estes avanços técnicos e económicos assentam na morte, em cascatas de sangue. Estamos a ver o comércio de armas a espalhar o caos em todo o mundo. Já vimos países destruídos, refugiados, já vimos muito sangue por causa do negócio das armas. Os media transmitem esta realidade todos os dias e não vale a pena dar exemplos.
P - Já o ouvi a dizer que as actuais guerras no Médio Oriente não são guerras religiosas. O que é que sentiu quando ouviu Abu Bakr al Bagdhadi a declarar o Califado na Mesquita de Mossul?
R - Quando assisti a isso senti que estava perante um homem mentiroso, que mente sobre o Islão, que mente aos muçulmanos. Está rodeado por uma força que trabalha para causar mais cascatas de sangue, mais massacres na região. Através destes massacres eles colhem benefícios. Querem dar a entender ao Mundo que o Islão é uma religião de morte, de caos, de bárbaros, uma religião de sangue. Esta visão provocou a islamofobia no Mundo Ocidental. Esta islamofobia foi criada precisamente para beneficiar alguns interesses internacionais. Isto nunca aconteceu no Islão, nunca aconteceu no Cristianismo e nunca aconteceu no judaísmo. Algumas pessoas religiosas sequestraram a religião, apoderaram-se da religião e utilizaram-na para conseguir objectivos de guerra e pessoais.
A razão das cruzadas foi expulsar os infiéis (neste sentido eram os muçulmanos) da Terra Santa e do lugar onde Jesus foi sepultado. O Clero ocidental apoiava as cruzadas. Penso que qualquer religião não permite matar, nem permite derramar uma simples gota de sangue, a não ser em legítima defesa.
No Islão e nas outras religiões o Homem está no lugar mais alto. E tem o direito de ter paz. Muitas guerras foram feitas com os homens religiosos, como o clero, mas a Religião não tem nada a ver com isso.
No Islão também não se pode derramar sangue de um animal. No Islão, o Mundo... o Cosmos, é visto como um ser vivo. Por isso temos que proteger este Mundo e foi esse o conselho do profeta aos seus líderes. Quando se trata de uma guerra para defender, não se pode matar mulheres, crianças, velhos, pessoas doentes ou que trabalhem nos campos. Não se pode matar pessoas religiosas cristãs nos mosteiros. Até um animal apenas pode ser morto pela necessidade de alimentos e não matar apenas por matar. Além disso, esta ideia estende-se às plantas: apenas se deve cortar uma árvore se for de facto necessário. Todas as criaturas são protegidas e os muçulmanos, nas guerras, têm de proteger estas pessoas, não se trata apenas de não matar e não agredir, é preciso também defender. O Islão proíbe a agressão.
P - Os países em guerra no Médio Oriente passaram pela chamada Primavera Árabe. Já disse que nas guerras existem outro tipo de interesses, de potências estrangeiras, ocidentais. Considera que as revoltas iniciais foram genuínas e depois infiltradas por interesses ocidentais ou foram desde o início os poderes ocidentais que estiveram na origem destas revoltas nos países árabes?
R - Desde o início que houve uma intervenção externa. O que aconteceu tinha a intenção de acabar com a estabilidade social. Foi um momento muito complicado, algo caótico, houve muitas manifestações ridículas.
Eu já estava em Al Azhar e assisti a esse tempo difícil. Se fosse apenas uma revolução interna, que surgisse do interior do país nunca deixaria o país destruído. Nunca deixaria o país no caos. Quando olhamos a cronologia dos eventos daquilo a que chamaram a Primavera Árabe, foi uma maneira de levar os países para o caos.
Temos o exemplo da Líbia que foi destruída em horas. Não foi destruída em dias, foi destruída em horas e ainda hoje está destruída. Não podemos chamar a isto uma revolução.
Temos o exemplo da Síria: está submersa em sangue e até agora a situação está muito complica e por isso não podemos chamar a isto uma revolução.
O Iraque... Outro exemplo muito importante. Sabemos como foi destruído. Destruíram centros culturais, acabaram com o exército iraquiano, que foi dissolvido. Sabemos que o Iraque tem diferentes crenças dentro do país e vive sob tensão. Imaginemos como um país com esta dimensão pode viver sem exército.
Não lhe chamo Primavera Árabe. Esse conceito foi inventado para sensibilizar os jovens, para mexer com os seus sentimentos.
Nós não somos como a França e a revolução francesa. Conhecemos as lutas e as mortes que aconteceram. Não temos essa ideia, nunca vamos ficar separados, a lutar entre nós, a matar-nos.
P - O Egipto também viveu a chamada Primavera Árabe, mas escapou à guerra. (O antigo presidente) Moubarak foi afastado, Mohammed Morsi (eleito após a revolta) foi afastado, e os militares estão de regresso ao poder com (Abdel Fatah) Al Sissi. O Egipto está no bom caminho?
R - Não falo como um homem político, falo como um cidadão árabe que conhece o sentir das pessoas. O Egipto escapou à ideia de destruição que vem de fora. Se os outros países conseguirem perceber como os egípcios perceberam, vão acordar, e também vão escapar como os egípcios conseguiram escapar.
P - Posso concluir que o Egipto está no bom caminho?
R - Sim, estamos no caminho certo. Estamos a fazer este caminho com passos muito firmes, sublinho passos muito firmes. Estamos a atingir a nossa meta.
P - Tenho duas frases sobre as quais gostaria de ouvir a sua opinião. A primeira é "O Islão é a solução"; a segunda: "No Islão tudo é política". Revê-se em alguma destas frases?
R - Perguntou no início se a Religião é a solução. A ética da Religião, não apenas do Islão, mas também cristianismo e judaísmo, tem aspectos semelhantes, coisas em comum, e são essas coisas em comum que são a solução. Não é apenas o Islão. São todas as religiões em comum, tudo o que é a ética da Religião.
Quero dizer também que a prova disso é quando os muçulmanos conquistaram países, e ao serem recebidos p'los nativos desses países nunca lhes disseram que o Islão era a solução. Ao contrário, sempre disseram a esses nativos que, se eram cristãos podiam continuar cristãos e podiam rezar, poderiam praticar a religião publicamente e os muçulmanos eram a garantia de que os povos se conseguiam sentir livres. Quando os muçulmanos chegaram a esses países protegeram os mosteiros e as igrejas, nunca destruíram. O papel dos muçulmanos era dar essa garantia. Por isso não podemos dizer que o Islão é a solução. Ainda hoje existem muitos países em que os muçulmanos, quando lá chegaram, casaram com cristãos.
P - E podemos dizer que "no Islão tudo é política"?
R - No Islão não é tudo política. O Islão orienta a política, mas não é tudo política. Orienta a política no sentido de facilitar a vida das pessoas, facilitar a vida dos povos. Tudo o que é trabalhar para o bem da humanidade é política do Islão, mas temos outro tipo de política como por exemplo a de países que querem ficar ricos à custa de outros países ou à custa do conflito. O Islão não vive desta política. O Islão quando surgiu foi para orientar as pessoas, por isso não podemos dizer que no Islão tudo é política.
P - Sobre Jerusalém... Os Estados Unidos declararam Jerusalém como capital de Israel. Gostaria de saber se (por causa disso) recusou, de facto, receber o Vice-presidente norte-americano, Mike Pence, e gostaria de saber o que é que o Grande Imã de Al Azhar tem a dizer aos muçulmanos relativamente a esta questão. O que é que eles devem fazer, que atitude devem tomar?
R - Sim, nós recusamos, enquanto muçulmanos, este tipo de comportamento perante os nosso lugares sagrados. Lugares sagrados muçulmanos, cristãos e também judeus.
Sim, recusei encontrar-me no momento com o vice-presidente norte-americano. Antes disso eles aceitaram o convite, mas passado algum tempo anunciaram a mudança da embaixada dos Estados Unidos para Jerusalém e portanto recusei encontrar-me com ele. É esse o meu dever perante a minha pátria e perante os lugares sagrados. Ninguém me pode culpar por esta atitude, ou será que querem pedir-me para me deixar humilhar e fazer que não vejo? Nem eu nem Al Azhar fazemos isso.
Faço-lhe uma pergunta: Imagine que chegamos hoje a Portugal e que dizemos que esta foi a nossa terra, estivemos cá durante séculos e séculos, temos a prova de que estivemos aqui e agora vamos aqui fazer um Estado muçulmano, vamos fazer o que quisermos... O que é que vai sentir? O que é que vai sentir quando dissermos que temos aqui origens e vamos fazer aqui um Estado? Claro que vai dizer que somos malucos.
Outro aspecto: a cidade de Jerusalém sempre foi habitada pelos árabes. 5 mil anos antes do Islão, chegou uma tribo árabe do Iémen e habitou a zona. Foi antes de Abraão. Sempre passaram muitos colonizadores e conquistadores por esta região que foi mudando sucessivamente de mãos. O período do governo de Israel, estamos a falar do tempo de David, foi um curto período de tempo, não se compara com o período de outras potências que também ocuparam a região. Se vamos falar assim, há outros países que também podem reclamar direitos sobre Jerusalém porque passaram muito mais anos na região do que os próprios israelitas.
Nos últimos tempos, não sei se reparou que os dois exércitos mais fortes desta zona foram destruídos, nomeadamente o exército iraquiano e o exército sírio.
O exército egípcio, graças a Deus, salvou-se. Por que é que os outros dois exércitos foram destruídos? Porque estes dois exércitos estavam próximo deste corpo ("estrutura" foi a palavra utilizada em árabe, pelo Grande Imã, para se referir a Israel) que tem de ser protegido e assim estes dois exércitos tinham de desaparecer. Foi para a estrutura (o Estado de Israel) sobreviver. Por isso foram elminados estes dois exércitos. Vi ultimamente com muita tristeza as potências ocidentais apelarem à Rússia para parar de matar pessoas nesta região e que devia acabar com os bombardeamentos. Esta é a prova nais clara do que estes países estão a fazer na nossa zona... Os cordelinhos que andam a mexer. Ficou muito claro
P - A minha pergunta concreta era: o que é que os muçulmanos devem fazer em relação a Jerusalém?
R - Pode acreditar ou não, mas os problemas do Mundo, não apenas do Médio Oriente, não são resolvidos sem haver uma solução justa para Palestina.
Quero lembrar à União Europeia e aos homens com poder, nomeadamente nos Estados Unidos e na Rússia, que têm de fazer o trabalho deles... Têm de exercer pressão, têm de resolver este problema. O que é que os países árabes e os povos muçulmanos podem fazer? Não podemos fazer nada.
O Mundo tem de assumir a sua responsabilidade.
Pinhal Novo, 22 de Março de 2018
josé manuel rosendo