Amadeu Batel vive na Suécia há 55 anos. Saiu de
Portugal para fugir da ditadura fascista e pela Suécia ficou a dar aulas de
língua portuguesa. Um dia teve uma surpresa: a Academia contactou-o para tratar
de um assunto urgente e esse assunto era o Nobel da Literatura para José
Saramago. Amadeu era amigo de Saramago. Felicidade em dose dupla. A história já
foi contada, mas Amadeu batel acedeu a recordar esses dias do Nobel.
Pergunta – Uma semana antes de ser revelado o Nobel
atribuído a José Saramago a Academia Sueca telefonou para sua casa a pedir-lhe
que fosse à Academia com urgência. Foi assim?
Resposta – Não uma semana antes, mas quase. Seis dias
antes, numa sexta-feira, fui contactado pelo secretariado da Academia para, com
urgência, fazer uma visita ao secretariado porque tinham algo para me revelar
em relação ao Prémio Nobel.
P – Lembra-se do que lhe disseram?
R – Na altura, quando entrei, fui convidado a
sentar-me até à chegada do secretário. Depois pediu para eu passar para um
salão da Academia e então perguntou-me se eu sabia o motivo de ter sido
convocado para a reunião. Eu, incrédulo, disse-lhe que não. Naturalmente que no
trajecto para a Academia já tinha pensado que só poderia ser pela atribuição do
Nobel. Na altura tínhamos os dois nobilizáveis quer eram o Lobo Antunes e o
Saramago. Entretanto adiantou-me que no dia anterior, na quinta-feira 1 de Outubro,
a Academia tinha reunido e, de forma consensual, tinha decidido atribuir o
Prémio Nobel a um escritor português. Passou algum tempo, ele não me disse quem
tinha sido, fiquei na expectativa e a determinado momento ele proferiu as
palavras mágicas e disse que era para José Saramago. Foi uma alegria
incalculável, difícil de descrever. Teria também ficado satisfeito se fosse
atribuído ao Lobo Antunes.
P – Durante esse caminho para a Academia, em que
sabia que havia dois escritores portugueses que poderiam ser galardoados, já
tinha algum palpite qual deles seria?
R – Palpite… palpite… era mais devido a uma relação…
não só à minha preferência pela generalidade da arte romanesca de Saramago, mas
mais sobretudo pela amizade que tinha a um amigo e camarada. Mas também tinha
algum receio, não no sentido de não ficar satisfeito, mas porque Lobo Antunes
tinha estado aqui na Suécia várias vezes e tinha obtido o apoio de alguma crítica
literária sueca que o preferia em relação ao José Saramago. Mas fui sempre na
esperança de que o laureado fosse o José Saramago.
P – Depois de lhe revelarem a informação,
pediram-lhe segredo…
R – Sim. Na altura, depois da divulgação do nome do
laureado, o secretário foi buscar o documento justificativo da Academia para
atribuição do Prémio, pediram-me para traduzir ou para mediar o texto para
português. O texto é traduzido em inglês, francês, alemão e na língua do
laureado. Disse-me que se quisesse consultar alguém para uma revisão do texto
podia fazê-lo e ao mesmo tempo pediu-me um rigoroso sigilo porque ninguém pode
ter conhecimento prévio e o laureado deve ser o último a saber. E disse-me que
ficaria em contacto comigo, o que aconteceu vários dias em relação à tradução,
porque tem de ser rigorosa e ser compatível com a tradução noutras línguas.
Foram dois ou três dias a preparar essa tradução.
No dia 7 de Outubro, o secretário-adjunto da Academia
telefonou-me às 14 horas e pediu-me para localizar o José Saramago em Frankfurt…
em que hotel estava, o quarto, o telefone… para que no dia seguinte, uma hora
antes da revelação do prémio, fosse contactado pelo Secretário Permanente.
Nessa altura liguei para a (Editora) Caminho mas o editor, o Zeferino Coelho,
estava em Frankfurt e o secretário estava a almoçar… Foi nessa altura que
decidi telefonar à Pilar…
P – E nessa altura…
R – Foi na quarta-feira à tarde. E revelei-lhe que o
José iria receber o Prémio no dia seguinte, pedi-lhe os contactos,
inclusivamente disse-lhe que da Academia teriam de lhe telefonar bastante cedo.
E pedi-lhe para não dizer ao José que lhe iria telefonar à noite. Notei que ela
ficou emocionada, também me disse que seria difícil durante a conversa com o
Saramago que ele não subentendesse que se passasse alguma coisa de anormal, mas
suponho que ela nunca revelou, embora lhe tenha dado indicações para ele ficar
mais um dia em Frankfurt.
P – Guardou segredo durante mais ou menos uma semana…
R – Sim, sim… se bem que por se tratar do José
comecei a imaginar e a construir inúmeros cenários e a pensar qual seria a
recepção em Portugal à atribuição do Prémio ao José…
P – Dorme-se bem com um segredo desses para guardar?
R – Não foi difícil porque era um segredo que me
dava uma enorme satisfação. Não era um segredo que tivesse uma carga negativa
ou dolorosa para transportar. Era um segredo que me dava uma certa satisfação,
um gozo interior, uma alegria incalculável, posso dizer-lhe que para além do 25
de Abril foi o dia mais feliz da minha vida. Não só por ser o José a receber o
Prémio mas também por o merecer. Era um Prémio que era dele mas era também para
a literatura e língua portuguesa, de Portugal e, se quiser estendê-lo, também
aos países lusófonos embora seja um termo que não me agrada. Era um Prémio que
o José, entre poucos, sabia carregar com a responsabilidade de ser um laureado.
Estou talvez a especular mas, em bom português, tinha estatura, tinha estaleca
para aguentar o Prémio e carregar essa responsabilidade. Durante os anos que se
seguiram foi chamado a participar em inúmeras manifestações em todas as partes
do Mundo. E nesse aspecto fiquei muitíssimo satisfeito.
P – Lembra-se das palavras que trocaram por altura
da entrega do Prémio?
R – As palavras… creio tê-lo abraçado quando ele
chegou a Estocolmo no dia 5 de Dezembro. Estava no aeroporto, com o António
esteves Martins, e creio ter sido o primeiro a abraçá-lo. O que é que se pode
dizer… disse um obrigado… talvez, mais do que todas as palavras foi o abraço… o
abraço que lhe dei e que ele me deu também para retribuir.
P – José Saramago é muito lido na Suécia?
R – É lido. Se é muito lido… mas tem um público. Se
bem que nos últimos anos não tenha sido traduzido. Foi traduzido até 2010. Poder-se-á
dizer que até à atribuição do Nobel tinha quatro títulos traduzidos em sueco e
ganhou algum público. É difícil quantificar. Ainda tem alguma notoriedade. Passaram-se
anos após a sua morte e portanto essa notoriedade tem de ser realimentada e a
pouco-e-pouco, não só o Saramago, muitos caem na memória dos leitores.
P – Que influência é que a atribuição deste Nobel
teve na comunidade portuguesa na Suécia?
R – Teve muitíssima, na altura. Saramago costumava
dizer que os portugueses tinham crescido três centímetros. Nós aqui, durante
esse período e sobretudo durante os dez dias da festa em Estocolmo, nós
crescemos muito mais do que isso. A nossa comunidade na Suécia é pequena e
sentíamos que não olhavam para nós, não reparavam. E nesse aspecto houve um
período em que nós crescemos alguns centímetros. O Saramago sempre esteve disponível
para a nossa comunidade e esteve aqui várias vezes. Esteve numa rádio livre que
tínhamos aqui. Foi sempre prestável em transmitir questões muitas vezes relacionadas
com a defesa da língua, com a defesa da cultura e respeito por determinados
direitos linguísticos e culturais, que ele defendia. Para nós, eram e ainda são
extremamente importantes, principalmente nos tempos que correm. As questões das
minorias étnicas e os portugueses na Suécia são uma minoria.
Estamos aqui há
três ou quatro gerações. Tentamos prolongar Portugal na Suécia, o que não é
fácil. E preservar e desenvolver a língua e a cultura portuguesa, muitas vezes
sem os apoios de Portugal e que também não vamos exigir a Portugal que nos
apoie, mas já que estamos a falar nisso, que houvesse uma outra política
dirigida às comunidades portuguesas. Refiro-me a uma política linguística, educativa
e cultural, para além de uma retórica de circunstância no dia 10 de Junho e em
outras circunstâncias. As comunidades e os portugueses espalhados pelo Mundo
não são tratados como portugueses equiparados aos portugueses residentes em
Portugal.
Talvez de forma abusiva mas associando à defesa que
o José Saramago sempre fez da língua e da cultura, poderia dizer que hoje
muitas das causas que ele defendeu continuam também a ser as nossas causas. A questão
que ele colocava sempre, a da tolerância – ele não gostava muito do conceito,
utilizava igualância, que se prende com a igualdade de direitos – é uma questão
que nós enquanto comunidade aqui na Suécia ainda retemos da mensagem do José
Saramago.
Pinhal Novo, 10 de Outubro de 2018
josé manuel rosendo
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