Nassíria, sul do Iraque, 12 de Novembro de 2003, mais ou
menos 10h45 (hora local), menos 3 horas em Lisboa. Tinha chegado a Nassíria na
véspera e a noite tinha sido pouco dormida. Manhã cedo disse a Laith, meu
tradutor e guia, para darmos uma volta pela cidade para, juntamente com a
observação da véspera, alinhar umas ideias para o directo que planeava fazer no
jornal das 8h00 da Antena 1. O Subagrupamento Alfa da GNR (128 homens) estava
em Lisboa a preparar-se para entrar num avião com destino a Nassíria. Era o
assunto do dia.
As notas do meu bloco assinalavam uma cidade calma, já com um
calor sufocante e em que não havia sinais de hostilidade. Já estava a caminho
do hotel onde tinha o satélite (dos grandes) quando o enorme estrondo abafado,
seguido de uma forte deslocação de ar, fez levantar e quase virar o jipe em que
seguíamos. O ar atravessou o jipe pelas janelas abertas e haveria de despedaçar
as janelas do hotel a poucas centenas de metros. Seguiu-se uma chuva de flocos
negros, pó e pedaços de tudo e mais alguma coisa. Olho para o local de onde
sopra o “vento” e vejo um enorme cogumelo de fumo negro: uma explosão, quase de
certeza um atentado.
Laith pára o carro e corremos pela rua paralela ao Rio
Eufrates onde se instala a confusão. A Base Libeccio, uma das duas que a MSU
tinha dentro de Nassíria e que apenas tinham uma ponte a separá-las, tinha sido
atacada. Há carros em chamas, a base envolta em fumo, destroços por todo o
lado, gente a chorar e a correr. A nuvem provocada pela explosão começa a
dissipar-se, tento registar na memória tudo o que está à minha frente. Registo,
registo, tento registar tudo e já só quero sair dali a correr para telefonar
para a Antena 1. Mas é preciso tentar saber mais alguma coisa: onde estão os
oficiais de ligação que a GNR já tinha em Nassíria? Alguns deles dormiam
naquela base. Tarefa impossível naquele momento.
Com a frieza possível, defino
prioridades: ir para o hotel e dar a notícia. Cerca de 400 metros a correr com
Laith por entre homens armados. Surgiram armas de todos os lados numa cidade
que tinha transmitido uma imagem diferente. Chegamos ao Hotel Al Janoob que não
tinha vidros e encontro o meu quarto tapado com um manto de pó e vidros, das
portas apenas os caixilhos. Ligo o telefone satélite, rebobino o filme que registei na
memória uns minutos antes e despejo a informação. Mortos, muitos, de certeza,
sem saber quantos. Provavelmente atentado.
De regresso ao local encontro o Major Mariz dos Santos (ainda
tenho dificuldade em tratá-lo por Coronel…) e digo-lhe que naquele momento tem
que me dar uma pequena entrevista: têm de o ouvir em Portugal. Afectado mas em
condições emocionais de responder, o Major Mariz dos Santos diz-me que ninguém
da GNR foi ferido e lembra-me de uma conversa que tivéramos na véspera: “Como
eu disse tudo podia acontecer com o extremismo e isso está aqui à vista”. De
facto, tinha deixado o alerta e já não tinha dúvidas de que tinha sido um
atentado.
Os números oficiais referem 19 mortos italianos e
8 iraquianos, com 82 feridos registados no hospital de Nassíria. Ainda hoje não
acredito que apenas tenham morrido apenas 8 iraquianos. Cheirava a morte nas margens
do Eufrates. Em Lisboa a GNR entrava no avião para o Iraque.
Nesse dia 12 de Novembro, a sorte esteve com os jornalistas
portugueses que estavam em Nassíria: Domingos Andrade, Alfredo Cunha (autor das
fotos que ilustram este texto e às quais recorri porque as que eu próprio tirei
ser-me-iam roubadas no dia seguinte…) e eu. O Domingos e o Alfredo tinham
estado na base atacada poucos minutos antes, eu estava a cerca de 200 metros, e
os três tínhamos estado lá no dia anterior.
À noite pedem-me um directo para a RTP mas os
militares da MSU que já tinham cercado a zona não me autorizam a passar. O Comandante
Di Pauli (dos Carabinieri) que nos tinha recebido na noite anterior com um
grande sorriso de satisfação por estar a terminar a missão sem baixas, esteve à
minha frente e não me reconheceu apesar de termos conversado longamente na
noite anterior graças à sua facilidade em falar português.
Nesse dia, aquele atentado antes do meu directo, evitou que
eu tivesse sido um jornalista “mentiroso”. A cidade calma que estava registada
no meu bloco de notas não era Nassíria. Há dias que não se esquecem.
josé manuel rosendo
Pinhal Novo, 12 de Novembro de 2013
Sem comentários:
Enviar um comentário