segunda-feira, 24 de agosto de 2020

O porto de Beirute e os lares de idosos em Portugal

 

A Covid 19 está para os lares de idosos, em Portugal, como a explosão no porto de Beirute está para o Líbano. Não, obviamente, ao nível da destruição e morte provocadas, mas porque, tendo em conta as diferenças, foi necessário um “abanão” forte, e trágico, para que as atenções se fixassem em problemas muito antigos. Apenas agora o mundo ficou focado em Beirute e no Líbano, quando a enorme crise que atinge o país tem vindo a dar sinais na última década (desde o início da guerra na Síria) e de forma muito clara – grandes manifestações de rua – desde Outubro do ano passado; apenas agora Portugal acordou para um problema de décadas que é o funcionamento dos lares de idosos. Situações que nada têm a ver uma com a outra, mas que coincidem na forma como os problemas são ignorados ou, se preferirmos, mal resolvidos, porque outros interesses se levantam. Quando se ignoram problemas importantes pode ser meio caminho andado para a tragédia.

 

Nos últimos dias (havia necessidade?) o Primeiro-Ministro (PM), António Costa, desafiou os que perderam o trabalho no sector do turismo por causa da pandemia a procurarem emprego na área dos lares e das instituições sociais. A frase de António Costa faz lembrar uma outra do ex-PM, Passos Coelho, quando disse que o desemprego poderia ser uma oportunidade para mudar de vida. Comparar governantes é a parte que menos me interessa porque detesto a trica política. Gosto de Política (assim, com «P» grande) e nesse sentido o importante é olhar para os lares de idosos e assumir que é uma vergonha nacional. É algo a que o Estado, todos os Governos, nunca olharam com verdadeira vontade de mudança, de modo a introduzir políticas que nos proporcionem um final de vida digno.

 

A tragédia de 18 mortos no Lar de Reguengos de Monsaraz é “apenas” a cereja no topo de um bolo vergonhoso e de uma situação – tal como o nitrato de amónio há anos guardado no porto de Beirute – que os governantes sempre “empurraram com a barriga”. É certo que algumas situações de Lares ilegais foram resolvidas com o respectivo encerramento, mas também é verdade que essas situações só tinham lugar porque não havia resposta do Estado e a sociedade precisava de soluções. Quem já teve necessidade de colocar um familiar num lar de idosos conhece perfeitamente a realidade e a oferta de serviços. Havia, não sei se ainda há, “lares” em que bastava dar dois passos porta adentro para imediatamente ser obrigado a recuar, tal o cheiro que de lá vinha.

 

Depois há os outros. Legais e com condições mínimas. Também existem outros, com boas condições, alguns até de luxo, mas a que apenas uma pequena parte da população consegue aceder. Há lares das IPSS, das Misericórdias, das Fundações e de outras instituições. Generalizar será sem dúvida um exercício perigoso e até injusto para algumas instituições, mas esta é uma área em que a realidade veio demonstrar que precisamos de um banho de transparência. Desde logo porque aqueles que usufruem dos serviços prestados, na maioria dos casos, já não têm consciência da realidade e, por acréscimo, não se queixam do tratamento recebido. E, já agora, a maioria deles deixou de votar. Aqueles que, por motivos de saúde ou outros, estão indefesos, deveriam merecer ainda maior consideração e respeito.

 

É importante – aproveitando a visibilidade e atenção que o problema recebe – fazer um levantamento, um inquérito nacional, à situação das instituições que acolhem Idosos. Mas um inquérito a sério, e não apenas pedindo informação a essas instituições, porque se assim for é tempo perdido e dinheiro mal gasto. É importante saber tudo: do número de idosos ao número de Instituições; do que pagam os utentes ao que é pago pela Segurança Social; dos trabalhadores qualificados aos indiferenciados e ao número de trabalhadores que têm passado por cada instituição e em que circunstâncias; qual é o património das instituições e como é que ele se tem alterado ao longo do tempo. Obviamente que a lista do que é preciso saber não se fica por aqui. Mas é mesmo preciso saber, de forma transparente, o que se passa nos lares. Não precisamos de power-points bonitos, precisamos de informação credível e rigorosa. E a necessidade de se saber o que se passa não está associada a qualquer suspeita nem pretende insinuar seja o que for: é apenas a necessidade de saber as linhas com que nos cosemos.

 

Infelizmente, em certos aspectos, Portugal é um país de fachada. E a estatística é determinante no discurso político. Não há responsável político que prescinda de estatística a preceito, para responder às críticas. É prática habitual na nossa vida política que um qualquer ministro, depois de seis meses em funções, diga da sua própria área que tudo corre às mil maravilhas, mesmo que tenha dito cobras e lagartos enquanto foi oposição e até chegar ao Governo. E esse é também um problema dos lares: a estatística e os relatórios, onde tudo parece estar sempre bem e a melhorar.

 

Para contrariar a estatística e as aparências há uma história que me foi contada por um amigo, que teve a mãe 10 anos num lar de idosos. A senhora já não conseguia alimentar-se sozinha, precisando de apoio no momento das refeições, com a necessidade acrescida dos alimentos terem de ser partidos em pedaços muito pequenos porque essa capacidade de mastigar também estava diminuída. Numa visita fora das horas habituais, esse meu amigo deu com um prato de quartos de maçã pousado na mesa de cabeceira... numa outra visita igualmente fora de horas, estava o prato do almoço igualmente pousado na mesa de cabeceira. Em nenhum deles a mãe do meu amigo havia tocado; em nenhum deles alguém havia pegado para dar a refeição à idosa. Mas apesar disso, o mesmo lar ostentava nas paredes, para quem quisesse ver, as ementas variadas e os respectivos nutrientes que as compunham. Ementas perfeitas, diga-se, mas que só eram perfeitas no papel, porque muitas refeições nunca chegavam ao estômago dos idosos. A forma e a estatística, traídas pela realidade. E quanto a levantar esta idosa da cama, para a sentar numa cadeira, mesmo que apenas para olhar uma parede em frente, por vezes não havia trabalhadores suficientes. O meu amigo confirma: não havia!!!

 

Voltando ao desafio lançado por António Costa, e talvez sem o saber, o PM toca numa situação que contribui decisivamente para o deficiente funcionamento de alguns lares de idosos. Tratar de idosos com múltiplas carências exige uma vontade muito especial, porque é uma área muito difícil. É um trabalho pesado que exige dedicação, coração e alma. Exige uma formação focada na necessidade do conforto que deve ser dado a quem está a chegar ao fim. O que tem acontecido – voltamos à história que o meu amigo me contou – é muitos destes lares recorrerem a mão de obra não qualificada, e barata, enviada pelo Instituto de Emprego e Formação Profissional (ao abrigo de Programas que permitem às Instituições terem trabalhadores com um custo muito abaixo do que teriam de pagar a outros contratados directamente), e que atinge, por vezes, uma rotação que torna quase impossível fixar a cara de quem lá trabalha. Um lar de idosos não é uma linha de montagem industrial e os idosos precisam de ser acompanhados e tratados por alguém com quem estabeleçam algum tipo de ligação afectiva. Se a proposta do PM fizer caminho – mesmo com a respectiva formação profissional – há uma grande probabilidade de termos pessoas contrariadas a trabalhar nos lares – o que acontecia com muitas das que eram enviadas pelo IEFP – sem vocação e que se escapam na primeira oportunidade.

 

É importante sabermos o que correu mal no Lar de Reguengos de Monsaraz – claro que é – mas não para “pendurar” alguém na praça pública, nem para que sejam retirados dividendos políticos por cima dos cadáveres dos que morreram. Se alguém deixou de cumprir as funções a que está obrigado terá de responder por isso, mas o mais importante depois de se saber o que aconteceu em Reguengos e noutros lares do país, é fazer mudanças que evitem a repetição destes casos e que permitam um tratamento digno a quem lá está.

 

Se não soubermos tratar os nossos velhos – e sempre refiro o termo com carinho, até porque também eu gostaria de chegar a velho – esse  será um sinal do fraco país que vamos construindo e que em certo sentido já somos.

 

Pinhal Novo, 24 de Agosto de 2020

josé manuel rosendo

sexta-feira, 14 de agosto de 2020

Acordo de Paz entre Israel e o líder mais poderoso do mundo árabe provoca a fúria dos palestinianos

 Edição do Courrier International nº 1494, com cartoon assinado por André Carrilho

Durante a conferência de imprensa em que anunciou o Acordo de Paz entre Israel e os Emirados Árabes Unidos, o Primeiro-Ministro israelita, Benjamin Netanyahu, foi muito claro: a anexação do Vale do Jordão e de grande parte da Cisjordânia onde estão muitas dezenas de colonatos judaicos, continua em cima da mesa e a suspensão é apenas temporária. Dito de outra forma: esta suspensão é útil para conseguir este Acordo, mas vamos ver como correm as coisas e, se for preciso, a anexação avança sem demoras.

 

O Acordo tem a bênção de Donald Trump, presidente dos Estado Unidos, que juntamente com Mohammed bin Zayed (MBZ), príncipe dos Emirados Árabes Unidos e Benjamin Netanyahu, partilham ódios comuns: o Irão e a Irmandade Muçulmana. Anunciado como “histórico”, o Acordo é principalmente do interesses dos três líderes que o fizeram, porque reforça o arco de inimigos do Irão, aprofunda a divisão no mundo árabe e enfraquece a causa palestiniana.


Depois de estilhaçar tudo o que estava acordado para o conflito israelo-palestiniano, Donald Trump pretende surgir agora como o construtor da paz entre israelitas e árabes, ao mesmo tempo que (com eleições no horizonte) procura algum êxito que anule a imagem negativa que tem vindo a construir por causa da pandemia; Benjamin Netanyahu, entra na lista (o terceiro) de líderes israelitas a conseguirem a Paz com um país árabe, livra-se da promessa de uma anexação imediata e encontra um aliado produtor de petróleo; MBZ passa a ter acesso a mais tecnologia israelita, quiçá armamento e reivindica que o Acordo tenha sido alcançado como forma de suspender a anexação da Cisjordânia, pretendendo ser visto como o salvador dos palestinianos.


Mas essa não foi a interpretação dos palestinianos e de imediato surgiu uma chuva de críticas. Na Faixa de Gaza, o Hamas considerou a atitude dos Emirados como uma “facada nas costas” e acusou-os de estarem a premiar Israel pelos crimes cometidos com a ocupação (da Cisjordânia); em Ramallah, Mahmood Abbas, líder da Autoridade Palestiniana (AP), disse que se trata de uma traição. Um porta-voz da AP, acrescentou que é uma “traição a Jerusalém, (à Mesquita de) Al-Aqsa e à causa palestiniana”. Outra destacada dirigente palestiniana, Hanan Ashrawi, da Organização de Libertação da Palestina, através do Twitter, disse que “Israel foi recompensado por não declarar abertamente o que está a fazer à Palestina de forma ilegal e persistente desde o início da ocupação”. Ainda mais um dado: a Agência Palestiniana Wafa revelou que o representante palestiniano nos Emirados foi chamado a Ramallah.

 

No Irão, a Agência de notícias Tasnim, próxima da Guarda Revolucionária, classificou o acordo de “vergonhoso”. Por fim, em Israel, o presidente do Conselho que representa cerca de quinhentos mil colonos, disse que o Acordo é uma traição à confiança dos colonos que vivem na Cisjordânia.

 

Quanto aos dois únicos países árabes que já tinham Tratados de Paz com Israel, a Jordânia disse que é preciso esperar para ver e defendeu que Israel deve participar em negociações sérias para chegar à solução dois Estados; o Presidente egípcio Abdel Fatah Al Sissi  regozijou-se e saudou o que disse ser uma etapa para a concretização da paz no Médio Oriente, sublinhando ainda a “paragem” da anexação de parte da Cisjordânia.

 

Tendo agora sido anunciado este Acordo, de há muito se conhecem as negociações (e as relações) mais ou menos discretas entre Israel e os Emirados, mas também com a Arábia Saudita e o Bahrein, e Donald Trump manifestou a convicção de que outros países árabes poderão seguir o caminho dos Emirados Árabes Unidos. Um dos aspectos referidos no Acordo é o da possibilidade de muçulmanos de todos os países, desde que em paz e para rezar, possam visitar a Mesquita de Al Aqsa (terceiro lugar sagrado do Islão), em Jerusalém, desde que cheguem a Telavive com origem em Abu Dhabi (Emirados).

 

Mas, se Benjamin Netanyahu é sobejamente conhecido, quem é Mohammed bin Zayed, príncipe dos Emirados Árabes Unidos, o homem que assina este acordo de paz com o Primeiro-ministro israelita?

Em Junho de 2019, o jornal New York Times descreveu-o como o dirigente mais poderoso do mundo árabe. Antigo piloto de helicópteros formado no Reino Unido, é considerado o homem mais rico do mundo, tem o exército mais poderoso do mundo árabe, combateu as “Primaveras Árabes” (apoiou Al Sissi para chegar à presidência do Egipto, afastando a Irmandade Muçulmana) e apoiou o que o jornal descreve como um dos seus protegidos (Mohammed Bin Salman) para chegar ao poder na Arábia Saudita. A influência que tem em Washington é imensa, desde há 30 anos. Decaiu com Barack Obama, mas com Donald Trump é considerado uma das vozes que a Administração norte-americana mais tem em conta. Quanto à ligação a Israel já é longa e já permitiu, por exemplo, que os Emirados comprassem melhoramentos israelitas para os caças F-16 bem como programas informáticos de última geração para espiar telemóveis. Os Emirados Árabes Unidos têm 6% das reservas mundiais de petróleo.

 

Fechado este Acordo, fica a desconsideração, mais uma, do mundo árabe em relação à causa palestiniana. Por muito que a Liga Árabe emita comunicados e declarações de condenação à política de anexação israelita, são os actos que contam, e esses, em defesa da causa palestiniana, ninguém dá por eles. Nada se pode ter contra a Paz entre dois países, mas para um país árabe a questão palestiniana não devia ser apenas retórica. Ou será este um sinal de que o "Mundo Árabe" é algo que faz parte do passado?

 

Pinhal Novo, 14 de Agosto de 2020

josé manuel rosen

quarta-feira, 12 de agosto de 2020

Líbano: será possível fazer a Revolução?


Campo de refugiados palestinianos (Bourj Al Barajneh) nos arredores de Beirute (2013). Foto: jmr


É terrível a decisão com que se confrontam os libaneses. Terrível porque difícil e pode significar um corte com tudo o que têm conhecido na história recente do país. Perante um país em bancarrota, um Estado que não existe, desemprego em níveis assustadores e carências de toda a ordem – para além das ameaças externas – os libaneses estão na rua em protesto e já mostraram que conseguem fazer cair Governos. Mas esta é a fase em que os que verdadeiramente mandam no Líbano permitem o aliviar da pressão para evitar que a “panela rebente” de forma violenta e descontrolada.

 

Talvez seja exagerado anunciar a morte do actual sistema político e da divisão de poderes que serviu de pilar a 30 anos de paz entre as diferentes comunidades que compõem o Líbano mas, por outro lado, a necessidade de mudança é óbvia e, sem ela, não se vislumbra forma de dar um novo rumo ao país. Esse Acordo, que dividiu lugares no Parlamento, atribui a Presidência a um cristão Maronita, a liderança do Governo a um sunita e a Presidência do Parlamento a um xiita, parece um colete de forças do qual é imperioso que o Líbano se liberte, mas por outro lado é impossível prever o que pode acontecer se esse pilar da paz for dinamitado.

 

É habitual referirmo-nos a determinadas situações dramáticas ou de grande conflito com a expressão “nada vai ser como antes”. Algumas vezes será um excesso de linguagem provocada por visão curta da História, outras será uma leitura apressada e de hipervalorização de um determinado contexto, mas outras vezes é mesmo assim e a mudança é radical. E aqui convém sublinhar que “radical” significa tão só, literalmente, ir à raiz do problema.

 

O Líbano atravessa uma dessas situações. Isto é: o copo encheu e transbordou, a paciência ultrapassou todos os limites, e não há forma de acalmar a revolta dos libaneses a não ser que seja feita uma mudança radical no sistema político que os arrastou para um caldo de desespero que nunca foi visto em tempos mais recentes, mesmo com as sucessivas guerras, conflitos e vagas de refugiados.

 

Para que a revolta sossegue, será necessário que todos os protagonistas das últimas três décadas (ou até mais) saiam de cena. É essa a exigência da “rua”. Os libaneses não acreditam em políticos que quebraram sucessivamente as promessas feitas ao povo, ao mesmo tempo que enriqueceram e alimentaram clientelas, deixando o país minguar e entrar em falência.

Identificado o problema, falta encontrar uma solução. Quem deve substituir os actuais políticos?, “caras novas” das mesmas forças políticas? Será difícil, uma vez que não poderão escapar aos “esquemas” que essas forças políticas sempre controlaram. Então, quem? Será possível surgir uma nova geração de políticos, quiçá com origem nos diferentes (e são muitos) movimentos que organizam os protestos que já fizeram cair dois Governos? E que orientação política terá esse novo movimento? Conseguirá formar um único bloco/partido político que capte, independentemente da confissão religiosa, o voto e a confiança de muitos libaneses? Ou vão surgir vários pequenos partidos e movimentos que acabarão trucidados pelas forças políticas tradicionais? Basta que nos lembremos de que o Movimento que provocou a queda do egípcio Moubarak foi varrido nas eleições que se seguiram e, como sabemos, o Egipto já regressou à “casa de partida” com um ditador militar no poder. E se este Movimento de revolta no Líbano conseguir formar uma força política sólida, como vão reagir as forças políticas tradicionais? Vão abrir mão de toda a influência e poder que sempre mantiveram?

 

São perguntas com resposta extremamente difícil. Para além do que os libaneses pensam e querem é bom não esquecer as influências externas. Irão, Estados Unidos, Rússia, União Europeia (para não dizer França...) e até a China, estão a mexer “os cordelinhos”. Israel, embora não directamente, também influencia.

 

O único censo de que há registo foi feito em 1932 e não se sabe ao certo quantos são os libaneses. Mas sabe-se que existem 18 confissões religiosas no país. Na hora da verdade – do voto – há uma identidade confessional que pode sobrepor-se a um interesse nacional. É muito difícil a quem se sente desprotegido abandonar a única base que lhe oferece garantias de protecção e apoio. E aí chegados, os sunitas irão votar nos partidos sunitas; os xiitas nos partidos xiitas e os cristãos nos partidos cristãos. Não adiantará muito dizer que não pode ser assim, porque a realidade é assim mesmo e só mudará quando os libaneses quiserem.


Os libaneses têm uma memória de guerra e violência que certamente não quererão repetir, mas também é verdade que muitos libaneses nada têm a perder.

 

Pinhal Novo, 12 de Agosto de 2020

josé manuel rosendo

segunda-feira, 10 de agosto de 2020

O Acordo (de Taif) que pôs fim à guerra civil no Líbano pode ter os dias contados

 Foi necessário um enorme estrondo para que o Líbano merecesse atenção. Não bastava as manifestações desde 17 de Outubro do ano passado, não bastava o afundar da Libra libanesa; não bastava a grave crise económica, o desemprego e a queda brutal do poder de compra; não bastava haver um milhão e 500 mil refugiados sírios no país; não bastava as regulares violações israelitas do espaço aéreo libanês... Tem sempre de acontecer algo de terrível para que um determinado país, conflito ou situação, que merece acompanhamento mais atento, fique debaixo dos holofotes. Há quem critique acções violentas em contextos de conflito político mas, de facto, só a partir daí o mundo se apercebe que algo de importante está a acontecer em determinado país. No caso da explosão no porto de Beirute, não foi – até ver – uma acção desencadeada directamente por acção humana, mas a destruição provocada tornou inevitável uma maior atenção ao que se passa no Líbano.

 

As manifestações que se seguiram, e continuam, levaram à ocupação de vários ministérios e à demissão de dois ministros e também à renúncia de sete deputados. Mas é bom que se saiba que as manifestações já tinham provocado a queda de um Primeiro-ministro (Saad Hariri) e não foi por isso – por ter havido um novo Governo – que alguma coisa mudou no quotidiano libanês. Aliás, o actual Governo, liderado por Hassan Diab, já foi uma resposta às manifestações, sendo um Governo de características muito específicas (formado por tecnocratas) e totalmente inesperadas, uma vez que o Primeiro-Ministro (sunita, como a Constituição obriga) não tem o apoio das forças sunitas, mas sim do Hezbollah (xiita) e respectivos aliados. Algo que nunca tinha acontecido.

 

Por estes dias, no Líbano, tal como em 2011 aquando das “primaveras árabes” noutros países, o povo também quer a “queda do regime!”, mas a diferença é que o regime libanês é um regime democrático. Com muitos e terríveis defeitos, é certo. Tal como em muitas outras democracias, também no Líbano, a corrupção e os líderes políticos que pensam em tudo menos na boa governação, acabam por desiludir o povo e chega o dia em que a “rua” se revolta a sério.

 

Em 2011, nas ruas de Tunis, Cairo ou Bengahzi, o povo pediu a “queda do regime” mas eram ditadores sanguinários que estavam a ser corridos. No Líbano, a questão é diferente, embora a maioria da actual classe política não mereça qualquer consideração.

 

A pergunta a fazer é simples: se este Governo sair de imediato, quem governa o Líbano até às eleições já prometidas? Se esta classe política for afastada quem tomará o seu lugar? Numa ditadura, quando há uma revolução, a oposição tem gente preparada para tomar o poder, mas no caso do Líbano, não se sabe como será. Obviamente que esta dúvida não pode servir de argumento para manter gente corrupta no poder, mas seria bom que se conhecessem as alternativas, até porque a última coisa que o Líbano precisa é de uma situação em que a luta política ganhe contornos de conflito violento.

 

Por agora, conhece-se uma “Carta de Salvação Nacional, para um Estado de Direito e da Cidadania”, da autoria de um “colectivo de cidadãos” que já terá recebido mais de 70 mil assinaturas e que propõe um conjunto de medidas contra a corrupção e o clientelismo de um (actual) poder de base confessional. A dita carta propõe, entre outras coisas, que o actual acordo que distribui o poder pelas diferentes confissões religiosas seja anulado e que a representação no parlamento dependa apenas das opções políticas dos libaneses. Aqui chegados temos outro problema: o Acordo de Taif, assinado em 1989 e que ajudou a pôr fim à guerra civil, distribui os cargos políticos entre as diferentes comunidades religiosas e mesmo se, até agora, nunca foi totalmente cumprido, contribuiu de forma decisiva para o Líbano não voltar à guerra civil. Se for anulado não se sabe o que poderá acontecer. O Acordo de Taif obriga a alianças e acordos porque nenhuma das comunidades é maioritária e mesmo que isso tenha sido utilizado para a compra de favores e para o escalar da corrupção, também é verdade que evitou o domínio de qualquer uma das comunidades em relação às outras.

 

É certo que a comunidade libanesa de hoje não é igual àquela que há 30 anos aceitou este Acordo, mas a religião continua a ter um forte peso na sociedade libanesa e na hora de votar não se sabe se as novas gerações não vão fazer uma opção confessional. Se a derrocada do actual sistema no Líbano conduzir a um outro sistema livre da distribuição confessional dos cargos políticos, teremos de esperar para ver o resultado, mas só os libaneses sabem aquilo que pode ser o melhor para esse país, maravilhoso, à beira do Mediterrâneo.

 

 

Pinhal Novo, 9 de Agosto de 2020

josé manuel rosendo

 

sábado, 8 de agosto de 2020

Só os libaneses podem ajudar o Líbano

Mausoléu de Rafic Hariri, em 2011, na Mesquita de Al Amin, Beirute. Foto: jmr



Escrevo este texto à mesma hora em que decorrem manifestações em Beirute contra uma velha classe política acusada de corrupção e má governação do país. Já se sabe - disse o Primeiro-Ministro - que o Líbano terá eleições antecipadas. Por agora, o que faz furor entre os media internacionais são fotografias de um manifestante com a simulação do enforcamento do líder do Hezbollah, Hassan Nasrallah, passando a ideia de que o Hezbollah é o “pecado original”. Não é! Há corrupção no Líbano? Sem dúvida, muita corrupção! Tem havido má governação? Sem dúvida que sim. E que mais?

 

Desde logo, num momento em que Beirute volta a “sangrar” devido à explosão de dia 4 e quando o país está muito afectado pelo novo coronavírus, precisando claramente da ajuda e da solidariedade internacionais, torna-se difícil compreender o momento escolhido para o protesto. É certo que os protestos contra a corrupção da classe política começaram no Outono do ano passado, mas depois da recente explosão no porto, repetiram-se hoje e também na última quinta-feira. Num momento em que o país ainda está a contar os mortos, dificilmente este tipo de protestos terá algum efeito concreto a não ser somar caos ao caos. Fica a ideia de que há alguém fortemente interessado em criar uma situação que justifique uma intervenção estrangeira, tenha ela a forma que tiver.

 

Ainda não se sabe o que provocou a explosão que varreu parte de Beirute, a 4 de Agosto. Sabemos que havia nitrato de amónio armazenado no porto em grande quantidade e sabemos que para este químico explodir precisa de uma ignição. E sabemos que havia artefactos de pirotecnia. Nas declarações após a recente visita do Presidente francês a Beirute, o Presidente libanês Michel Anoun admitiu que tudo pode ter resultado de incúria, mas não excluiu a possibilidade de ter havido uma intervenção externa, através de um míssil ou de uma bomba, lançados contra o porto de Beirute. De notar que Anoun disse isto três dias depois da explosão. Não o disse a “quente” e, espera-se de um Presidente, que não profira declarações apenas para gerar suspeitas e confusão.

 

Logo no dia da explosão, as primeiras imagens que mostravam a formação de um cogumelo e a própria potência da explosão, eram sinais claros de que não se tratava de fogo de artifício, como inicialmente se alvitrou.

 

Sem alimentar hipocrisias nem cinismos, não devemos ter medo das palavras ao abordar mais este terrível momento e, sendo de Beirute que se trata, com o passado recente que se conhece e com toda a complexidade geopolítica que marca a região, não foi de todo descabido pensar que tinha sido uma explosão de armamento, quiçá do Hezbollah. O Líbano e o Hezbollah têm vizinhos perigosos – da mesma forma que o Líbano e o Hezbollah são considerados perigosos pelos vizinhos – e sabemos como essa convivência é difícil. A violação do espaço aéreo libanês por parte de Israel é quase diária e os dois países estão ainda, oficialmente, em guerra. Também por isso, por estarem ainda em guerra, a oferta de ajuda feita por Israel é um claro acto de cinismo.

 

Israel demarcou-se de qualquer intervenção na explosão. O Hezbollah fez o mesmo. Aliás, o Hezbollah nunca provocaria uma explosão como aquela que aconteceu em Beirute, porque nunca foi essa a estratégia do “Partido de Deus”.

 

Para perceber a complexidade do Líbano, ler Amin Maalouf pode ser uma excelente ajuda. O escritor libanês, refere no seu mais recente livro “O Naufrágio das Civilizações”, “o hábito de as diferentes comunidades arranjarem protectores fora do país, para reforçarem a sua posição no interior. Era como se na Suíça – pois amiúde se disse que o Líbano era a Suíça do Próximo Oriente –, os habitantes de Zurique, Genebra ou Ticino pedissem ajuda à Alemanha, França ou Itália, sempre que entrassem em conflito com o cantão vizinho. A Confederação (Suíça) ter-se-ia, sem dúvida, desintegrado”. E Maalouf diz mais: “... todas as comunidades do Líbano são minoritárias, até as mais numerosas. Todas elas conheceram, um dia ou outro, perseguições ou humilhações e todas sentiram a necessidade de recorrer à astúcia e de se proteger para sobreviver. Como tal, cada uma empenhou-se em tecer redes regionais e internacionais, com todo o tipo de parceiros, que alimentavam as suas próprias ambições, os seus próprios medos, as suas próprias inimizades...”. Ao citar Amin Maalouf não significa que concorde com todas as suas opiniões, mas nesta descrição parece-me estar carregado de razão. Beirute, para além de capital do Líbano foi também "capital" de muitos interesses, plataforma perfeita para negócios que teriam mais problemas noutras latitudes.

 

Al Hayba, uma série televisiva de 30 episódios, disponível na Netflix, sobre um clã libanês e o tráfico de armas e drogas, também ajuda a perceber a realidade libanesa em que a religião, as etnias, os partidos políticos e os clãs, muitas vezes se substituem ao Estado para ditar as regras em que todos se movimentam.

 

Fouad Siniora, Primeiro-ministro do Líbano durante a guerra de 2006, disse em Roma, onde foi assinado o cessar-fogo, que pelo menos no tempo dele nunca seria assinado um Tratado de Paz com Israel e, acrescentou – o facto tem ainda mais importância por Siniora ser um sunita – o (xiita) Hezbollah faz parte da história do Líbano. Foi a resposta de Siniora, aos que exigiam o desarmamento do Hezbollah. Aliás, essa exigência, estando Israel ali ao lado, e sendo o Líbano o que é, só podia ser feita por quem, de facto, não queria contribuir para nada a não ser para continuar a apontar o dedo ao Hezbollah.

 

Aliás, durante a guerra de 2006, foi o Hezbollah que valeu aos libaneses. O Hezbollah e as Organizações não Governamentais, porque o Estado libanês revelou total incapacidade para valer ao povo durante os ataques israelitas e depois, no apoio aos que perderam a casa e emprego, e também na reconstrução das zonas afectadas.

 

O Líbano não vai mudar por decreto ou por imposição externa. Só os libaneses poderão dar um novo rumo ao país e a forma de o fazer também terão de ser os libaneses a descobrir. A região tem uma tradição de convivência entre diferentes povos e religiões que só a interferência ocidental desarticulou, traçando fronteiras e impondo divisões que geraram conflitos, guerras e afastaram povos. A recente visita do Presidente francês é um sinal disso mesmo e a parvoíce de uma petição online para que a França volte a governar o Líbano, são sinais de que ninguém aprendeu nada com os erros do passado. A ajuda internacional será algo de que o Líbano, neste momento, obviamente precisa, mas terá de ser mesmo uma ajuda e não um “empréstimo” com um preço político associado. Se for isso não se pode chamar ajuda. Chamem-lhe o que quiserem.

 

O sofrimento desta cidade, e do país, parece má sina, se atendermos a que, periodicamente, têm lugar desastres ou conflitos de tal modo violentos que obrigam a sucessivos renascimentos. Beirute e o Líbano, mais uma vez, terão de renascer. Aos libaneses só tenho de agradecer a forma como sempre fui recebido. Por todos.

 

PS – vou tentar em breve voltar a este assunto olhando já para as eleições antecipadas e para o xadrez político libanês.

 

Pinhal Novo, 8 de Agosto de 2020

José Manuel Rosendo

domingo, 2 de agosto de 2020

Abutres, raposas e as leis que permitem vigarices

Créditos da imagem: Essential Business


Não sei se posso ser processado por chamar de vigarice a algo que está dentro da legalidade, mas ainda assim arrisco. Afinal, quando o primeiro argumento que ouvimos para defender uma vigarice é o de que “é tudo legal”, sinto uma imediata vontade de fugir. É apenas uma opinião, mas quando se sente o cheiro da vigarice a invadir-nos as narinas não há forma de dizer o contrário.

 

Quando se vende um “pacote” de imóveis avaliados em 631 milhões de euros por apenas 364 milhões de euros, dá que pensar. Paralelamente a essa venda, o Novo Banco pediu que o Fundo de Resolução cobrisse (com 260 milhões de euros) parte do “prejuízo” que a venda provocou. E o drama é que a venda foi aprovada por quem tinha de se pronunciar, nomeadamente pelo próprio Fundo de Resolução. Os imóveis foram vendidos a preço de pechincha, alguém vai encaixar o lucro de uma revenda a preço de mercado e, depois, o Fundo de Resolução trata de colocar mais dinheiro para compensar as perdas do Novo Banco. Nada é ilegal.

 

Fartos de salvar bancos e banqueiros, temos agora mais esta negociata do Novo Banco. Como sempre, as instituições e “empresas” envolvidas remetem-se ao silêncio, o Governo indigna-se e o Banco de Portugal dá respostas “redondas” quando lhe é perguntado se pode garantir que o negócio de venda de imobiliário não envolve (como compradores) alguém também ligado à estrutura accionista do Novo Banco. Em bom rigor não pode dar essa garantia, porque o secretismo que envolve os Fundos de Investimento registados em paraísos fiscais bloqueiam o acesso a essa informação.

 

Diga-se em abono da verdade que, quanto ao empréstimo concedido, o Novo Banco fez com este pacote imobiliário aquilo que qualquer Banco faz com uma casa que lhe pertença: empresta dinheiro a quem a quiser comprar. Mas se o negócio com um qualquer cidadão, impõe que o Banco saiba a quem empresta o dinheiro, não vá dar-se o caso de ser um mau pagador, o que é fantástico neste caso é que não é possível saber a quem o dinheiro foi emprestado. É pelo menos isso que se infere da reportagem de Paulo Pena no jornal Público, embora também seja  dito que há hipotecas que servem de garantia de pagamento.

 

Aqui chegados, só podemos pensar naquela imagem clássica do cão que procura morder a própria cauda e anda às voltas sem parar e sem nunca conseguir chegar à cauda. De nada adianta a indignação ou os discursos moralistas de quem espera algo que se assemelhe a ética, quando estão em campo os tais Fundos de Investimento (também conhecidos por Fundos Abutres) e negócios de muitos milhões, ainda por cima com a garantia do nosso dinheiro, isto é, do dinheiro do Estado. A indignação de alguns políticos, por não se conhecer a identidade da estrutura acionista das offshores através das quais o negócio foi feito, só pode provocar o nosso sorriso de incredulidade. Então, não sabem como funciona?

 

É bom que registemos este facto: a Lei permite que estes negócios se façam.

 

E é bom que registemos um segundo facto: este negócio só é possível porque existem paraísos fiscais e as tais empresas offshores. E todos sabemos a quem convém e quem não quer acabar com esta realidade. Não há negociata ou escândalo financeiro que não tenha passagem obrigatória por offshores e paraísos fiscais.

 

A Comissão Europeia – que considera que há paraísos fiscais bons e outros maus – recomendou  recentemente aos países da União Europeia que recusem ajudas públicas às empresas com ligações aos territórios que constam da lista negra de paraísos fiscais, estando as Ilhas Caimão nessa lista, precisamente onde estão registadas as offshore que entram no neste negócio com o Novo Banco.

 

A questão é política, e já que não é possível ao Estado português decidir sobre a existência de paraísos fiscais fora do nosso território, será possível legislar no sentido de proibir que qualquer instituição ou empresa portuguesa mantenha negócios ou ligações a empresas offshore. Para podermos falar de transparência não podemos ter toda esta opacidade a envolver o nosso dinheiro e os interesses do país.

 

Enquanto as raposas estiverem legalmente dentro do galinheiro, já sabemos o que vai acontecer. É uma questão de tempo e oportunidade. Não se trata de desamor ou de maldizer a Pátria, mas já Eça dizia através de João da Ega que “isto é uma choldra torpe”. Se não é, parece!

 

Pinhal Novo, 1 de Agosto de 2020

josé manuel rosendo