Campo de refugiados palestinianos (Bourj Al Barajneh) nos arredores de Beirute (2013). Foto: jmr
É terrível a decisão com que se confrontam os libaneses. Terrível porque difícil e pode significar um corte com tudo o que têm conhecido na história recente do país. Perante um país em bancarrota, um Estado que não existe, desemprego em níveis assustadores e carências de toda a ordem – para além das ameaças externas – os libaneses estão na rua em protesto e já mostraram que conseguem fazer cair Governos. Mas esta é a fase em que os que verdadeiramente mandam no Líbano permitem o aliviar da pressão para evitar que a “panela rebente” de forma violenta e descontrolada.
Talvez seja exagerado anunciar a morte do actual sistema político e da divisão de poderes que serviu de pilar a 30 anos de paz entre as diferentes comunidades que compõem o Líbano mas, por outro lado, a necessidade de mudança é óbvia e, sem ela, não se vislumbra forma de dar um novo rumo ao país. Esse Acordo, que dividiu lugares no Parlamento, atribui a Presidência a um cristão Maronita, a liderança do Governo a um sunita e a Presidência do Parlamento a um xiita, parece um colete de forças do qual é imperioso que o Líbano se liberte, mas por outro lado é impossível prever o que pode acontecer se esse pilar da paz for dinamitado.
É habitual referirmo-nos a determinadas situações dramáticas ou de grande conflito com a expressão “nada vai ser como antes”. Algumas vezes será um excesso de linguagem provocada por visão curta da História, outras será uma leitura apressada e de hipervalorização de um determinado contexto, mas outras vezes é mesmo assim e a mudança é radical. E aqui convém sublinhar que “radical” significa tão só, literalmente, ir à raiz do problema.
O Líbano atravessa uma dessas situações. Isto é: o copo encheu e transbordou, a paciência ultrapassou todos os limites, e não há forma de acalmar a revolta dos libaneses a não ser que seja feita uma mudança radical no sistema político que os arrastou para um caldo de desespero que nunca foi visto em tempos mais recentes, mesmo com as sucessivas guerras, conflitos e vagas de refugiados.
Para que a revolta sossegue, será necessário que todos os protagonistas das últimas três décadas (ou até mais) saiam de cena. É essa a exigência da “rua”. Os libaneses não acreditam em políticos que quebraram sucessivamente as promessas feitas ao povo, ao mesmo tempo que enriqueceram e alimentaram clientelas, deixando o país minguar e entrar em falência.
Identificado o problema, falta encontrar uma solução. Quem deve substituir os actuais políticos?, “caras novas” das mesmas forças políticas? Será difícil, uma vez que não poderão escapar aos “esquemas” que essas forças políticas sempre controlaram. Então, quem? Será possível surgir uma nova geração de políticos, quiçá com origem nos diferentes (e são muitos) movimentos que organizam os protestos que já fizeram cair dois Governos? E que orientação política terá esse novo movimento? Conseguirá formar um único bloco/partido político que capte, independentemente da confissão religiosa, o voto e a confiança de muitos libaneses? Ou vão surgir vários pequenos partidos e movimentos que acabarão trucidados pelas forças políticas tradicionais? Basta que nos lembremos de que o Movimento que provocou a queda do egípcio Moubarak foi varrido nas eleições que se seguiram e, como sabemos, o Egipto já regressou à “casa de partida” com um ditador militar no poder. E se este Movimento de revolta no Líbano conseguir formar uma força política sólida, como vão reagir as forças políticas tradicionais? Vão abrir mão de toda a influência e poder que sempre mantiveram?
São perguntas com resposta extremamente difícil. Para além do que os libaneses pensam e querem é bom não esquecer as influências externas. Irão, Estados Unidos, Rússia, União Europeia (para não dizer França...) e até a China, estão a mexer “os cordelinhos”. Israel, embora não directamente, também influencia.
O único censo de que há registo foi feito em 1932 e não se sabe ao certo quantos são os libaneses. Mas sabe-se que existem 18 confissões religiosas no país. Na hora da verdade – do voto – há uma identidade confessional que pode sobrepor-se a um interesse nacional. É muito difícil a quem se sente desprotegido abandonar a única base que lhe oferece garantias de protecção e apoio. E aí chegados, os sunitas irão votar nos partidos sunitas; os xiitas nos partidos xiitas e os cristãos nos partidos cristãos. Não adiantará muito dizer que não pode ser assim, porque a realidade é assim mesmo e só mudará quando os libaneses quiserem.
Os libaneses têm uma memória de guerra e violência que certamente não quererão repetir, mas também é verdade que muitos libaneses nada têm a perder.
Pinhal Novo, 12 de Agosto de 2020
josé manuel rosendo
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