segunda-feira, 24 de agosto de 2020

O porto de Beirute e os lares de idosos em Portugal

 

A Covid 19 está para os lares de idosos, em Portugal, como a explosão no porto de Beirute está para o Líbano. Não, obviamente, ao nível da destruição e morte provocadas, mas porque, tendo em conta as diferenças, foi necessário um “abanão” forte, e trágico, para que as atenções se fixassem em problemas muito antigos. Apenas agora o mundo ficou focado em Beirute e no Líbano, quando a enorme crise que atinge o país tem vindo a dar sinais na última década (desde o início da guerra na Síria) e de forma muito clara – grandes manifestações de rua – desde Outubro do ano passado; apenas agora Portugal acordou para um problema de décadas que é o funcionamento dos lares de idosos. Situações que nada têm a ver uma com a outra, mas que coincidem na forma como os problemas são ignorados ou, se preferirmos, mal resolvidos, porque outros interesses se levantam. Quando se ignoram problemas importantes pode ser meio caminho andado para a tragédia.

 

Nos últimos dias (havia necessidade?) o Primeiro-Ministro (PM), António Costa, desafiou os que perderam o trabalho no sector do turismo por causa da pandemia a procurarem emprego na área dos lares e das instituições sociais. A frase de António Costa faz lembrar uma outra do ex-PM, Passos Coelho, quando disse que o desemprego poderia ser uma oportunidade para mudar de vida. Comparar governantes é a parte que menos me interessa porque detesto a trica política. Gosto de Política (assim, com «P» grande) e nesse sentido o importante é olhar para os lares de idosos e assumir que é uma vergonha nacional. É algo a que o Estado, todos os Governos, nunca olharam com verdadeira vontade de mudança, de modo a introduzir políticas que nos proporcionem um final de vida digno.

 

A tragédia de 18 mortos no Lar de Reguengos de Monsaraz é “apenas” a cereja no topo de um bolo vergonhoso e de uma situação – tal como o nitrato de amónio há anos guardado no porto de Beirute – que os governantes sempre “empurraram com a barriga”. É certo que algumas situações de Lares ilegais foram resolvidas com o respectivo encerramento, mas também é verdade que essas situações só tinham lugar porque não havia resposta do Estado e a sociedade precisava de soluções. Quem já teve necessidade de colocar um familiar num lar de idosos conhece perfeitamente a realidade e a oferta de serviços. Havia, não sei se ainda há, “lares” em que bastava dar dois passos porta adentro para imediatamente ser obrigado a recuar, tal o cheiro que de lá vinha.

 

Depois há os outros. Legais e com condições mínimas. Também existem outros, com boas condições, alguns até de luxo, mas a que apenas uma pequena parte da população consegue aceder. Há lares das IPSS, das Misericórdias, das Fundações e de outras instituições. Generalizar será sem dúvida um exercício perigoso e até injusto para algumas instituições, mas esta é uma área em que a realidade veio demonstrar que precisamos de um banho de transparência. Desde logo porque aqueles que usufruem dos serviços prestados, na maioria dos casos, já não têm consciência da realidade e, por acréscimo, não se queixam do tratamento recebido. E, já agora, a maioria deles deixou de votar. Aqueles que, por motivos de saúde ou outros, estão indefesos, deveriam merecer ainda maior consideração e respeito.

 

É importante – aproveitando a visibilidade e atenção que o problema recebe – fazer um levantamento, um inquérito nacional, à situação das instituições que acolhem Idosos. Mas um inquérito a sério, e não apenas pedindo informação a essas instituições, porque se assim for é tempo perdido e dinheiro mal gasto. É importante saber tudo: do número de idosos ao número de Instituições; do que pagam os utentes ao que é pago pela Segurança Social; dos trabalhadores qualificados aos indiferenciados e ao número de trabalhadores que têm passado por cada instituição e em que circunstâncias; qual é o património das instituições e como é que ele se tem alterado ao longo do tempo. Obviamente que a lista do que é preciso saber não se fica por aqui. Mas é mesmo preciso saber, de forma transparente, o que se passa nos lares. Não precisamos de power-points bonitos, precisamos de informação credível e rigorosa. E a necessidade de se saber o que se passa não está associada a qualquer suspeita nem pretende insinuar seja o que for: é apenas a necessidade de saber as linhas com que nos cosemos.

 

Infelizmente, em certos aspectos, Portugal é um país de fachada. E a estatística é determinante no discurso político. Não há responsável político que prescinda de estatística a preceito, para responder às críticas. É prática habitual na nossa vida política que um qualquer ministro, depois de seis meses em funções, diga da sua própria área que tudo corre às mil maravilhas, mesmo que tenha dito cobras e lagartos enquanto foi oposição e até chegar ao Governo. E esse é também um problema dos lares: a estatística e os relatórios, onde tudo parece estar sempre bem e a melhorar.

 

Para contrariar a estatística e as aparências há uma história que me foi contada por um amigo, que teve a mãe 10 anos num lar de idosos. A senhora já não conseguia alimentar-se sozinha, precisando de apoio no momento das refeições, com a necessidade acrescida dos alimentos terem de ser partidos em pedaços muito pequenos porque essa capacidade de mastigar também estava diminuída. Numa visita fora das horas habituais, esse meu amigo deu com um prato de quartos de maçã pousado na mesa de cabeceira... numa outra visita igualmente fora de horas, estava o prato do almoço igualmente pousado na mesa de cabeceira. Em nenhum deles a mãe do meu amigo havia tocado; em nenhum deles alguém havia pegado para dar a refeição à idosa. Mas apesar disso, o mesmo lar ostentava nas paredes, para quem quisesse ver, as ementas variadas e os respectivos nutrientes que as compunham. Ementas perfeitas, diga-se, mas que só eram perfeitas no papel, porque muitas refeições nunca chegavam ao estômago dos idosos. A forma e a estatística, traídas pela realidade. E quanto a levantar esta idosa da cama, para a sentar numa cadeira, mesmo que apenas para olhar uma parede em frente, por vezes não havia trabalhadores suficientes. O meu amigo confirma: não havia!!!

 

Voltando ao desafio lançado por António Costa, e talvez sem o saber, o PM toca numa situação que contribui decisivamente para o deficiente funcionamento de alguns lares de idosos. Tratar de idosos com múltiplas carências exige uma vontade muito especial, porque é uma área muito difícil. É um trabalho pesado que exige dedicação, coração e alma. Exige uma formação focada na necessidade do conforto que deve ser dado a quem está a chegar ao fim. O que tem acontecido – voltamos à história que o meu amigo me contou – é muitos destes lares recorrerem a mão de obra não qualificada, e barata, enviada pelo Instituto de Emprego e Formação Profissional (ao abrigo de Programas que permitem às Instituições terem trabalhadores com um custo muito abaixo do que teriam de pagar a outros contratados directamente), e que atinge, por vezes, uma rotação que torna quase impossível fixar a cara de quem lá trabalha. Um lar de idosos não é uma linha de montagem industrial e os idosos precisam de ser acompanhados e tratados por alguém com quem estabeleçam algum tipo de ligação afectiva. Se a proposta do PM fizer caminho – mesmo com a respectiva formação profissional – há uma grande probabilidade de termos pessoas contrariadas a trabalhar nos lares – o que acontecia com muitas das que eram enviadas pelo IEFP – sem vocação e que se escapam na primeira oportunidade.

 

É importante sabermos o que correu mal no Lar de Reguengos de Monsaraz – claro que é – mas não para “pendurar” alguém na praça pública, nem para que sejam retirados dividendos políticos por cima dos cadáveres dos que morreram. Se alguém deixou de cumprir as funções a que está obrigado terá de responder por isso, mas o mais importante depois de se saber o que aconteceu em Reguengos e noutros lares do país, é fazer mudanças que evitem a repetição destes casos e que permitam um tratamento digno a quem lá está.

 

Se não soubermos tratar os nossos velhos – e sempre refiro o termo com carinho, até porque também eu gostaria de chegar a velho – esse  será um sinal do fraco país que vamos construindo e que em certo sentido já somos.

 

Pinhal Novo, 24 de Agosto de 2020

josé manuel rosendo

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