Já lá vão quase sete anos. Num momento em que a força aérea
turca bombardeava as montanhas no Curdistão iraquiano tentando atingir os
guerrilheiros do PKK (Partido dos Trabalhadores do Curdistão), perdi-me pelo
labirinto das montanhas curdas e cruzei-me com os Yazhidis. Foi na aldeia de
Bahadre – assim escreveram o nome da aldeia no meu caderno de notas. Fica mais
ou menos entre Erbil e Dahuq, poucos quilómetros a norte de Mossul. Fui à procura do meu caderno de notas.
Confesso que antes do Verão de 2007 não me lembro de ter
dado pela existência dos Yazhidis. Mas nesse verão, uma série de atentados que
matou centenas de pessoas, muitas delas Yahzidis, atirou a comunidade para o
topo da actualidade informativa.
E assim em Novembro de 2007 estive com os Yazhidis nessa aldeia
de Bahadre (uma designação que disseram ser associada à Virgem Maria e a Jesus
Cristo) com cerca de – disse-me um líder da aldeia – 10 mil pessoas. Havia três
escolas primárias e uma secundária, uma Igreja em ruínas nas montanhas. Os
homens da aldeia não souberam dizer há quantos anos os Yahzidis andavam por
ali. Mas de certeza já ali estavam há séculos. Recusam ser uma comunidade
fechada e dizem ter boas relações com toda a gente, embora os atentados desse Verão revelassem grandes dissidências com os sunitas.
Os atentados terão tido origem nas desavenças provocadas
depois da conversão de uma jovem Yahzidi ao Islão. Essa é uma regra de que a
comunidade não abdica: quem nasce Yazhidi, é Yahzidi para toda a vida. Aliás,
ninguém pode converter-se ao Yazhidismo: só se pode ser Yahzidi por nascimento.
Quanto ao casamento, predomina a monogamia, embora os líderes das aldeias
possam ter várias mulheres. E o casamento só pode ser concretizado entre
membros da mesma aldeia. Quem desrespeita esta regra não é mais considerado
Yazhidi e é expulso, o que significa que a sua alma está perdida para sempre.
A figura central dos Yahzidi é o Sheik Adi, cuja tumba está
no templo de Lalish. Taus Malak é a figura venerada, que é representada por um
Pavão e que é o líder dos outros arcanjos que Deus colocou no mundo quando o
criou. As penas coloridas do pavão representam o poder sobre os doze meses do
ano e os sete dias da semana. Cristãos e Muçulmanos referem-se frequentemente a
Taus Malak como o Diabo ou Lúcifer e isso levou a que os Yazhidis fossem também
considerados adoradores do Diabo. Palavra que aliás é proibida no léxico
Yahzidi.
Têm também um livro sagrado – Mussa Farash – significa o
“livro negro”, um livro que nunca ninguém viu e que dizem estar na Alemanha ou
em Inglaterra. Apenas ouvem falar dele, não sabem se existe. Há ainda outro
livro considerado sagrado – Jalua. São os livros que estabelecem as regras e as
leis religiosas.
A comunidade é dividida numa espécie de castas ou classes (é
provável que esta lista não seja exaustiva): o MIR (o líder, príncipe); os
Sheiks; os distintos; os PIR (pregadores, “padres”) e os MERDI (as pessoas em
geral, o povo). O MIR não vive em Bahadre mas, na vila, vive o número 2 da
hierarquia Yazhidi: Kamiran Khairi Saeed, 52 anos.
Diz que teve um palácio no
norte de Bahadre, mas está em ruínas. Também chama palácio à casa onde vive e
que serve de local de repouso aos visitantes. Insiste em escrever o meu nome em
árabe no cartão que lhe entreguei. O que devia ser apenas uma conversa para
saber um pouco dos Yazhidis, transformou-se numa refeição na sala nobre apenas
com Kamiran Khair Saeed sentado à mesa com os convidados. Era “proibido”
recusar o convite. E fui autorizado a visitar o Templo de Lalish.
O Templo de Lalish tem o túmulo do Sheik Adi, o grande
inspirador dos Yahzidis. Há sempre soldados de guarda e um check-point que é
preciso ultrapassar para chegar ao Templo. Ouve-se a água a correr. Há gente
descalça que olha os visitantes.
Os sapatos ficam à porta e a entrada é feita com um passo
largo para que os pés não toquem na soleira porque é beijada pelos membros da
comunidade. No Templo, todo construído em pedra, está o túmulo, numa sala
despida de qualquer ornamento. O túmulo está coberto de panos coloridos.
Explicam-me que os crentes dão um nó no pano e colocam-no sobre o túmulo até
que seja realizado o pedido que fizeram. Um apelo ao espírito do profeta.
Depois, quando isso acontecer, regressam para desfazer o nó.
Nos acessos à zona
do túmulo há dezenas de ânforas que os Yahzidis dizem ter mais de 600 anos. É
nessas ânforas que guardam o azeite puro para alimentar as 366 lamparinas que
iluminam o templo permanentemente. De uma divisão para outra não se pode pisar
os degraus de pedra: tal como a soleira, à entrada, são beijados pelos Yazhidis
que vêm ao templo.
Há um canal de água subterrâneo. A água é um elemento
considerado sagrado e está por todo o lado. É aqui que as crianças Yahzidis são
baptizadas. O Templo de Lalish tem sete pilares interiores que representam os
sete anjos. Os pilares também recebem panos coloridos e os respectivos pedidos.
A cada sexta-feira há uma refeição para quem aparecer. É uma
tradição da comunidade. A cozinha é grande e a dimensão das panelas deixa
perceber que alimentam muita gente. Mas é a quarta-feira que é considerado o dia
sagrado.
Há uma cobra preta em relevo na lateral de uma das portas de
acesso ao templo. É um animal sagrado. Os Yahzidis nunca as matam.
Não se sabe ao certo quantos Yahzidis existem, talvez 500
mil. Muitos milhares vivem na região de Mossul e também do outro lado da
fronteira, na Síria. Perseguidos durante séculos, os Yahzidis viram o seu
direito ao culto reconhecido na primeira Constituição iraquiana. Por essa
altura tinham três deputados na Assembleia Nacional do Iraque (eleitos nas listas curdas).
josé manuel rosendo
10 de Agosto de 2014
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