Não resisti, porque há muito tempo que não tínhamos um
momento político tão rico e apaixonante. Chamem-me simplista (ou básico) se
quiserem e se se derem ao trabalho de me chamar alguma coisa, mas tenho alguma
dificuldade em entender a actualidade política. Não a política propriamente
dita, mas as leituras que tantos comentadores fazem e que, por vezes, tomam
elas (as leituras e os comentários) a forma de realidade que acaba por
sobrepor-se e substituir a verdadeira realidade.
Temos um sistema político que desde há quatro décadas define
com clareza as condições em que Portugal pode ser governado: tem de ser com um
Governo que tenha o apoio de uma maioria parlamentar. Não há dúvida quanto a
isto e até agora todos aceitaram o jogo. No limite, até tivemos o célebre “caso
limiano” que desempatou o apoio parlamentar a um governo de António Guterres.
Com o actual sistema, Portugal nunca deixou de ter Governo e, quando essa necessária
maioria parlamentar deixou de existir, os governos caíram e outros lhe
sucederam. Parece-me que é assim a democracia, pelo menos no sistema político
português.
De facto, os resultados das eleições de 4 de Outubro
colocaram-nos perante uma situação inédita, mas não é por isso que o sistema
deixa de servir. O problema é que os resultados de 4 de Outubro abrem a porta a
várias soluções de Governo que alguns políticos e um vasto rol de comentadores
têm dificuldade em aceitar. Não porque a legalidade democrática esteja a ser
violada, não porque alguém esteja a preparar um golpe palaciano, mas apenas
porque uma das soluções não agrada a um vasto rol de comentadores.
Face aos resultados das eleições de 4 de Outubro, a única
análise intelectualmente honesta é dizer que eles abrem portas a dois tipos de
governo (até mais, mas são as possibilidades em cima da mesa): um da coligação
PàF eventualmente com apoio abstencionista do PS no Parlamento; outro do PS com
apoio parlamentar do BE e do PCP. Qualquer das soluções tem argumentos para
defender a sua legitimidade democrática: a PàF porque venceu as eleições e é
uma tradição que seja a força política mais votada a formar Governo; o PS com
apoio do BE e do PCP porque se conseguirem um entendimento têm uma maioria
parlamentar que sustenta um Governo. E o sistema político tem muito bem
definida a arquitectura dos passos a dar para ser encontrado um Governo. Tudo
claro como água.
Mas esse vasto rol de comentadores que tem dificuldade em
perceber uma coisa tão simples e que é afinal a essência da democracia –
aceitar o veredicto popular e as possibilidades de expressão em forma de Governo
dessa decisão do povo – teima em confundir aquilo que são as regras do jogo
democrático com o desejo/vontade que sentem de ver formado um determinado Governo.
E é aqui chegados que os comentadores borram a pintura: em vez de fazerem análise
e explicarem às pessoas as possibilidades em aberto com o resultado das
eleições, exprimem desejos mascarados de inevitabilidades assentes em leituras enviesadas
da realidade.
A título de exemplo, e porque é da área da direita política
que surgem estas leituras mais enviesadas, ponham os olhos num país que estão
sempre muito predispostos a defender: Israel. Há décadas que não há uma maioria
absoluta em Israel e há décadas que as coligações, por vezes as mais
inesperadas e até implausíveis, governam o país.
Por fim, deixem-se lá daqueles argumentos de que “ai, ai,
ai, vem aí o comunismo”. Gente que quer ser tão “à frente” e gosta de esgrimir
o argumento de que “o mundo mudou”, atirando-o à cara dos outros como se fossem
analfabetos e vivessem na idade das trevas, já devia ter percebido que o mundo
mudou mesmo e que todas as forças políticas eleitas para o Parlamento têm o
mesmo direito de participar na governação do país. Só falta mesmo acenarem com
os fantasmas dos comunistas que comem criancinhas ao pequeno-almoço, o que
deixaria de ser desonestidade intelectual e passaria a ser burrice, porque
nessa já ninguém acredita.
Estarão a perguntar qual a solução de Governo que mais me
agrada, mas a minha opinião não é relevante. O que deveria ser relevante era
termos análise política mais esclarecedora e menos engajada com as forças
políticas. Em resumo: precisamos de analistas verdadeiramente independentes ou
então de analistas e comentadores que consigam fazer a separação entre uma
verdadeira análise da realidade política e a opinião que têm sobre o que
consideram melhor para o país. Misturar as coisas não é jogo limpo.
Pinhal Novo, 13 de Outubro de 2015
josé manuel rosendo
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