O texto é longo,
mas a importância do que está em causa justifica-o.
Foi importante a diplomacia
portuguesa para a eleição de António Guterres? Foi! Já foi dito e repetido e o
Ministro dos Negócios Estrangeiros português fica com esse marco no currículo. Mas esta é
uma conquista de António Guterres. Apesar de muito mal tratado (principalmente
mal acompanhado) pela generalidade da comunicação social portuguesa durante os
mais de dez anos em que foi Alto-Comissário para os Refugiados, Guterres
adquiriu um capital de conhecimento e competência que fizeram dele o candidato
mais capaz. Era o candidato óbvio, desde logo porque a questão dos refugiados
é, e vai continuar a ser, assunto complicado por muito tempo, e neste caso
Guterres sabe muito bem do que fala. Perante a profusão de escândalos que têm
assolado a ONU, eleger um Secretário-Geral que apenas representasse um conjunto
de interesses mas que não tivesse nenhuma ligação à realidade, nem aptidões evidentes
para a função, seria mau de mais para uma organização que precisa urgentemente de
"lavar a cara" e de dar sinal de que serve para muito mais do que tem
servido até agora.
Dito isto, o
discurso de Guterres perante a Assembleia Geral, depois de feito o juramento,
foi quase brilhante. Tocou as questões essenciais e apontou caminhos. Talvez
até, pela clarividência expressa, tenha colocado a fasquia demasiado alta.
Guterres não vai conseguir fazer tudo o que disse ser necessário fazer e resta
esperar para ver o que consegue.
E uma das
questões que António Guterres abordou, subtilmente, foi a da recuperação do
multilateralismo. É urgente recuperar o diálogo entre os Estados, prevenir
conflitos e encontrar soluções para os já existentes, porque só esse diálogo
multilateral poderá obter uma paz sustentável nas várias frentes. Até agora, na
Europa e no Mundo, temos assistido a diálogos a dois e a três (poderosos) com
os outros a assistir. Na União Europeia a Alemanha fala com a França e os
outros assistem; por causa da Síria John Kerry fala ao telefone com Serguei
Lavrov e os outros assistem. Isto é exactamente o contrário do que deve ser e é
por isso, muito por isso, que as soluções encontradas raramente resolvem os
problemas. É evidente que as grandes potências terão sempre uma palavra a dizer, mas esta é uma das questões mais importantes e a outra será a reforma da
própria ONU. Outros a tentaram e não conseguiram. A relação de forças instalada
resulta de uma guerra e, infelizmente, a alteração de forças no Sistema
Internacional surge invariavelmente na sequência de conflitos bélicos. Se
Guterres conseguir essa reforma (em particular a da constituição do Conselho de
Segurança e o regime de veto) e se conseguir recuperar o multilateralismo, já
será merecedor de um lugar no olimpo.
Mas António Guterres
teve também a coragem de falar da Síria, do Iémen e Sudão do Sul (duas guerras
esquecidas) e do conflito israelo-palestiniano, uma situação que se agrava a
cada dia que passa mas que tem sido ofuscada pela urgência de atender a situações
mais graves.
E deixou um
recado para dentro: a ONU deve preparar-se para mudar. Guterres apontou para
uma reforma global da estratégia e das operações da ONU, que dê mais agilidade
e eficácia à acção no terreno. Agora começam as pressões como logo sublinhou,
em Bruxelas, o Ministro Augusto Santos Silva.
Mas para além
das dificuldades que António Guterres vai encontrar e das pressões que vai
sofrer, há uma particular atenção, nossa, pelo facto de ser português. Será bom
que a eleição de Guterres não sirva apenas para uns momentos de nacionalismo
bacoco em que levantamos a bandeira e nos consideramos os melhores do mundo
para logo a seguir passarmos a ignorar o feito conseguido. A chegada de António
Guterres à liderança das Nações Unidas é igualmente uma oportunidade para algum
jornalismo português. Talvez agora se possa rever o tal critério da
"proximidade" sempre tão útil quando se pretende ignorar alguns
assuntos em detrimento de outros que, supostamente, "interessam mais às
pessoas". Guterres na liderança da ONU pode ajudar-nos a ultrapassar os
tiques de jornalismo provinciano e de paróquia. Não se deve falar do mundo que
nos rodeia apenas para que nos julguem viajados ou eruditos, ou até profundos
conhecedores de realidades distantes; o que não se pode fazer é ignorar o mundo
como se vivêssemos numa redoma que nos impede de sermos afectados por esse
mundo à nossa volta. E o que mais espanta é estarmos sempre a repetir essa
frase gasta de termos sido o povo que deu novos mundos ao mundo.
António Guterres
na liderança da ONU pode ser a oportunidade para os portugueses saberem como funciona
o Conselho de Segurança, onde fica o Sudão do Sul, qual é o problema das águas
do mar do Sul da China reivindicadas pela China, qual é o problema em Caxemira,
em que ponto está o conflito entre israelitas e palestinianos, quais são os
países que acolhem mais refugiados (não, não são os países europeus...), o que
é o Acordo do Clima, entre muitos outros assuntos. António Guterres pode
devolver-nos o interesse pelo Mundo, assim os órgãos de informação queiram.
Confesso que esta
minha esperança não é muito forte. Fico à espera para ver e estou curioso
também quanto à cobertura que os órgãos de informação portugueses vão fazer, a
partir de agora, da actividade das Nações Unidas e, em particular, da liderança
de António Guterres.
Pinhal Novo, 13 de Dezembro de 2006
josé manuel rosendo
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