segunda-feira, 10 de julho de 2017

“Então, safas-te?” Não temos emenda.


A frase caracteriza o país. Quem nunca a ouviu? Muitas vezes, é certo, dita sem qualquer intenção, apenas substitui um “olá, como estás?” ou um “como é que isso vai?”. Mas este “então, safas-te?”, pode ser muito mais do que esse cumprimento inócuo, e muitas vezes é.

Alguém estar a safar-se pode significar seguir em frente apesar dos obstáculos ou continuar a perseguir objectivos apesar das dificuldades. O pior é quando o “então, safas-te?” encerra uma outra questão: o desenrascanço, por cima de tudo e de todos. Acontece muitas vezes, vezes demais. É aliás muito popular a frase “parvo era ele (ou ela) se não enchesse os bolsos ou se não aproveitasse” ou ainda “todos fazem o mesmo, porque é que este iria ser diferente?”. São frases ouvidas à mesa do café ou nos transportes públicos. Sabemos que é assim. Ao mesmo tempo que criticamos os vigaristas apanhados na vigarice, aceitamos que aqueles a quem o poder passe pelas mãos, ou os que têm algum poder menor de decisão, tirem proveito próprio dessa situação.

A juntar a este problema há outro: somos um país de faz-de-conta. A Protecção Civil faz-de-conta que está tudo bem; as Forças Armadas fazem-de-conta que está tudo bem; o Serviço Nacional de Saúde, dizem que é um dos melhores do mundo e faz-de-conta que está tudo bem; o Sistema de Educação com turmas de quase (ou mais) de 30 alunos e numa terrível carência de pessoal auxiliar, faz-de-conta que tudo está bem. Cortam-se orçamentos ou cativam-se verbas, mas está tudo bem.
E para que tudo esteja assim, bem, os que normalmente estão no poder, acham sempre que se “pode fazer mais com menos”. Adoram a frase. Até acham que vai ser essa a marca que vão deixar no sistema: o homem ou a mulher que conseguiu “fazer mais com menos”.

O problema é apenas um: somos um país do faz-de-conta e “vamo-nos safando”. Ou então, outro dito que nos assenta muito bem: “enquanto o pau vai e vem, folgam as cotas”. Entretanto, abrimos a boca de espanto com os incêndios, com o roubo de material de guerra do Exército e com presos que fogem das cadeias e depois escarnecem do sistema nas redes sociais. Está tudo bem, são coisas que acontecem.

Pagamos impostos através da Internet e com cartão de crédito, mas perdemos dias nas filas para matricular os filhos no ensino básico ou vamos para os centros de saúde durante a madrugada de modo a conseguir uma consulta.
Preferimos comprar na “loja dos chineses”, sem perceber que mais tarde ou mais cedo pagamos com língua de palmo o desemprego que essa opção provoca.

Estamos no país onde houve problemas com os submarinos, os blindados Pandur deram problemas e houve até problemas com as simples algemas compradas para a PSP. Há sempre problemas. Há sempre gato escondido com rabo de fora. No fim tudo acaba em nada. Está tudo bem.

Somos fantásticos em estatística e quando as olhamos até parece que vivemos no país das maravilhas: sempre a melhorar, sempre a investir, sempre a crescer.
Conheci um caso que ilustra bem o país do faz-de-conta. Foi numa IPSS, e o caso tem a ver com a alimentação dos utentes (acho que preferem chamar-lhes clientes) de um lar de idosos. A alimentação é diversificada, as calorias são rigorosamente verificadas e as dietas seguidas sem qualquer cedência. A bem, claro, da saúde e do bem-estar dos utentes (clientes...). Olhamos os mapas e estamos no melhor dos mundos. Mas esse mundo muda quando essa IPSS dá uma maçã inteira a um utente (cliente...) que já não tem dentes ou quando deixa um tabuleiro com um suculento bife à frente de quem já não tem possibilidade de comer sem ajuda. 

É assim que somos: faz-de-conta que está tudo bem, mas há muita coisa que está mal. E em muitos, mesmo muitos casos, a culpa não é do Governo, do actual, dos anteriores ou dos que estão por chegar. “Safamo-nos”, mas muitos de nós deviam ter vergonha. E há tanta gente a “safar-se”. Muitos apenas esperam que ninguém “faça ondas”. Querem que o tempo vá passando, vão amealhando, e desde que ninguém dê por eles apenas querem que assim continue. Que se lixe o utente sem dentes do lar de idosos da tal IPSS a quem deram uma maçã inteira para comer. Para a estatística – que uma qualquer fiscalização há-de ver – o utente (cliente...) comeu a maçã. E se não comeu, paciência. Faz-de-conta que está tudo bem.

Pinhal Novo, 10 de Julho de 2017
José Manuel Rosendo

1 comentário:

  1. Se fosse só numa IPSS... A história da maçã repete-se. Ao lado do cliente, no caso doente, que não a pode comer. Ou da sopa para a qual já não tem mãos. E é facilmente verificável nos Hospitais geridos como empresa. Que tem de dar lucro ou a menor da despesas. Como? Cortando em Recursos Humanos. Não cito o Hospital, por cortesia e respeito por muitos bons profissionais que lá trabalham. Mas a prática repetir-se-á por muitos outros. Basta passar na hora das refeições e ver o cenário.

    ResponderEliminar