Bashiqa, Curdistão iraquiano, Novembro de 2016.
No topo de um monte, no meio do nada, onde o meu
fixer sabia que era possível aceder à Internet.
“Temos
de ir para...” Tantas vezes esta frase que eu adoro ouvir. Se não a dizem,
pergunto: “Então, não vamos...?”. Nem sempre gosto da resposta. O repórter quer
sempre partir. Alguns telefonemas, emails,
contactos, contexto, protagonistas, desenvolvimentos mais recentes, bilhetes de
avião, dinheiro, equipamento... mal damos por isso estamos no meio de um
turbilhão. Geralmente não dominamos a língua, e os conflitos ganharam uma
complexidade que torna difícil distinguir as forças no terreno. É neste momento
que precisamos de um “fixer”. E, por
uma vez que seja, falemos deles.
Não
conheço uma palavra na Língua Portuguesa que possa ser usada para uma tradução
directa. O fixer, mais do que
intérprete e guia, é aquele que, conhecendo o terreno, os protagonistas e a
cultura, encontra os meios que nos permitem movimentar e aceder àqueles com quem
queremos falar; sugere caminhos, antecipa o perigo e sabe dizer não, quando o stress do jornalista empurra para
perigos desnecessários; nunca perde o jornalista de vista; providencia um arroz
com feijão quando as horas de fome já parecem inevitáveis; encontra no mercado
negro o combustível pouco falsificado que não deixe o carro parado a meio da
viagem; conhece um local onde há rede de Internet ou energia eléctrica para
carregar baterias; antecipa as escapatórias em caso das situações se
complicarem em demasia; faz o que é preciso fazer em locais onde tudo parece
impossível. Um fixer constrói pontes
entre culturas, estabelece a confiança com agentes locais e consegue mediar
soluções. Por vezes, não poucas vezes, o fixer
partilha a responsabilidade da decisão que é preciso tomar.
Só
assim as reportagens são concretizadas, mas eles nunca assinam o trabalho dos jornalistas.
Permanecem anónimos e invisíveis. Algumas vezes porque assim querem, na maioria
das vezes porque simplesmente não fazem parte da “ficha técnica”. Inevitavelmente,
mesmo com esse anonimato, sofrem uma exposição local que, não raramente, significa
risco de vida, para eles e para as famílias.
Fazem-se
pagar por isso? Fazem! A economia de guerra implanta-se rapidamente nos locais
de conflito e é frequente, no meu caso, receberem muito mais do que eu. Não tem
discussão.
Já
lhes chamaram “anjos da guarda” dos jornalistas. E são mesmo. Damos por isso de
uma forma muito óbvia no dia em que, ajoelhados no chão, lado a lado, nos
sussurram ao ouvido: não olhes! À nossa frente ouvimos o som inconfundível de
um homem a puxar a culatra da Kalashnikov. O “anjo da guarda” repete baixinho:
não olhes! Depois de alguns segundos de silêncio, ouvimos então os passos do
homem que se vai embora. O meu fixer
repetiu baixinho, quase em registo de súplica: não olhes! Não olhei.
Tenho
tido a sorte durante as minhas reportagens de me ter cruzado com gente boa. Na
sua grande maioria, se for necessário e se ainda estiverem disponíveis, não
hesitarão em trabalhar comigo, da mesma forma que eu terei a certeza de que,
com eles, o trabalho só não será feito se for de todo impossível.
NOTA: os nomes dos fixers que comigo têm trabalhado são omitidos por razões óbvias, mas a minha gratidão é eterna.
Artigo publicado no Courrier International edição de Março de 2018
Pinhal
Novo, Março de 2018
José
Manuel Rosendo
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