O
Padre Jesuíta Gonçalo Castro Fonseca ofereceu-se como voluntário e está há um
ano na Síria. Integrado no Serviço Jesuíta para os Refugiados (SJR), o Padre
Gonçalo tem vivido de perto uma situação de guerra em que ninguém sabe ao certo
quantas pessoas já morreram, mas em que as marcas de mais de sete anos de
conflito são violentas.
Foi
um ano passado nos arredores de Damasco e, até à Páscoa de 2018, os combates
andaram muito perto, principalmente quando as forças do regime encetaram a
ofensiva que levou à reconquista da região de Ghouta Oriental.
Depois
de um ano de trabalho, o Padre Gonçalo Fonseca veio descansar a Portugal e
entre as muitas solicitações para que conte a experiência que está a viver na
Síria, houve tempo para esta conversa no jardim do Centro Universitário Padre
António Vieira.
Pergunta - Padre
Gonçalo, já vamos falar sobre o seu trabalho e o que encontrou na Síria mas,
para já, o que é que traz consigo depois deste ano que por lá esteve?
Resposta
- A nível espiritual, pessoal e humano, trago uma experiência de encontrar-me
comigo mesmo no essencial, em que não posso ter nada como garantido e em que o
meu coração valoriza muito mais aquilo que é importante em relação à vida e ao
futuro. Em termos também humanos, mas como cidadão, é um olhar diferente sobre
o mundo e sobre a realidade daqueles que sofrem. Uma realidade da qual eu
também me sinto responsável, e de uma maneira muito directa.
P – O que é que
encontrou? Aquilo que esperava... tinha uma ideia formada? Certamente que leu
sobre a situação na Síria... quando lá chegou, o que é que tinha à sua frente?
R
– Honestamente, não procurei saber muito mais do que era dado pela comunicação
social e fui sem grandes expectativas. Mas se esperava alguma coisa esperava
uma realidade de destruição total, de pessoas sem capacidade de lutar e de
viver, e devo dizer que fui surpreendido. Não obstante a destruição e a guerra,
encontrei um povo com um vigor e uma força de vontade de viver impressionantes
que me deixou muito desarmado. Aprendi muito. A situação era de risco, quase de
sobrevivência, mas o ânimo era infinitamente grande, enorme.
P – Foi para a região de
Damasco...
R
– Fui, sobretudo nos primeiros tempos para aprender a língua árabe porque era
onde isso seria mais fácil. Depois com possibilidade de poder ir para outros
lados, mas percebi que ali poderia responder a outras necessidades. E por isso
fui ficando e é aí, em Damasco, a minha missão.
P - E aprendeu mesmo a
falar árabe?
R
– É impossível aprender a ser fluente em árabe por mais anos que passe lá.
Tenho o árabe suficiente para não me perder e para conseguir acompanhar uma
conversa, mas ainda tenho muito a aprender para poder expressar-me minimamente.
P – Está em Damasco,
estamos a falar do centro ou da periferia?
R
– Eu vivo no centro e trabalho num bairro da periferia. Há uma distinção muito
grande e notória em termos de limpeza, densidade populacional, de pessoas, por
isso no mesmo dia posso ter duas vivências muito diferentes.
P – Em Damasco, no
centro da cidade, não se sente a guerra?
R
– Agora, de facto, não se sente tanto, desde que Ghouta foi recuperada pelo
regime. Mas sim, sentia-se e havia o risco das bombas e das explosões. Não
tanto como na zona de periferia, mas sim, sentia-se. A diferença tem a ver com
as pessoas, porque no centro de Damasco vivem as pessoas que sempre lá viveram
enquanto na periferia de Damasco encontram-se muitos refugiados, muitos que
foram deslocados de povoações que foram destruídas e encontraram refúgio na
periferia de Damasco.
P
– A batalha de Ghouta foi seguida em Portugal através das imagens dramáticas
que iam chegando... viveu essa realidade de perto?
R
– Vivi, mas não do lado de Ghouta, vivi do lado de Damasco. E do lado de
Damasco também sofreram ataques, se calhar não tão massivos e não tão
destruidores, mas causaram danos. Por isso sim, posso dizer que vivi de perto,
não tanto na pele, mas muito de perto.
P
– O coração da cidade, o centro, nunca foi atacado directamente?
R
– O centro histórico era muito perto da zona de periferia e de Ghouta e era
facilmente atingido e atacado.
P – Como foi recebido na
Síria? Não pelos Jesuítas que trabalham consigo, mas pelo povo...
R
– Sempre me senti muito bem acolhido e, sem fazer muito, senti que a minha
presença trazia ânimo e por isso a resposta era nesse sentido. Pelo facto de
ser estrangeiro num momento em que não havia estrangeiros, pelo facto de ser
Jesuíta num momento em que a presença da Igreja também não era tão vigorosa,
sempre fui reconhecido como uma presença bem-vinda, uma presença de força e de
ânimo.
P
– Está a referir-se aos que precisam do apoio que está a prestar. E em relação
às autoridades, nunca sentiu um olhar mais desconfiado?
R
– Sentir, sentir, não. Com excepção de uma ocasião em que depois de chegar a
uma das nossas casas, pouco tempo depois, surgiu um militar a perguntar quem eu
era. O sinal de que estava a ser controlado era muito forte. Não senti
desconfiança, mas posso dizer, até pelo tempo que demorou o visto de entrada,
houve uma investigação sobre mim para perceberem se eu era ou não de confiança.
Eu pessoalmente nunca senti essa desconfiança.
P
– O visto demorou muito tempo?
R
– Sim, mas acho que pela burocracia, porque nos últimos anos não há ninguém a
pedir vistos para a Síria. Não era um visto de turismo, era um visto de
residência... demorou mais tempo mas creio que mais por uma questão burocrática
do que por desconfiança.
P
– Neste tipo de missão faz um esforço de integração? Isto é, veste roupas
diferentes, senta-se a tomar chá... ou mantém a atitude do estrangeiro, com uma
missão específica, mas que continua a ser estrangeiro?
R
– Eu acho que tenho a vida facilitada porque não pareço um estrangeiro, passo
muito bem por árabe. Sim, faço um esforço muito grande para me adaptar aos
costumes e aos hábitos. Acho que perderia muito da experiência e do que sou
chamado a fazer se trouxesse os meus hábitos portugueses ou europeus.
Facilmente me ajustei.
Há um respeito muito grande à figura do homem de Deus, seja cristão ou muçulmano, e essas figuras são muito respeitadas e acarinhadas.
P
– O facto de ser cristão, foi bom ou mau? Ou é um factor que lhe dá alguma
neutralidade no conflito sírio.
R
– Poderia ter-me passado pela cabeça a ideia dos cristãos perseguidos e pensar
que me ia acontecer isso, mas foi tudo ao contrário. Se calhar noutras
realidades na Síria o ser cristão pode ser perigoso. Onde vivo não o sinto,
antes pelo contrário. O facto de ser Padre abre-me portas. Há um respeito muito
grande à figura do homem de Deus, seja cristão ou muçulmano, e essas figuras
são muito respeitadas e acarinhadas. Devido a ser Padre sempre me senti muito
protegido. Se alguma vez tive algum receio foi por ser estrangeiro, mas o ser
Padre dava-me tranquilidade enquanto estrangeiro.
P
– Está na Síria integrado numa organização religiosa, o Serviço Jesuíta aos
Refugiados. O trabalho que desenvolve tem esse “fio de prumo” da religião ou
afasta-se disso e trata com todas as pessoas independentemente do factor
religioso?
R
– Uma coisa não exclui a outra. O tal “fio de prumo” que refere é muito
presente na intenção e na motivação com que vivemos, trabalhamos e servimos. O objectivo
do SJR nunca foi converter, mas sim dar resposta aos que mais precisam e trazer
justiça àquele que é injustiçado. Por isso, a nossa resposta é para aquele que
precisa mais, independentemente do credo, se é cristão ou muçulmano. Nunca
fazemos essa pergunta. Ficamos a saber depois, mas o facto de acolher ou não no
nosso centro é definido pelo critério da necessidade: precisa mais, então muito
bem, tem lugar no nosso centro.
P
– Porventura por defeito de formação estará mais atento às questões
religiosas... uma das coisas de que se fala muito, relativamente à guerra na
Síria, é a divisão entre xiitas e sunitas. Nota isso no seu dia-a-dia na Síria?
R
– Eu não noto, mas talvez porque algumas nuances me escapem. A realidade que
conheço bem é a de Damasco que, desde sempre, foi um local de encontro. As
pessoas estavam habituadas a conviver entre diferentes confissões e religiões, cristãos
e muçulmanos, e dentro dos muçulmanos, xiitas, sunitas e outras minorias... se
se nota isso (divisão xiitas/sunitas), não é em Damasco, mas ainda assim
algumas nuances podem escapar-me. Mas creio que é mais uma ideia (feita) do que
a vida concreta do bairro entre vizinhos.
P
– As pessoas quando o procuram e ao SJR, é uma procura que apenas pretende bens
materiais que permitam a sobrevivência ou também se abrem consigo relativamente
a outras matérias?
R
– Quando as famílias chegam até nós é porque procuram esses bens materiais e procuram
ajuda numa série de situações e isso aconteceu desde o início da guerra. Ultimamente
a nossa resposta é mais de educação, trabalho continuado e apoio psicológico. E
ainda que não procurem, quando percebem que é isso que nós temos para oferecer,
aceitam e desejam. Depois, na relação comigo, se calhar não tanto essas
famílias a quem servimos, mas os nossos colaboradores que são jovens, encontram
em mim uma ajuda a nível espiritual, a nível humano, e não quero dizer a nível psicológico
com a força clínica do termo, mas também. Se calhar há um sem número de necessidades
que têm mas não reconhecem porque há necessidades maiores, ao nível da
alimentação e da saúde. Mas de repente quando percebem que há uma oferta a
nível psicológico percebem que também precisam. Mas não nos procuram inicialmente
por causa disso.
P
– Em situações de guerra há muito a tendência para dar esses bens que são essenciais
à sobrevivência e, muitas vezes, as condições psicológicas das populações
afectadas não têm o devido acompanhamento. Que efeitos é que isso tem?
R
– Se calhar a curto prazo não tem grande efeito porque são pessoas que precisam
de se alimentar, de se vestir, de dormir e eu percebo perfeitamente que outro
tipo de necessidades passem a ser secundárias. O estado de choque dura mais do
que deveria durar se tivessem apoio psicológico desde o início. Creio que
muitas das pessoas que servimos ainda estão em estado de choque, ainda não
estão na fase de recuperação e por isso essa necessidade de apoio psicológico
ainda não existe. As pessoas ainda não têm noção do impacto que a guerra tem
nas suas vidas.
não conheço ninguém que não tenha sofrido uma perda, de alguém que morreu ou de alguém que está desaparecido
P
– Ninguém sabe ao certo quantas pessoas já morreram na Síria. Há números que
apontam para meio milhão de pessoas e isso significa que haverá poucas famílias
que não tenham sido tocadas por este drama da guerra. A pergunta ia nesse
sentido... praticamente não há ninguém na Síria que não tenha sido tocado pela
guerra...
R
– De facto, não conheço ninguém que não tenha sofrido uma perda, de alguém que
morreu ou de alguém que está desaparecido. Ou também, outro fenómeno que tem
bastante impacto, o de alguém que tenha fugido para escapar à guerra. Se calhar
são esses que estão às nossas portas como refugiados. Esse também é um dado (o
de quem fugiu) importante na vivência da perda. Para além dos bens materiais
que é uma questão mais fácil de superar. Mas tudo o que é ao nível da relação
de pais, irmãos, amigos, que ficaram no caminho de uma maneira injusta, não
consigo lembrar-me de ninguém que não esteja a fazer essa experiência de perda.
P
– Diz-se muitas vezes que aqueles que ficaram na Síria são os mais pobres
porque não tinham recursos para deixar o país. Qual é a leitura que faz... acha
que todas as pessoas que estão na Síria neste momento, se pudessem sair, saíam?
R
– Acho que sim, principalmente a camada jovem. A camada que tem mais desejo de
futuro, entre os 20 e 30 anos, não se conseguem imaginar na Síria. Esses sairiam
se pudessem, não tenho dúvidas. A grande maioria dos que ficaram foi porque não
puderam sair. Ou eram pobres e não tinham condições para suportar os custos de
uma saída, outros por ligações familiares – filhos únicos que não podiam deixar
os pais – os que não saíram foi porque não puderam por várias razões e não necessariamente
por não terem dinheiro para sair.
P
– Há também aqueles que apoiam o Governo e, portanto, não sairiam. Ou esta
leitura não é feita?
R
– Acho que tem muito a ver com o facto de acreditarem que é este o caminho (com
Bashar al Assad) e são coerentes em relação àquilo em que acreditam. Não
colocaria as coisas como por serem a favor ou contra (o Governo) mas porque
acreditam que têm ali um futuro.
P
– Essa vontade de sair que refere em relação aos que estão na Síria é uma
vontade que se mantém mesmo sabendo todas as dificuldades que os refugiados
enfrentam para entrar na Europa?
R
– Eu não sei se têm uma noção geral dos problemas que enfrentam. Se calhar têm
noção das travessias do Mediterrâneo, do tempo de espera nos campos de refugiados,
mas não sei se têm bem a noção do que significa fazer um processo de integração
como refugiado, as exigências e as dificuldades. É um bocadinho por um sonho de
um El Dorado... imaginam que passam pelo Mediterrâneo, por um campo de refugiados,
mas quando chegarem vai ser tudo óptimo. Pessoalmente não conheço ninguém que
estivesse disposto a sair ilegalmente. Talvez em situação de desespero, mas os
que conheço desejariam sair, mas de uma forma legal.
P
– Em contraponto ao que está a dizer, quando falamos com alguns refugiados
sírios que já chegaram à Europa, eles manifestam a vontade de regressar para ajudar
a reconstruir o país. É uma vontade verdadeira ou eventualmente depois de
estruturarem a vida na Europa abandonam essa ideia de regresso?
R
– A sensação que tenho é que podemos encontrar as duas situações. Famílias que
vieram e começaram a reconstruir a sua vida aqui admitem a possibilidade de
aqui continuar no futuro, talvez com o desejo de qualquer emigrante que pretende
manter a ligação à terra-mãe. Será mais difícil para indivíduos que venham sozinhos,
que não tragam as raízes, a família, acho natural que queiram regressar.
Acredito que voltem assim que existam condições na Síria e também nas suas próprias
vidas. Queira Deus que sim, acredito que podem fazer muito pelo país.
Se as potências saíssem, facilmente o conflito se resolveria...
P
– A Síria está em guerra há mais de sete anos, o país está destruído, não se
sabe ao certo quantas pessoas morreram... depois de uma guerra assim que deixa
sempre um grande lastro de revolta e desejo de vingança, acredita numa
reconciliação?
R
– Para nós, a palavra reconciliação tem uma força muito grande. E sim... não
posso não acreditar. Pelo que vejo e presencio, da vontade e da força de
vontade para terem um mundo melhor, não consigo não acreditar. É isso que eu
vejo já. Haja condições e isso vai acontecer, mas creio que vai demorar algum
tempo. É preciso fazer novas memórias. Oito anos é muito tempo e as memórias
são muito fortes. É preciso, com esforço, voltar a fazer novas memórias para
que numa próxima geração se possa viver em paz. Creio também que o povo sírio
tem condições para se reconciliar. Tem condições para superar os
desentendimentos e a guerra. Não tenho dúvidas disso. Se as potências saíssem,
facilmente o conflito se resolveria...
P
– Por exaustão?
R
– Por exaustão e porque querem um bem, porque são irmãos, são do mesmo país,
têm o mesmo pai... como é que eu posso querer mal ao meu irmão? Também por
exaustão e por incapacidade bélica. Este conflito dura porque há quem forneça
instrumentos para que o combate continue. Portanto, por exaustão, por um lado,
mas também por um sentido comum de quem não pode desejar a morte de quem é seu
irmão. Mas há outros interesses que de algum modo turvam este olhar.
P
– Um problema que afectou e continua a afectar a Síria foi a criação do Estado
Islâmico. Como é que sentiu isso e como é que percebeu a reacção das pessoas à
existência do chamado Estado Islâmico?
R
– Confesso que é um tema que não consigo compreender bem, não creio que lá (na
Síria) alguém o consiga perceber bem: o que é o Estado Islâmico? Tem uma
influência no medo com que as pessoas se confrontam e principalmente traz uma
desconfiança muito grande porque as pessoas interrogam-se quem será do Estado
Islâmico. Esta presença fantasmagórica, mas também muito real, não ajuda a
tomar partido porque nunca se sabe quem é o outro.
P
– Muitas vezes, a partir do Ocidente, o nosso olhar para aquela região do mundo
– Síria – arrasta-nos para uma tendência, se calhar uma facilidade exagerada,
em considerar tudo o que acontece como tendo origem terrorista, nomeadamente
quando se liga à questão da religião. Como é que interpreta isto? É mesmo assim
devido à forte presença da religião na vida das pessoas, ou a leitura do
Ocidente tem alguma razão de ser?
R
– É um povo muito religioso, não há a figura do ateu ou sequer do agnóstico e é
muito respeitado e admirado que as pessoas tenham confissões e vivências (religiosas).
Mas como em tudo na vida, diria também no universo da Igreja cristã e da Igreja
católica, o fundamentalismo torna a leitura ou a vivência da religião – atrevo-me
a dizer – um bocadinho perversa. Por isso a incapacidade de acolher como
possível algo que seja diferente de mim. Quando falamos de motivações
religiosas é verdade, mas ao mesmo tempo não o é, porque é uma motivação
religiosa levada ao extremo e então perde sentido e deixa de ter significado.
P
– Mas a questão é: só por haver um indício religioso na formação de um qualquer
grupo político isso não significa que haja aí um grupo fundamentalista?
R
– Claro que não. Mas quando a formação religiosa é levada a um extremo de intolerância
onde eu não admito que outro possa ser o dono da verdade, onde o outro tenha
lugar no mesmo universo que eu, acho que não é religioso, perde aqui alguma
coisa.
Ideologias não se reconciliam, é impossível. As pessoas sim
P
– Quando lhe falei na reconciliação, referia-me à divisão que à primeira vista
existe na sociedade síria entre quem quer um país mais secular e os que querem
um país mais assente em princípios religiosos. Já me disse que não nota as tais
divisões entre xiitas e sunitas. Que caminho é que a Síria pode tomar no
sentido de que as pessoas possam ou não viver todas juntas?
R
– O que vou dizer vale para a Síria e acho que vale para outros contextos.
Ideologias não se reconciliam, é impossível. Se a minha ideologia é diferente
da sua dificilmente podemos conciliar.
P
– Mas podem conviver...
R
– Podem conviver ideologias, mas quando se fala de reconciliação é entre
pessoas. Eu, com a minha vivência, reconcilio-me consigo e procuramos juntos
viver caminhos. Quando falamos de reconciliação, eu pelo menos não concebo reconciliação
de ideologias. Modos de viver, sim, implica vivências e vivências são feitas de
pessoas e a reconciliação é entre pessoas. Isso encontramos na rua no nosso
centro. Custa-me muito falar destas coisas porque não sei, não conheço, o que
digo é baseado na vivência da rua que atravesso todos os dias, dos vizinhos,
dos meus amigos, das pessoas com quem trabalho, aí vejo reconciliação, mas
sinto sempre que ideologias diferentes não se reconciliam.
P
– Está preparado para mais dois anos na Síria, quais são os objectivos de curto
prazo?
R
– Desde que cheguei o meu objectivo é fazer o que for preciso e sempre estive
disponível para aquilo a que reconheço ser capaz de responder. Na relação com a
Companhia de Jesus e nesta missão em concreto do SJR é procurar um bem maior e
como é que eu posso dar esse bem maior, com a minha experiência enquanto
jesuíta, como português, o que é que eu posso fazer? Não tenho uma meta
concreta como objectivo, é sempre poder responder ao que for preciso.
P
– Vai continuar em Damasco ou pensa ir para outro sítio?
R
– O que for preciso. Tudo indica que vou continuar em Damasco.
P
– Neste momento não há perigo em Damasco...
R
– Sim, desde Abril/Maio, quando Ghouta foi recuperada, deixou de haver um
perigo iminente. O perigo que existe é o mesmo que existe nas ruas de Paris ou
Bruxelas. Mas não é por isso que vou continuar em Damasco. Fico porque é isso
que o trabalho me pede.
P
– Antes da Páscoa viveu alguma situação concreta de grande perigo, de
bombardeamentos?
R
– Sim, já tenho falado nisso. Desde que cheguei havia sempre essa possibilidade
e fui aprendendo a lidar com prudência diante dessa possibilidade, mas houve um
dia em que essa possibilidade foi muito real e por isso transformou muito o
modo como eu estava, de algum modo aprendi a ter medo, um medo real, e a saber
ser mais prudente, e ao mesmo tempo a ser mais humilde.
P
– Já disse que está numa zona controlada pelo Governo, já disse que houve um
momento em que sentiu que estava a ser controlado... alguma vez recebeu alguma
mensagem do “outro lado” a dizerem-lhe, por exemplo, “está aí do lado do governo,
veja lá o que anda a fazer porque não o queremos aí...”?
R
– Não, nunca recebi.
P
– Nem sinais subliminares de nenhum aviso...
R
– (risos) Não. Precisamente por ser uma zona de paz e de calma.
P
– Como é que Portugal é olhado na Síria? A Europa é vista como um todo?
R
– Para além de Cristiano Ronaldo que no nosso dia-a-dia permite abrir muitas
portas, acho que Portugal é um deles, um dos da Europa. Não sei se Portugal é olhado
de maneira distinta em relação a Espanha, França ou Inglaterra... um sinal
disso é que para entrar na Síria tive de pagar uma quantia avultada para obter
o visto. O escalão tem a ver com o nível de amizade entre a Síria e o país de
quem pede o visto. Haverá países, do outro lado do Atlântico, que terão de
pagar muito mais do que nós.
P
– A iniciativa do ex-Presidente Jorge Sampaio para acolher estudantes sírios
teve eco entre os sírios ou é uma gota de água tão pequenina que nem chega a
ser conhecida na Síria?
R
– Acho que será conhecida no meio dos universitários que pretendem sair e procuram
saber como o podem fazer, mas a nível de sociedade é uma gota de água, tal como
o nosso trabalho é uma gota de água, mas gota de água aqui e ali enchem um
copo. (A iniciativa de Jorge Sampaio) não terá um impacto a nível de sociedade
de forma a que as pessoas se apercebam do que Portugal está a fazer. É uma
plataforma única, e no meio universitário, talvez sim, talvez tenha alguma
expressão.
P
– Fala-se muito no êxodo dos cristãos do Médio Oriente. Sente isso ou na Síria
não é assim?
R
– Mais uma vez a minha realidade é Damasco. Se lhe disser que não é assim, é em
relação à realidade de Damasco. Oiço dizer, como ouvimos todos, que há um êxodo
dos cristãos. Ouvimos isso sobre zonas ocupadas pelos mais intolerantes e os
cristãos terão sido os primeiros a não serem tolerados. O que eu vivo em
Damasco não é isso.
Pinhal Novo, 12 de Agosto de 2018
josé manuel rosendo
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