segunda-feira, 1 de outubro de 2018

É urgente que o Jornalismo regresse ao Jornalismo

foto: jmr
Não há muito tempo, o jornal Expresso fez manchete com uma informação que a seguir se provou estar errada; agora, tocou ao jornal Público noticiar a morte de quem, afinal, não morreu. Outros órgãos de informação seguiram a notícia do Público. Se pensarem como eu e sentirem o ofício do mesmo modo, tenho a certeza de que os jornalistas envolvidos têm dificuldade em sair à rua. Para quem tem consciência, e vergonha, assinar um desmentido é tormento suficiente, porque aprendi cedo que o único capital de um jornalista é a sua credibilidade. Sentir essa credibilidade afectada é o pior que nos pode acontecer. Será mais ou menos como o capitalista que vê a quase totalidade das suas acções esfumarem-se num crash bolsista. Mal comparado, mas serve para perceber o prejuízo.

Dito isto, recuso-me a atirar pedras. Nem a primeira, nem a última. Não por atitude corporativista, não porque Jesus Cristo assim ensinou, mas apenas porque entendo que não o devo fazer, principalmente porque sei como funciona uma redacção e sei que amanhã pode bater-me à porta. Ainda assim, não tenhamos ilusões, a cada caso destes é todo o jornalismo que perde.

Os casos referidos, com o impacto que tiveram, são apenas um sinal dos tempos. É bom que se diga que desde sempre houve notícias que obrigaram a desmentidos, mas estes casos podem também ajudar-nos a olhar para dentro e, à falta de melhor argumento, obrigarem-nos a parar para pensar. Os dois casos já foram explicados pelas redacções que deviam essa explicação. Haverá quem aceite as explicações e quem as considere insuficientes, havendo também quem recuse aceitar qualquer explicação. Mas estes dois casos, julgo, levam-nos ao âmago da questão: todos temos de pensar, muito bem, o que andamos de facto a fazer. Que jornalismo andamos a fazer?

Sabemos que as redacções têm cada vez menos jornalistas – ao contrário dos gabinetes de comunicação das diferentes instituições e das assessorias políticas – e que esses pouco jornalistas têm de se desdobrar em milhentas tarefas. Os jornais produzem vídeos, textos para o online e outros para a edição em papel; as rádios produzem vídeos, textos e fotografias para o online; as televisões (as rádios e os jornais) recorrem a imagens e textos publicados nas redes sociais para fazer notícias (sim, eu sei que pode ser uma fonte de informação...), sendo que as televisões ainda produzem os textos e precisam de fotos para o online...  Afinal, andamos a competir com as redes sociais ? Queremos fazer tudo, e tudo ao mesmo tempo? Ou vamos ter a coragem de dizer que o tempo do jornalismo é outro?

É hábito ouvirmos esse argumento vindo da área da justiça: “o tempo da justiça não é o tempo do jornalismo”. E muito bem, não é. E nós não aprendemos que o tempo do jornalismo não é o tempo das redes sociais? E não temos coragem de assumir isso? O tempo do jornalismo – daquele que tem o Código Deontológico como pilar fundamental – não é, não pode ser, o tempo do instantaneísmo, para o qual alertou Paul Virilio (pensador francês recentemente falecido e que cito do jornal Público, edição de 19 de Setembro): “instantaneísmo que destronou o tempo humano e nos tornou dependentes de máquinas e algoritmos”. Temos agora um tempo que “já não tem nada a ver com o tempo da responsabilidade e da razão”. O risco (conclui o artigo que cita Paul Virilio) é o de os meios técnicos permitirem um novo tipo de totalitarismo, “uma opressão sem tirano”.

É nesta teia que o jornalismo está enredado e de onde não encontra forma de sair enquanto não chegar esse momento de dizer não a um conjunto de coisas que, parecendo a solução e o salto em frente, são apenas empurrões que nos fazem cair cada vez mais fundo. Parece que estamos em estado de negação e sabemos bem que isso pode impedir um diagnóstico correcto e uma terapia adequada. Somos poucos a quererem fazer muito.

As novas tecnologias vieram para ficar. Temos de saber tirar partido delas fazendo uma utilização responsável e recusando fazer a figura da criança deslumbrada com o brinquedo novo. E não há nesta reflexão nenhuma atitude de “velho do Restelo”, no sentido do saudosismo em que a referência habitualmente é feita. Até porque, ainda não há muito tempo, um amigo me lembrou que o “velho do Restelo” não era um homem com saudades do passado, era sim um homem preocupado com as consequências de algumas decisões e por isso mesmo preocupado com o futuro.

É a pensar no futuro que o jornalismo tem de regressar a esse tempo que Virilio refere: o da responsabilidade e da razão. São duas características fundamentais para tornar sustentável um ofício indispensável à Liberdade e à nossa sociedade democrática.

Não adianta alguns cantos de sereia que nos acenam com soluções mágicas através do “jornalismo positivo”, do “jornalismo construtivo” ou do “jornalismo empreendedor” ... porque nenhuma delas responde a uma simples pergunta: o Jornalismo – aquele Jornalismo normal, sem adjectivo qualificativo associado – não faz já, não pode fazer, o que esses novos “modelos” pretendem que se faça?

Os ritmos de trabalho não podem transformar uma redacção num grupo de pessoas em silêncio, mergulhadas num monitor de computador e com auscultadores nos ouvidos. Assusta-me pensar numa redacção, qual linha de montagem, em que os operários têm o tempo contado para apertar o parafuso e terminada essa tarefa têm outra à espera. Trabalho de autómatos. Uma redacção que não faz uma pausa, uma redacção que não conversa, é uma redacção que não pensa. Jornalismo que não pensa não dá bom resultado. Não pode dar. Não tarda e estamos no ponto em que podemos ser substituídos por robots que “escrevem notícias”. Eles já andam por aí. Preparem-se!


Pinhal Novo, 1 de Outubro de 2018
josé manuel rosendo


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