Dezoito
anos depois de entrarem no Afeganistão, os Estados Unidos entreabriram a porta
de saída. As incertezas relativamente ao sucesso do Acordo assinado são tantas
que a própria simbologia associada não as esconde: na mesa do Hotel Sheraton em
Doha, no Qatar, onde se sentaram Zalmay Khalilzad (enviado dos Estados Unidos
para o Afeganistão) e o Mullah Abdul Ghani Baradar (líder político Taliban),
não tinha as habituais bandeiras nem as placas com os nomes dos protagonistas;
no documento distribuído não há qualquer símbolo ou marca, sendo o texto impresso
em páginas completamente despidas.
Outra
marca, já não simbólica, mas muito significativa, é a forma repetida como os
Taliban são referidos: “the Islamic
Emirate of Afghanistan which is not recognized by the United States as a state
and is known as the Taliban”. Em tradução livre será “o Emirado Islâmico do
Afeganistão, que não é reconhecido pelos Estados Unidos Unidos como um Estado e
é conhecido por Taliban”. A fórmula é repetida dezasseis (16!!!) vezes ao longo
das três páginas e meia do Acordo
Este
Acordo acaba por validar a velha fórmula de que a Paz é feita com o inimigo,
tendo a particularidade de ser entre inimigos que já foram amigos, quando a
presença soviética no Afeganistão era o alvo a combater. Os Estados Unidos
invadiram o Afeganistão com o pretexto de dar caça a Bin Laden e à Al Qaeda,
mas também convém lembrar que os Taliban aceitavam entregar Bin Laden, desde
que fosse julgado no Afeganistão, o que os Estados Unidos não aceitaram. Apesar
de Bin Laden ter sido morto pelos Estados Unidos há quase nove anos, os
militares norte-americanos (e outros) não saíram do Afeganistão.
O
que prevê o Acordo?
Grosso-modo,
o Acordo impõe que o Afeganistão não possa ser utilizado por grupos que
representem uma ameaça para a segurança dos Estados Unidos e aponta para uma
data de retirada do Afeganistão de todas as forças militares estrangeiras:
daqui a 14 meses.
Esta
primeira questão coloca uma enorme dúvida: mesmo com a presença
norte-americana no terreno, a actividade do Estado Islâmico tem sido em
crescendo e a Al Qaeda não desapareceu no Afeganistão, será que os Taliban
terão força e engenho para conseguir sozinhos o que os Estados Unidos não conseguiram?
Para
já, no prazo de quatro meses e meio (135 dias a contar da data do Acordo), os
Estados Unidos reduzem a presença militar para 8.600 militares (estima-se que
sejam actualmente 12.000 a 13.000) acontecendo o mesmo, em termos
proporcionais, com as forças dos países aliados; os Estados Unidos e os aliados
retirarão totalmente de cinco bases militares.
Outro
ponto do Acordo, o mais complicado, é a paz e o entendimento
entre afegãos. O Acordo refere que o diálogo entre todos os afegãos, entenda-se
Taliban, Governo e outras forças da sociedade afegã, deve começar a 10 de
Março. Nesse dia, devem ser libertados 5 mil prisioneiros taliban e mil afectos
ao governo de Cabul. Será um sinal de confiança entre as partes, exigido pelo
Acordo, que prevê ainda a libertação de todos os prisioneiros nos três meses
seguintes. Sobre a libertação de prisioneiros, o Presidente afegão, Ashraf
Ghani, já disse que não, avisando que os Estados Unidos não decidem pelo
governo de Cabul. Está criado um primeiro problema.
Na
agenda das negociações entre afegãos deve constar um cessar-fogo permanente e os
Estados Unidos comprometem-se a rever as sanções que aplicaram a membros
dos Taliban, acrescentando que também o Conselho de Segurança da ONU fará o mesmo.
O
Acordo assinado em Doha aplica-se apenas às áreas do território controladas
pelos Taliban até à formação de um novo Governo afegão que resulte das negociações
que vão começar já a 10 de Março. Desde logo convém não esquecer que o Governo
afegão esteve arredado das negociações, embora tenha enviado uma delegação ao
Qatar para assistir à Assinatura do Acordo e iniciar contactos com os Taliban.
Os Taliban sempre recusaram sentar-se à mesa com o Governo e diziam que
representava um “regime de marionetes”.
Este
Acordo terá sido a parte mais fácil e será prematuro pensar que a paz no
Afeganistão vai chegar rapidamente. A realidade é muito complexa e o país está
destruído. Destruição em todos os sentidos, sendo que o mais complicado é um
tecido social esfrangalhado e ódios acumulados por décadas de guerra. O que
este Acordo significa, sem dúvida, é que as duas partes perceberam que nenhuma
delas ia ganhar a guerra que têm feito uma à outra, mas também é verdade que
estabeleceram um Acordo que depende de terceiros que não foram envolvidos nas
negociações. Ou seja, a Paz no Afeganistão não ficou mais perto, e o eventual regresso
das tropas norte-americanas a casa, apenas significa que os Estados Unidos lavam
as mãos de uma guerra que iniciaram e deixam o campo afegão numa outra guerra
quiçá ainda mais fratricida.
Pinhal
Novo, 1 de Março de 2020
josé
manuel rosendo
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