quarta-feira, 29 de janeiro de 2020

Quanto mais Trump, menos Palestina

O Plano apresentado por Donald Trump deixa os territórios palestinianos cercados por território de Israel, com excepção da Faixa de Gaza. A foto faz parte do "Peace to Prosperity", apresentado a 28 de Janeiro na Casa Branca.

Está consumado: a ocupação passa de temporária a permanente, tal como responsáveis palestinianos já tinham alertado. Desde logo, elaborar um plano sem que uma das partes directamente interessada tenha qualquer participação, é um verdadeiro absurdo. Não é um plano, muito menos um acordo, é uma imposição construída entre Donald Trump e Benjamin Netanyahu. Anunciado há muito, o Plano de Trump demorou a ser apresentado, mas não desiludiu: corresponde inteiramente às ambições do Governo de Benjamin Netanyahu.
Aquilo que o Primeiro-ministro israelita e o Presidente dos Estados Unidos forjaram, e que apresentam como um futuro Estado palestiniano, não passa de um conjunto de bolsas de terreno, espartilhadas por colonatos e vias de acesso privadas para os colonos, expropriadas de fontes de recursos como por exemplo a água e a margem fértil do Rio Jordão, sem poder usufruir dos pilares indispensáveis a um Estado soberano, como são o controlo de fronteiras e a posse de forças militares. Seria assim uma espécie de região administrativa autónoma, dentro do Estado de Israel, sem fronteiras terrestres ou marítimas – com excepção da Faixa de Gaza.

O documento, com cerca de 180 páginas, impõe que os palestinianos reconheçam Israel como um Estado judaico, que um futuro Estado palestiniano seja "desmilitarizado" e no qual o controlo do espaço aéreo é da responsabilidade de Israel. O plano prevê também que os colonatos sejam anexados (considerados território de Israel), o que significa que cerca de 30% da Cisjordânia passe para o Estado de Israel. Ao Vale do Jordão, acontecerá o mesmo e Israel propõe em troca duas bolsas de terreno no deserto do Sinai junto à fronteira com o Egipto. Apesar de tudo isto, Donald Trump não se coibiu de dizer ao mundo que o território palestiniano duplicará, se o plano proposto for aceite.
  
Quanto a Jerusalém, o plano reafirma o que Trump já tinha dito: é a capital indivisível do Estado de Israel. Mas Trump também diz que um futuro Estado palestiniano terá em Jerusalém oriental a sua capital. É aqui que o jogo de palavras só engana os incautos: a Jerusalém Oriental que os palestinianos se referem quando exigem uma capital é aquela que está colada à cidade velha e não aquela que já fica fora do muro de separação (construído por Israel) e que apesar de estar (Abou Dis) a oriente de Jerusalém, não é a que é reconhecida tradicionalmente como "Jerusalém Oriental".

Outro aspecto importante em toda a história do conflito é o dos refugiados palestinianos. Donald Trump foi claro: podem viver num futuro Estado palestiniano, podem integrar-se nos países onde residem actualmente ou ir viver para um outro país. Voltar aos locais onde viviam e hoje é o Estado de Israel, isso é que não. Trump promete ajudar "generosamente" o processo de reinstalação. Termina assim o "direito de retorno" exigido pelos palestinianos para aqueles que tiveram de deixar as suas casas aquando da fundação do Estado de Israel e após a guerra de 1967.

Como "homem de negócios" que diz ser, Donald Trump lança dinheiro para cima de todas as soluções que propõe e pensa que dessa forma resolve os problemas, mas talvez desta vez a solução não seja acertada.

Perante tudo isto, Mahmood Abbas, Presidente da Autoridade Palestiniana, lançou o aviso desde Ramallah: Jerusalém não está a venda e a dignidade dos palestinianos também não. O problema é que Abbas parece alguém a pregar no deserto tal a falta de apoios concretos daqueles que o poderiam apoiar. Ainda assim, este plano poderá fazer pelos palestinianos aquilo que até agora não conseguiram fazer sozinhos: a união entre a Fatah (que domina a Autoridade Palestiniana) e o Hamas (que domina a Faixa de Gaza). Têm reunião marcada para esta quarta-feira, 29 de Janeiro.

A Liga Árabe tem reunião também já marcada para sábado, mas daí pouco a esperar e tudo deve ficar na mesma, para além de uma declaração mais ou menos indignada. Aliás, Omã, Emirados Árabes Unidos e Bahrein, marcaram presença na Casa Branca para a apresentação deste plano. Egipto e Arábia Saudita tiveram reacções muito cautelosas. A Jordânia exprimiu reservas e disse que a única via para uma paz duradoura é a construção de um Estado palestiniano a partir das fronteiras de 1967.

A declaração do chefe da diplomacia europeia, Josep Borrel, reflecte o que todos já sabemos: em termos de política externa, a União Europeia não existe, ou pelo menos tenta sempre passar pelos pingos da chuva, fazendo declarações de retórica absolutamente vazias de sentido prático. Quando Borrel afirma que esta iniciativa dos Estados Unidos fornece uma ocasião para relançar as negociações entre Israel e os palestinianos, é caso para perguntar onde tem estado Borrel nos últimos anos. Borrel quase faz sentir saudades de Javier Solana.

Pinhal Novo, 29 de Janeiro de 2020
josé manuel rosendo

quarta-feira, 1 de janeiro de 2020

Bagdad quase a arder

Foto do assalto à embaixada dos Estados Unidos em Teerão, Novembro de 1979. Autor desconhecido.
Ao olharmos para os acontecimentos por estes dias em Bagdad, é inevitável recordarmos o que se passou há 40 anos em Teerão. No início de Novembro de 1979, após dias de manifestações, a embaixada dos Estados Unidos foi tomada de assalto. Os manifestantes fizeram dezenas de reféns e a crise durou 444 dias. A crise dos reféns, assim ficou conhecida. 

Durante esta crise, os Estados Unidos falharam todas as tentativas diplomáticas para resolver a crise, falharam tentativas militares – pagaram um preço elevado – o Ayatola Khomeini reforçou o poder e Jimmy Carter perdeu a reeleição. A tomada da embaixada norte-americana foi o epílogo de décadas de apoio norte-americano ao Xá Reza Pahlevi. O Xá tinha-se oposto à nacionalização da companhia de petróleos e essa posição fez com que afastasse e prendesse o Primeiro-Ministro. O Xá tornou-se um ditador e a revolução era inevitável.

40 anos depois, em Bagdad, Iraque, a embaixada norte-americana também é o alvo dos protestos. Os manifestantes invadiram o campo da Embaixada situada na supersegura “Zona Verde” da capital iraquiana, vandalizaram zonas de segurança e hastearam bandeiras e cartazes com palavras de ordem hostis aos Estados Unidos. Gritou-se “morte à América!”. O motivo foi a morte de pelo menos 25 combatentes das Brigadas do Hezbollah (Kataib Hezbollah - a versão iraquiana do Partido de Deus) nos bombardeamentos norte-americanos a alvos em território iraquiano. 

Durante o “ataque” à embaixada norte-americana, as forças iraquianas não se opuseram e apenas as Forças de Mobilização Popular (brigadas xiitas fiéis ao Irão) acabaram com o protesto, dando ordem para desmobilizar e dizendo que a mensagem já tinha sido entendida em Washington.

Os Estados Unidos acusam o Irão de estar por detrás do “ataque” à embaixada e Donald Trump disse ao governo iraniano que vai pagar um alto preço de algo de grave acontecer à embaixada ou ao pessoal diplomático; O Irão (que já tinha classificado os bombardeamentos norte-americanos como actos terroristas) respondeu que é preciso ter uma grande “audácia” para matar 25 iraquianos e depois acusar o Irão de ser o responsável pelas manifestações de fúria dos iraquianos. Entretanto, Trump deu ordens para o envio de 750 militares norte-americanos para o Koweit (faz fronteira com o Iraque).

Perante os acontecimentos dos últimos dias, é preciso ter em conta o seguinte:
- Este protesto específico no Iraque relega para segundo plano as manifestações que saem à rua desde 1 de Outubro e em que a classe política é acusada de corrupção. Os manifestantes exigem “a queda do regime”. O país está paralisado.
- No Irão, a situação política interna também é de grande convulsão devido ao aumento do preço dos combustíveis e nas últimas semanas as organizações não governamentais referem cerca de 1.500 mortos.
- Nos Estados Unidos, Donald Trump enfrenta um processo de destituição e tem eleições daqui a menos de um ano. Parece que a todos interessa afastar as atenções sobre o que é realmente importante em termos internos e arranjar o habitual inimigo externo que serve para unir as hostes e fortalecer quem está no poder.

O resultado dificilmente será bom.

Pinhal Novo, 1 de Janeiro de 2019
josé manuel rosendo

sábado, 28 de dezembro de 2019

A segunda vaga da Primavera Árabe

Manifestação no Iraque. Créditos: Prensa Latina


Não é difícil imaginar o aborrecimento para quem anunciou a morte da Primavera Árabe. Para uns era apenas gente que anda sempre aos tiros e à pancada e nunca irá entender-se; para outros, era coisa de gente que vive ainda na Idade Média e por isso nada de bom será de esperar...; para outros ainda, tudo não passou de algo orquestrado do exterior e não teve nada de espontâneo. Lamento, mas não é possível concordar com qualquer destas teses simplistas. Seja como for, este é o momento de recorrer à citação do escritor que utilizou o pseudónimo de Mark Twain: a notícia da minha morte (é) foi manifestamente exagerada. Pois foi! A segunda vaga da Primavera Árabe está aí. Tal como a primeira não se sabe no que vai dar, mas está aí.


Desde logo, dizer que é uma segunda vaga, significa que a origem dos protestos e a fórmula encontrada, são as mesmas: ditaduras ou regimes autocráticos, corrupção, necessidade de mudança, social e política, e de liberdade.O que se passa, neste momento, do Sudão ao Líbano, passando pela Argélia e Iraque, deixa poucos argumentos a quem declarou a morte da Primavera Árabe e pensava que estava tudo a regressar à normalidade, entenda-se o regresso, ou manutenção, do poder político, em mãos que deixam o Ocidente tranquilo quanto ao que daí pode contar.Poderia ser assim, mas não é. A “rua árabe” volta a fazer tremer o poder em vários países. Desta vez já não lhe chamam “revolução facebook”. É uma segunda vaga com as características da primeira? Claro que não, nem poderia ser. Tal como a reacção dos poderes instalados não é aquela que foi protagonizada por Moubarak, Kadhafi ou Bashar Al Assad. 
Foquemo-nos em apenas três países, para umas breves notas de contexto.

 Líbano – a 17 de Outubro, o governo anunciou uma taxa sobre as chamadas através da WhatsApp. Foi a gota de água. Há sempre uma “gota de água” que muitas vezes nem sequer é muito importante. Desde esse dia as manifestações não pararam. Manifestantes acusaram a classe política de corrupção generalizada e levaram à demissão do Primeiro-Ministro Saad Hariri. A “rua” exige uma mudança total da classe política que lidera o país desde o fim da guerra civil (1990). Numa primeira fase o Hezbollah esteve solidário com os protestos, mas depois distanciou-se. Barricadas nas ruas, pneus a arder, escolas e bancos encerrados durante muitos dias, economia a afundar-se. Foi indigitado um novo Primeiro-Ministro (Hassan Diab), um sunita – como tem de ser – mas não tem o apoio do bloco sunita e tem o apoio do Hezbollah e do Amal (partidos xiitas), e também do Movimento Patriótico Livre (partido cristão). No Líbano ouviu-se a palavra de ordem que marcou o início da Primavera Árabe em 2011: “O povo quer a queda do regime!”. 
Argélia – já lá vão dez meses de protestos. Em Fevereiro de 2019, a população saiu à rua depois de Abdelaziz Bouteflika manifestar a intenção de se candidatar a um quinto mandato presidencial. Os militares controlam o poder e foram eles que acabaram por resolver a questão exigindo a partida de Bouteflika. Assim foi, mas a “rua” e o Movimento “Hirak” (sem qualquer estrutura dirigente conhecida) exige o desmantelamento do sistema e a criação de instituições de transição que reformem o sistema político. Um tribunal militar condenou várias pessoas por conspiração (entre elas está um irmão de Bouteflika) e outras por corrupção (entre elas dois antigos primeiros-ministros). A exigência da “rua” mantém-se e aumenta a repressão contra os manifestantes. Instituições europeias e Organizações de Direitos Humanos condenam a reacção das autoridades argelinas.As eleições presidenciais de 12 de Dezembro tiveram cinco candidatos, mas o Movimento Hirak acusou os candidatos de serem meros fantoches do poder instalado e apelou à abstenção. Abdelmadjid Tebboune, um antigo Primeiro-Ministro de Bouteflika, venceu com 58% dos votos, mas a abstenção ultrapassou os 60%. Os manifestantes continuam a sair à rua, principalmente à sexta-feira (mais de 40 consecutivas) e querem uma mudança radical do sistema que dirige a Argélia desde a Independência, em 1962. Falta saber como o Exército argelino vai lidar com tudo isto, sendo que é uma instituição com o crédito de ser a herdeira do Exército de Libertação Nacional que travou a guerra da independência (1954-1962) e deu provas recentes de unidade e resistência a movimentos radicais islâmicos. 
Iraque – Como explicar que num país que “nada” em petróleo, a miséria seja a realidade da maioria da população? Desde 1 de Outubro que, com excepção da zona curda, as manifestações têm saído à rua. Exigem a saída dos actuais dirigentes políticos, um poder que acusam de corrupto e incompetente. A repressão tem sido dura: cerca de 500 mortos e vinte mil feridos. Também no Iraque “o povo exige a queda do regime!” e, tal como no Líbano e na Argélia, não há qualquer liderança organizada dos protestos. O poder xiita não está a conseguir lidar com a situação e foi até numa cidade xiita (Nassíria) que a repressão deixou maior marca. O Irão, aliado do actual poder em Bagdad, está também na mira dos manifestantes. O Iraque tem sido um país à deriva desde 2003: desarticulação das instituições do país (exército, polícia, etc..), depois a ascensão da Al Qaeda e, posteriormente, a presença do Estado Islâmico. Entretanto, as grandes petrolíferas instaladas no país utilizam mão de obra estrangeira deixando apenas tarefas menores para os iraquianos. O preço das sucessivas guerras, o desemprego da maioria dos jovens (60% da população tem menos de 25 anos) e a guerra de bastidores entre Estados Unidos e Irão, conduziram o Iraque a uma situação da qual não se sabe como é possível sair. 
Líbano, Argélia e Iraque, são países em que os ventos da Primavera Árabe de 2011 pouco se fizeram sentir mas onde agora o grito de revolta é semelhante. Houve manifestações, é certo, mas algumas promessas e alterações legislativas foram suficientes para acalmar a “rua”. No Iraque, as preocupações eram outras e as prioridades também. Desta vez o poder político está a braços com protestos que não desarmam. Fartas de miséria e habituadas à violência, as pessoas parecem querer dizer que já nada têm a perder.Líbano (1975-1990) e Argélia (1991-2002) são dois países com memória muito recente de guerras civis que custaram muitos milhares de vidas. São muitos anos de violência que levam a população a reflectir antes de qualquer acto que desestabilize estes países. Apesar disso, os protestos estão na rua, a determinação parece ser grande, e não se sabe como tudo isto vai terminar.


Pinhal Novo, 28 de Dezembro de 2019
josé manuel rosendo