segunda-feira, 21 de novembro de 2016

Memórias do Irangate num check point no Iraque


Há dias assim: esperamos, esperamos… e nada. Esta segunda-feira, a força de elite do exército iraquiano, a “Divisão Dourada” decidiu que os jornalistas não passavam do chek point que antecede Bertalla, na estrada para Mossul. Por ali ficámos horas a fio à espera de uma luz-verde que nunca chegou.

Nos dias assim e em circunstâncias como as de hoje, os jornalistas metem conversa entre eles: de onde és, para quem trabalhas, onde estiveste ontem, como é que achas que podemos chegar aqui ou ali… são perguntas habituais neste tipo de conversa. Mas eis que, nesta segunda-feira, num check point perdido a este de Mossul, havia uma personagem que trabalha para a televisão norte-americana Fox News: Oliver North, ex-coronel dos fuzileiros navais. 

Acompanhado de uma dúzia de homens, entre seguranças, tradutores (não vi armas mas tinham carregadores nos coletes) e repórteres de imagem, Oliver North e muitos outros, depois de lhes ser barrada a passagem no check point, tal como aos jornalistas no local, desdobraram-se em telefonemas. Foram horas ao telefone. Para quem não sei, mas sei que passadas aí umas três horas, surgem dois carros blindados norte-americanos. Seguem-se contactos apressados com os militares iraquianos da força de elite que controla o check point, Oliver North e acompanhantes seguem para os quatro jipes blindados em que viajavam, formam uma coluna com um carro blindado a abrir r o outro a fechar, e dirigem-se ao check point… mas daí não passaram. O que os norte-americanos pensavam que estava resolvido (ou tentaram dar a entender que estava…) afinal não estava. Oliver North e restante comitiva voltaram para junto do grupo de jornalistas perante muitos sorrisos nada dissimulados.

A história ficaria por aqui, não se tivesse dado o caso de, quando os blindados norte-americanos recuavam do check point, ter surgido no extremo oposto uma milícia xiita (obviamente armada) que pretendia passar o mesmo check point. Discussão entre xiitas – a coisa esteve feia, muito feia, e um dos milicianos chegou a ser detido – gritaria, ânimos exaltados e… os dois blindados norte-americanos no meio, entre xiitas desavindos, sem saberem muito bem o que lhes tava a acontecer nem o que deveriam fazer. Tudo acabou em bem, prevalecendo a vontade dos homens da Divisão Dourada, donos e senhores do território.

Moral da história: os norte-americanos, sempre com aquela ideia de que o poder lhes permite mexer uns cordelinhos, podiam ter acabado entalados numa situação complicada, fruto de uma xico-espertice da comitiva de Oliver North, ao tentar resolver de forma egoísta uma situação que não o prejudicava apenas a ele. Não imagino por onde passaram os telefonemas e não sei se o ex-coronel ainda “mexe cordelinhos” no Pentágono, ou se porventura – já passaram muitos anos – ainda tem contactos criados no tempo da guerra Irão-Iraque, mas desta vez de nada lhe valeram. Ou então fez que estava a telefonar. Da Fox News (depois de ver o espectáculo que foram dando durante este dia) nada me surpreende. Desta vez, tal como no caso Irangate, as coisas não lhes correram de feição. E o mais surpreendente é que não percebem o ridículo.

Iraque, Erbil, 21 de Novembro de 2016

josé manuel rosendo

terça-feira, 15 de novembro de 2016

Uma noite em Bashiqa


Às seis da tarde tenho de interromper o trabalho. O Comandante chama para o jantar e não é possível tentar retardar com um “já vou” ou “são só dois minutos”. Estou no posto de comando Peshmerga de Bashiqa. Acaba por ser um regresso porque estive por aqui em Outubro do ano passado.

A mesa não chega para todos. É comer e andar, para dar o lugar a quem espera. Cada um tem direito a um tabuleiro com arroz de tomate, pão, rodelas de tomate e de pepino e há uns pratos com ovos estrelados. Cada um tira o que lhe está destinado. Depois há chá, quente e muito doce.

O jantar cedo está relacionado com o dia duro e com a noite que cai muito cedo. Fecham-se as cancelas e os portões. Depois do jantar os mais velhos e de posto mais elevado juntam-se para dois dedos de conversa. Ouve-se o som de uma televisão algures neste posto de comando que parece ter ocupado um centro de saúde ou algo parecido. Pelo menos há material médico e de enfermagem. As conversas são suaves.

Os Peshmerga conseguem aliar a experiência de guerrilha à disciplina de uma força militar tradicional. Tudo parece mal organizado, mas tudo funciona.

O Estado Islâmico foi corrido da cidade. Ficou a destruição. Desolação absoluta. Não há gaz nem electridade, a população abandonou a cidade. Talvez metade das casas estejam destruídas, muitas outras danificadas. Ruas esburacadas. Minas assinaladas com bandeiras vermelhas, explosivos à beira da estrada. De vez em quando o ronco de um avião. De vez em quando o som abafado de uma explosão, ao longe. É a guerra. A lua está grande e amarela. Estou cansado. Hoje não dá para mais.

Iraque - Bashiqa, 15 de Novembro de 2016


josé manuel rosendo

terça-feira, 1 de novembro de 2016

Juan Luis Cebrián, não me escrevas mais cartas!



“Escreveste-me” em 1998 e guardei a tua prosa no altar das mais queridas. Folheava-te de quando em vez. As tuas palavras como que arrumavam as minhas ideias, por vezes desordenadas, nas gavetas do pensamento. Apetecia-me responder-te, mas seria atrevimento escrever, assim, ao mestre. E afinal, que poderia eu dizer de novo ou de importante a quem tudo tinha dito? E tão bem dito. Nem sequer havia mais uma pergunta a fazer, porque todas as que imaginei encontravam resposta no que já havias escrito. Mas agora, escrevo-te.

E escrevo-te agora depois de saber que pressionaste o ex-líder do PSOE para não formar um governo à esquerda. Diz o teu concorrente El Mundo – sim, porque no teu El País não encontrei a história – que o teu Grupo, dono do El País, disse a Pedro Sanchéz que nem sonhasse com um governo de aliança à esquerda. Aqui vai o excerto da conversa com Jordi Évole reproduzido no El Mundo: “Y pese a que Évole perseveraba para arrancarle el nombre de Juan Luis Cebrián, Sánchez repetía que "nunca" se reunió con él, pero sí con "otros responsables" del periódico que le dijeron "claramente que o Rajoy o la línea editorial no iba a ir ni a facilitar que hubiera un Gobierno progresista liderado por el PSOE". Não é preciso dizer mais nada, ambos sabemos como funciona. Estamos a falar do “teu” jornal, de que foste fundador e director e que pertence ao grupo de que és presidente.

Foi o parágrafo da desilusão. E dei por mim a perguntar: será que por cá, por Portugal, também enviaste alguns recados do mesmo género quando o actual governo estava para ser formado? Não sei. Mas começo a não me admirar que o tenhas feito.

Pelo que me diziam, dás-te bem com Bildberg e não gostaste nada dos “papéis do Panamá”. Desvalorizei. Enfim, pensei, mudou de vida, desde que trocou o jornalismo pela gestão e presidência do Grupo Prisa, pensa mais em dinheiro do que em notícias. Mas quis acreditar que ainda guardavas na alma uns resquícios das cartas que me enviaste nesse ano de 1998. Mas, por outro lado, comecei a duvidar de mim próprio e do que, estava convencido, tu havias escrito. Na dúvida, fui à estante. Atirei uns quantos livros ao chão na ânsia de reler as tuas palavras. Pensando nisso agora até parece que fui à procura da confirmação de que não tinha andado enganado todo este tempo. Sei lá… podia ter lido mal… podia ter interpretado mal… mas não, não li nem interpretei mal. Está lá tudo.

Repara neste excerto de uma das muitas cartas que dirigista a Honório a propósito do perigo da concentração de empresas na área da comunicação social: “Profissionalismo é, pois, a palavra chave. Profissionalismo frente às pressões – sejam da própria empresa, do poder político ou publicitário, ou da opinião reinante da sociedade. Profissionalismo perante os sectarismos que nascem das próprias manias dos redactores, das suas bílis particulares, das suas vergonhas e devaneios. Profissionalismo, consistente em não dar notícias que não estejam devidamente verificadas, não ocultá-las por motivos alheios ao interesse do leitor ou do telespectador e não esconder opiniões e análises a respeito delas, por contraditórias que sejam com o nosso sentir ou com a linha oficial da empresa”.

Sei agora que renegaste tudo o que escreveste e, aparentemente, sem ponta de remorso.

Com que cara vou eu trabalhar? E se alguém decidir confrontar-me com esta tua traição? Aconselhas-me alguma resposta?

Coloco-me agora a questão de saber se as tuas “Cartas a um jovem jornalista” não terão sido escritas apenas porque sim, apenas porque era bem e de bom-tom. Dá jeito ter alguma coisa publicada que se possa ver. Dava-te pinta de bom jornalista, credível, escreveres umas palavras a preceito que te dessem aura de pensador e, até, quase poeta. Conheço-os e conheço o estilo. Mas tu… enganaste-me tão bem que até te coloquei no altar da estante aqui de casa.

A carta já vai longa e vou terminar. E digo-te: não vou queimar o teu livro porque os livros não se queimam. E também não penses que perdes o lugar na estante. Apenas retiro as “velas” que te alumiavam e ajudavam a santificar o lugar. Mas, em nome do rigor, e do profissionalismo que me deste como conselho, quando falar do teu livro a alguém vou ter de acrescentar que já não és o tipo que escreveu aquilo. E vou contar o que fizeste. Porquê? Como sabes, a traição custa sempre mais quando vem daqueles de quem menos a esperamos. E em jeito de vingança (pequenina) apenas para te tirar o sorriso que certamente estás a esboçar, digo-te que seguirei os conselhos das cartas que me escreveste e espero que um dia te possas amaldiçoar por teres dado esses conselhos que te vão estragar o negócio.

Fico à espera da tua resposta. E não precisas de demorar (como eu) 18 anos.

Cumprimentos
Pinhal Novo, 31 de Outubro de 2016

josé manuel rosendo