Início dos trabalhados da Comissão que vai negociar uma nova Constituição para a Síria. Fotografia publicada na página da National Coalition of Syrian Revolution and Opposition Forces |
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A
ideia parece louvável: dotar a Síria de uma nova Lei Fundamental para que
exista uma base de reconstrução do país quando a guerra terminar. As Nações Unidas
apadrinham o trabalho feito por uma Comissão Constitucional de 150 pessoas,
sendo os lugares repartidos, por igual, entre o Governo do Presidente Bashar al
Assad, as diferentes fações da oposição e os representantes da sociedade civil
(escolha da ONU). Os problemas começam aqui: o que são as “diferentes fações da
oposição” e os “representantes da sociedade civil”, se tivermos em conta que a
Síria está em guerra há mais de oito anos? Não bastando, pergunta-se,
naturalmente, onde estão os curdos? Não estão!!! Isto é, estão, mas não aqueles
que, de facto, representam a Administração semi autónoma do Rojava (Curdistão
Ocidental, na Síria). Estão os que fazem parte do Conselho Nacional Curdo, que
tem fortes ligações ao Partido Democrático do Curdistão (Iraquiano), não tem
presença e representação expressiva no terreno e está a léguas de distância da
ideologia que marca a Administração do Rojava. É assim que começam mal as coisas de que mais tarde veremos as consequências.
Tenha
sido por pressão da Turquia, da Rússia, ou até de Bashar al Assad, as Nações
Unidas acabam por deixar de fora uma parcela substancial dos interessados. Aliás,
os curdos que agora ficaram de fora, também estiveram ausentes nas negociações
de Astana (organizadas pela Rússia, Irão e Turquia) e também não estiveram nas
chamadas negociações de paz de Genebra. Os curdos da Administração
semi autónoma do Rojava, estiveram, isso sim, na frente de batalha contra o
Estado Islâmico. Em troca, receberam palavras bonitas e palmadinhas nas costas.
Agora, estão a ser descartados. Mais uma vez.
Ainda
assim, chegar a esta Comissão que tem por missão criar uma nova Constituição
para a Síria, não foi fácil. A resolução (2254) do Conselho de Segurança que
refere a revisão da Constituição síria, é de Dezembro de 2015. Já lá vão quatro
anos. E prevê-se dois anos de trabalho para que seja possível chegar a um texto
final que reúna 75% dos votos desta Comissão. Só assim será aprovado.
As
esperanças do Secretário-Geral da ONU, António Guterres, vão no sentido de que
seja uma primeira etapa para o regresso a casa dos sírios refugiados, “de uma
forma segura e digna”. O Enviado-especial da ONU para a Síria, Geir Pedersen,
foi também cauteloso ao dizer, no arranque dos trabalhos, a 30 de Outubro, que
uma nova Constituição não irá resolver os problemas nem acabar com a guerra,
mas poderá ajudar a esbater diferenças, construir confiança entre os
protagonistas e iniciar um processo político que dê um futuro à Síria. Pedersen
sublinhou que é a primeira vez que toda esta gente aceita sentar-se à mesa para
falar de um problema comum, mas disse também que se não se entenderem ninguém o
irá fazer por eles. Resta saber se não irá ser uma conversa de surdos.
Dos
protagonistas sírios, como é natural em negociações deste género, em que cada
um procura iniciar o diálogo em posição de força, as primeiras palavras foram
de pressão e exigência, e não se sabe se as negociações irão aligeirar estas
posições. O chefe da delegação da oposição disse que “para construir a
confiança, o mais importante é que haja um cessar-fogo permanente, que os
presos sejam libertados e os desaparecidos encontrados”; o representante da
delegação governamental foi muito claro ao dizer que o Governo de Bashar al
Assad acolherá de braços abertos os que tenham opiniões próximas, mas não aqueles
que se afastem dos interesses nacionais”.
Com
os campos assim marcados, é preciso admitir que estas negociações podem nunca
chegar a “bom porto”. A oposição, que não se sabe muito bem o que é e cujo
poder militar no terreno é nulo, não tem capacidade de forçar seja o que for à
mesa das negociações; o Governo sírio, com a recuperação de território, a
derrota do Estado Islâmico, e os curdos da Administração semi autónoma do
Rojava a pedirem-lhe apoio para combater a invasão turca, tem a “faca e o
queijo na mão”. Bashar al Assad pode impor ou recusar o que muito bem entender
e até pode, quando quiser, bater com a porta e deixar os interlocutores a falar
sozinhos. Aliás, talvez esteja nestas negociações, apenas por pressão da
Rússia, que pretende ver a Síria, de novo, a ser aceite pelos parceiros
internacionais e, eventualmente, a livrar-se das sanções internacionais que
estão em vigor.
No
que ao futuro da Síria e aos curdos diz respeito, é preciso ter ainda em conta
que a Constituição síria foi alterada em 2012, e o Ministro dos Negócios
Estrangeiros, Walid al Moualem, já disse que o Governo apenas poderá aceitar pequenas alterações a esse texto. Alguns analistas referem que o novo texto
nada mudou de concreto em relação aos poderes presidenciais (passou a ser
eleito por sufrágio universal) e Assad foi mesmo reeleito em 2014, em eleições que,
obviamente, nada significam. Tal como nada significaram as eleições
legislativas de 2012, com alguns candidatos que, em nome do pluralismo político,
não eram do Partido Bahas (o de Bashar al Assad), mas a esmagadora maioria dos
eleitos foi a do costume.
A
Constituição de 2012 tem ainda um aspecto que merece toda a atenção e poderá
ser um dos motivos de maior discussão na Comissão que tenta redigir um novo
texto: proíbe toda a actividade política de carácter religioso ou étnico. Logo
no Capítulo I (Princípios Políticos), o n.4 do Art.º 8, fica tudo esclarecido,
não sendo permitido: “Desenvolver qualquer atividade política ou formar
partidos ou agrupamentos políticos com base em discriminação religiosa,
sectária, tribal, regional, de classe, profissional ou organizacional com base em
género, origem, raça ou cor”. Esta redacção pode até parecer aceitável à luz
dos valores mais generosos, mas tem uma função específica na realidade síria:
impedir a actividade da Irmandade Muçulmana (inimigo de longa data do clã
Assad) e dos curdos.
Pinhal
Novo, 10 de Novembro de 2019
josé
manuel rosendo
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