terça-feira, 23 de janeiro de 2018

Onde estão os amigos dos curdos?



A surpresa – ou talvez não – da noite de segunda-feira, chegou de Nova Iorque: o Conselho de Segurança das Nações Unidas, reunido a pedido da França por causa da ofensiva militar turca no Curdistão sírio, terminou a reunião e ficou em silêncio. Não houve condenação da invasão turca, nem comunicado final. As únicas declarações conhecidas são as do embaixador francês: “há uma viva preocupação face à situação no norte da Síria com a escalada em curso”. Ainda acrescentou que a prioridade é a “unidade dos aliados na luta contra o Estado Islâmico” e que a situação em Afrin é apenas “um dos elementos da situação na Síria”. E por aqui se ficou.

Dos outros 14 países do Conselho de Segurança não são conhecidas quaisquer declarações e porque a reunião foi à porta fechada – não sendo possível ter a certeza – corre a notícia de que a embaixadora norte-americana Nikki Haley, não esteve presente.
A confirmar-se esta ausência, fica claro que os Estados Unidos, mais uma vez, “olharam para o lado” quando se trata de proteger aliados e quando se sabe que um dos argumentos para a actual invasão turca foi os Estados Unidos terem dito que estavam a formar as milícias curdas da Síria com o objectivo de evitar o regresso do Estado Islâmico a territórios que já ocupou. Apesar dos desmentidos norte-americanos, a Turquia encarou esta acção como sendo a base da formação de um força militar curda para vigiar e proteger a fronteira turco-síria (que é a zona curda). Os Estados Unidos lavaram as mãos, qual Pilatos, e todos aqueles que se dizem amigos dos curdos, fizeram o mesmo. Ao apelo curdo para que Washington “assuma as suas responsabilidades”, a Casa Branca fez ouvidos moucos.

Longe vão os tempos em que muitos teciam loas aos curdos por enfrentarem o Estado Islâmico. Fizeram-no no Iraque e na Síria. Depois disso, no Iraque sabemos que fizeram um referendo e votaram pela Independência; o governo de Bagdad tratou de fazer gorar essas intenções, tomando Kirkuk à força e encerrando o espaço aéreo; os interesses económicos das elites curdas iraquianas fizeram o resto – há petróleo para vender.
Na Síria, os curdos dispensaram o referendo e declararam a Autonomia administrativa em Rojava (assim designado o Curdistão Ocidental) que inclui os cantões de Jazira, Kobani e Afrin. Este último, fica separado dos outros dois que são contíguos. Entre eles fica uma zona onde a influência curda é reduzida e por onde entraram as forças militares turcas desde que intervieram directamente na guerra na Síria em Novembro de 2016. Agora o ataque é ao cantão de Afrin, o mais exposto e difícil de defender por ser um enclave.

Não surpreende o ataque turco. As ameaças vinham sendo feitas e a vontade turca de neutralizar as pretensões curdas era mais do que evidente. A Turquia vê nas milícias YPG (Unidades de Protecção Popular) a versão síria do PKK (Partido dos Trabalhadores do Curdistão) que desde 1984 declarou a revolta dos curdos e tem assumido um confronto militar com a Turquia. A Turquia considera as YPG um grupo terrorista.

Mais uma vez, o interesse particular dos Estados evita que os curdos recebam o apoio que fizeram por merecer. Mais uma vez vão sentir-se usados e mais uma vez vão pagar cara a “ousadia” de quererem ser donos do seu próprio destino.

Dos vizinhos próximos dos curdos já se sabia que não querem nem ouvir falar de Autonomia ou Independência, mas de outros “amigos” esperava-se mais. Uns porque também têm minorias nos seus territórios e não querem “maus exemplos”, outros porque têm outros interesses no Médio Oriente, todos deixam os curdos à sua sorte porque nunca são uma prioridade no xadrez internacional.
Ainda não há muito tempo, Tony Blair – depois de muitos anos como líder do “Quarteto para o Médio Oriente” – reconheceu que a comunidade internacional errou na atitude em relação ao Hamas depois do Movimento Islâmico ter vencido as eleições palestinianas em 2006; todos temos assistido ao desfile de personalidades que vieram dizer que a invasão do Iraque foi um erro; todos assistimos a um Conselho de Segurança cada vez mais incapaz de tomar decisões que tenham algum contorno de justiça e não apenas de submissão aos interesses dos membros com assento permanente. Acumulam-se os erros e somam-se conflitos que ganham contornos de guerras prolongadas com um alto preço de vidas humanas.

O recente ataque turco começou a 19 de Janeiro com bombardeamentos a partir da Turquia e teve seguimento no dia seguinte com as forças militares a penetrarem em território sírio.

O Presidente turco já disse que não vai recuar e, paralelamente, a Rússia convida os curdos da Síria a participarem em negociações de paz (com toda a oposição síria) em Sochi, no final de Janeiro, negociações que também têm o patrocínio turco. Ao mesmo tempo a Rússia acusa os Estados Unidos de provocarem a Turquia – por treinarem as milícias curdas – e incentivarem o separatismo curdo.
Na troca de declarações os Estados Unidos pedem “contenção” à Turquia, mas também reconhecem aos turcos “o direito legítimo de se protegerem”, sendo que já reconheceram terem sido avisados antecipadamente da ofensiva turca.
O Reino Unido não foge à regra: o Ministério dos Negócios Estrangeiros fez saber que “reconhece à Turquia um interesse legítimo de assegurar a segurança das suas fronteiras”.

Até agora o único país a protestar contra a invasão turca foi a própria Síria. A Turquia diz que avisou o presidente sírio, mas Bashar al Assad nega e classificou a invasão como “uma agressão brutal”, acusando o regime turco de “apoio ao terrorismo e às organizações terroristas, quaisquer que elas sejam”. Perante tudo isto o que podem pensar os curdos da comunidade internacional?

Pinhal Novo, 23 de Janeiro de 2018


josé manuel rosendo

sexta-feira, 5 de janeiro de 2018

Lacerda não engana, honra lhe seja feita


Já estava nos CTT antes da privatização e continuou depois da venda da empresa aos privados. Justiça lhe seja feita, Francisco Lacerda, actual Vice-Presidente do Conselho de Administração & CEO (Presidente Executivo) da empresa, não engana: está nos CTT para ganhar dinheiro e distribuí-lo pelos bolsos dos accionistas. É crime? Não! É legal? É! O problema para Francisco Lacerda e para os acionistas dos CTT é que o serviço da empresa faz-nos falta.
Em Junho de 2013, Francisco Lacerda disse em entrevista à Lusa: "o processo está a acabar, fizemos uma reorganização da rede e vamos fechar 124 estações de correio e abrir 78 postos". Na altura Francisco de Lacerda era Presidente do Conselho de Administração dos CTT.
Entre este fechar de estações e abrir (menos) postos de atendimento houve uma transformação substancial: as estações pertenciam aos CTT, enquanto os postos são actividade de correios ligados a parceiros, nomeadamente Juntas de Freguesia e algum comércio local.
Há pouco mais de duas semanas ficámos a saber que os CTT vão encerrar mais 22 lojas em todo o país e, até 2020, querem ter menos 1.000 trabalhadores.
Em 2016, os CTT destinaram 72 milhões de euros para a distribuição de dividendos, acima do lucro de 62 milhões de euros gerado nesse ano pela empresa.
Francisco Lacerda assumiu, ao mesmo tempo que anunciava o encerramento de Estações, que a empresa tem de distribuir mais rendimentos pelos accionistas. Para isso é preciso cortar nos custos: menos Estações e menos trabalhadores. Chamam-lhe ajustar o modelo de negócio ao mercado. Se alguém ainda não percebe a diferença entre o serviço público e o mesmo serviço prestado por um privado, basta pensar neste exemplo. O Privado quer distribuir lucros pelos accionistas deixando de lado a qualidade do serviço que presta; o Público deve preocupar-se principalmente com o serviço que presta e não existe para dar lucro. É óbvio que, se for bem gerido, tem mais qualidade e sai mais barato.
Desde Setembro de 2014 que os CTT são uma empresa 100% nas mãos dos privados. Desde esse dia que perdemos o direito de exigir seja o que for através dos mecanismos que a democracia coloca à nossa disposição para exercermos a nossa cidadania. A solução que nos resta é elegermos representantes que façam regressar os CTT à esfera pública. E convém que seja feito enquanto houver CTT. Até lá, os mesmos que concordaram com a privatização dos CTT podem agora chorar lágrimas de crocodilo e autoflagelar-se por causa do serviço miserável da empresa, mas isso nada resolve - não sei mesmo se não será hipocrisia, porque era absolutamente expectável o que está a acontecer.
Por fim, há sempre quem apareça a dizer que não tem uma posição dogmática sobre as privatizações, justificando esta posição com as boas e/ou más administrações quer no sector público, quer no privado. Pois, Pilatos também lavou as mãos... 
Pinhal Novo, 5 de Janeiro de 2018

josé manuel rosendo

quarta-feira, 3 de janeiro de 2018

Afinal, o que é que se passa no Irão?

Foto: Press TV

Pretender responder a esta questão - com a escassa informação disponível - de forma peremptória e sem possibilidade de erro, é impossível. Exige-se cautela e cuidado extremos na análise, mas é possível digerir alguns dados concretos.

É, sem dúvida, um momento difícil para a grande potência xiita do Médio Oriente, pelo menos em termos da imagem que está a circular nos media ocidentais.
Estamos a falar de um país com mais de 80 milhões de habitantes, com a segunda maior reserva mundial de gás e a quarta maior reserva mundial de petróleo. É também o país com o qual as grandes potências assinaram um Acordo Nuclear que, agora, Donald Trump (e Israel) quer rasgar. Os Estados Unidos nunca digeriram o que passou em 1979. Após mais de 50 anos de domínio da dinastia Pahlavi (com conhecida ajuda da CIA), o Irão passou a República Islâmica com a revolução de 1979 e, por esses dias, a Embaixada norte-americana em Teerão foi palco de um braço-de-ferro com meia centena de reféns  durante mais de um ano e com uma operação militar de resgate falhada por Washington.

Até muito recentemente o Irão foi alvo de sanções internacionais já parcialmente levantadas, mas os Estados Unidos mantêm um vasto leque de sanções contra Teerão. A queda dos preços do petróleo também não ajudou a economia iraniana e em 2015 a austeridade fez-se sentir no Orçamento. As agências internacionais referem um desemprego de 12,5% sendo que 25% dos jovens estão sem emprego. O rendimento médio por pessoa caiu de quase 7.000 dólares em 2013, para 5.470 dólares em 2016 (dados do Banco Mundial). O Presidente Hassan Rouhani chegou ao poder com a promessa de melhorar a economia e as liberdades civis, mas estas manifestações podem ser o sinal de grande frustração com a situação no país.

Como funciona o complexo sistema iraniano?

Instituições não eleitas:

Líder Supremo – Escolhido por uma Assembleia de Peritos que vigia a sua actuação e tem poderes para o afastar. O Líder Supremo nomeia juízes, o Conselho dos Guardiões, o comandante das Forças Armadas e também os líderes da oração de sexta-feira bem como os directores da rádio e da televisão.

Assembleia de Peritos – mandato dos membros é de oito anos e realiza, em média, duas sessões por ano.

Conselho do Discernimento – Organismo Consultivo do Líder Supremo que nomeia os membros desta Instituição. Tem poder de arbitragem nas disputas sobre legislação entre o Parlamento e o Conselho dos Guardiões.

Sistema de Justiça – o líder é nomeado pelo Líder Supremo. A Lei é baseada na Sharia.

Instituições eleitas:

Conselho dos Guardiões – Considerada a mais influente instituição iraniana. Seis teólogos nomeados pelo Líder Supremo e outros seis pelos juízes e aprovados pelo Parlamento. Ratifica e pode vetar as leis produzidas pelo Parlamento. Tem poder de decisão sobre candidatos que pretendem concorrer a eleições.

Presidente – Eleito pelo povo mas os candidatos têm de ser aprovados pelo Conselho dos Guardiões. É o chefe do Governo e o responsável pela aplicação da Constituição.

Governo – É escolhido pelo Presidente mas tem de ser aprovado pelo Parlamento.

Parlamento – Deputados eleitos a cada quatro anos, mas a legislação que produz é sujeita a ratificação.

É este conjunto de instituições que exerce o poder no Irão. Religião e política são uma e a mesma coisa ou não tivesse sido o anterior Ayatollah Khomeini a dizer: “Tudo no Islão é política”!

É dentro desse Islão político que surgem as recentes manifestações, precisamente em Mashhad, segunda cidade do país e berço do actual Líder Supremo. A primeira ideia que fica é a de que foram provocadas por um sentimento de revolta comum a países submetidos à austeridade: há desemprego, há incerteza e houve, recentemente, um anúncio de aumento dos combustíveis.

Aparentemente, apenas há três origens possíveis para os protestos: a influência estrangeira (como acusa o regime), a oposição conservadora rival da corrente liderada pelo actual presidente Rouhani ou, hipótese aparentemente mais remota, uma revolta popular genuína com a intenção de tentar fazer cair o regime e provocar uma revolução.

Não se conhecendo a origem (política) dos protestos é certo que estão a ganhar dimensão e a alastrar. É também certo que são distintos dos que tiveram lugar em 2009 e, desta vez, visam símbolos do regime e há palavras de ordem como “morte ao ditador”.

O Presidente Hassan Rouhani teve um discurso conciliador dizendo que é preciso dar espaço aos iranianos para que possam exprimir as suas inquietações, mas condenando a violência; quanto ao Supremo Líder, acusou os inimigos do Irão de estarem a provocar as manifestações. 

Aqui chegados, convém passarmos as fronteiras do Irão e perceber o que se passa na zona de influência xiita: o Irão está a vencer em vários palcos de conflito. Descodificando: está a vencer no Iraque, aliado do Governo de Bagdad que derrotou o Estado Islâmico; está a vencer na Síria, aliado do Governo de Bashar al Assad que se aguentou no poder; está a vencer no Líbano, aliado do poderoso Hezbollah que – se quiser – controla o país, e onde foi revertida a demissão do Primeiro-Ministro, Saad Hariri, que se tinha demitido em Riad por clara pressão da Arábia Saudita; no Yémen, estando ou não o Irão envolvido no apoio aos Houthis, é certo que as coisas não estão a correr bem para a rival regional Arábia Saudita. É este o cenário regional que certamente não agrada aos Estados Unidos (e a Israel). E quando um país não pode ser derrotado nas guerras que disputa no exterior, talvez possa ser derrotado internamente. Talvez...

Entretanto, mais de duas dezenas de mortos e várias centenas de detidos, é por agora o balanço conhecido dos confrontos e da repressão exercida pelo regime.


Pinhal Novo, 3 de Janeiro de 2018


josé manuel rosendo