terça-feira, 1 de setembro de 2015

Memórias de Gevgelija – arame farpado, lágrimas e sorrisos


A fronteira – Gevgelija – entre a Grécia e República da Macedónia é, por paradoxal que possa parecer, um local de lágrimas e sofrimento, de sorrisos e alegria. Sente-se a dor de quem chega vindo da Grécia, após longas jornadas desde a Síria, Iraque ou Afeganistão, transportando no corpo as sequelas de longas caminhadas, noites mal dormidas e da incerteza do dia seguinte, ou do minuto seguinte, não sabendo se a fronteira vai ser a porta da esperança ou o muro inultrapassável; alegria porque os sorrisos e os “thank you” nos mais diversos sotaques são o sinal de que foi cumprida mais uma etapa. Os corpos chegam cansados e sujos, os pés arrastam-se. As pequenas mochilas e sacos são um peso tremendo numa viagem assim. Na alma vem outro tipo de dor: a família que se deixou para trás, a terra de onde fugiram porque a guerra não os deixou ficar, os amigos que morreram pelo caminho. Depois de uma viagem sabe-se lá em que condições, através de um Mediterrâneo que já é cemitério de muitas centenas e às mãos de gente sem escrúpulos que cobra fortunas por esta passagem para a Europa, há ainda essa enorme incerteza sobre o acolhimento: vão ser bem recebidos ou vão ser escorraçados? Vão demorar a saber.

Os refugiados que atravessam a fronteira Grécia/República da Macedónia são agrupados ainda na Grécia, depois, sempre em grupos de 100/150 pessoas, atravessam uma “terra de ninguém” até à fronteira da República da Macedónia. Aí chegados é o arame farpado e os militares que coordenam o avanço dos vários grupos que nunca param de chegar. Quando passam a fronteira são encaminhados para um campo de acolhimento onde é feito um registo e recebem um escasso apoio das ONG’s, Nações Unidas e Cruz Vermelha. Alguns entram directamente do campo de acolhimento para uma gare ferroviária improvisada. O comboio, sem paragens há-de percorrer cerca de 200 quilómetros até à fronteira com a Sérvia. Outros andam mais umas centenas de metros até aos autocarros estacionados à entrada da cidade e seguem o mesmo destino. Também há taxistas em busca de negócio. Depois das autoridades terem assumido o controlo da situação, os refugiados nem chegam a contactar com a população de Gevgelija. A Estação ferroviária deixou de ser o caos das últimas semanas.

O nosso lado humano regista, inevitavelmente – e eu não quero deixar de ser assim – o olhar das crianças; a expressão sofrida das mães que amamentam à sombra de um toldo que não consegue iludir o calor sufocante; a atitude brusca de pais, dominados pela ansiedade, que arrastam a criança que chora e faz birra no momento do grupo avançar; os bebés que tomam um banho, se calhar o único em muitos dias, com a água das garrafas fornecidas pela UNICEF; o grupo de homens desorientado com a viagem que não sabe a direcção de Meca para orientar a posição da oração; pessoas que, mesmo com fome, preferem comer pão com nada e não comem o paté fornecido pelas Nações Unidas porque não sabem se tem carne de porco e a legenda da embalagem é indecifrável; pessoas que não entendem a língua do país onde estão e são alvo da brutalidade verbal de polícias e militares; homens que carregam mulheres às costas para que não fiquem para trás; pessoas de muletas e braços engessados que travam uma enorme luta com o cansaço para não perderem mais uma etapa da longa viagem; casais com quatro e cinco crianças – duas ou três ao colo e às cavalitas, as outras pela mão; pessoas que desesperam porque de um momento para o outro ficam separadas da família quando ficam num grupo que avança e a família fica noutro que aguarda; mulheres grávidas que são assistidas pela Cruz Vermelha; pessoas doentes que mal conseguem mexer as pernas e que acabam, também elas, levadas pela Cruz Vermelha; grupos de pessoas solidárias que, simultâneamente, lutam por um lugar no grupo que se prepara para avançar; pessoas que não sabem responder à pergunta “para onde quer ir?”.

Nestas reportagens fica sempre aquele sabor estranho ao sentirmos que, terminado o trabalho no terreno, voltamos ao nosso conforto caseiro, enquanto estas pessoas continuam a enfrentar os mesmos dramas e problemas. Gostava de saber que destino seguiu Barzan, o sírio curdo de Kobani que ficou momentâneamente separado da família e dos amigos na zona de fronteira e que me pediu ajuda na tentativa de reencontro (que acabou por acontecer sem nenhum mérito meu); gostava de saber o que aconteceu a Mohammad, um sírio que vinha de uma zona onde já estive – Montanha de Jabal al Akrad, junto a Aleppo – e que ao saber disso falou comigo até eu querer; gostava de saber o que aconteceu a Salim e Yusman, dois paquistaneses que já estavam há muitos meses na Grécia e que confessaram estar a aproveitar a vaga de refugiados para chegar a outro país europeu; gostava de saber o que vai ser do iraquiano xiita que me disse que é impossível viver em Bagdad, que o antigo Primeiro-Ministro iraquiano al Maliki “não prestava” e que o actual, al Abadi, não é melhor. 

Gostava que estas pessoas nunca mais sentissem o medo que as levou a recusar falar para uma câmara de televisão por receio de represálias contra a família que deixaram para trás ou por poderem ser prejudicadas nos países onde querem chegar. O meu receio, agora, é que a Europa as decepcione.

Pinhal Novo, 31 de Agosto de 2015

josé manuel rosendo

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