Após os atentados de Paris, as emoções estão (ainda) à flor
da pele e quando não alinhamos no instinto primário da vingança somos quase
automaticamente colados aos defensores e autores da barbárie.
Ponto prévio: é muito escassa a informação fidedigna sobre o
Estado Islâmico. Sabemos quase nada e o que sabemos tem origem na propaganda do
próprio Estado Islâmico e na propaganda anti Estado Islâmico. Na maior parte
dos casos a informação tem origem em fontes impossíveis de verificar. Existe
uma guerra e, como em todas as guerras, a propaganda e a contra-informação fazem
o seu caminho. Em qualquer guerra a face visível do confronto é apenas uma
pequena parte do que de facto está em jogo.
Há várias semanas que, oficialmente, Estados Unidos e Rússia
anunciam centenas de voos e milhares de alvos atacados. Das duas uma: ou o
Estado islâmico tem uma dimensão, capacidade e organização, que ninguém quer
admitir ou estão a largar bombas de forma indiscriminada sem terem noção dos
alvos que estão a atingir e correndo o risco de provocar os habituais danos
colaterais.
Aceitando como boa a informação que Estados Unidos e Rússia
têm divulgado sobre os ataques aéreos, poucos terão dúvidas sobre o futuro do
Estado Islâmico. Quando as duas grandes potências mundiais (e outras) descarregam
toneladas de bombas na Síria e no Iraque, torna-se evidente que o Califa e os
seus seguidores vão ser pulverizados ou, quanto muito, ficarão reduzidos a
pequenos grupos dissimulados na população e de regresso à estratégia de
guerrilha.
Convém no entanto avaliar alguns dados: porquê apenas agora
o intensificar dos bombardeamentos? Porquê apenas agora os ataques a zonas
petrolíferas (dizem…) e a camiões cisterna de transporte de petróleo? O que é que
estes ataques significam? Vão “desfazer” o Estado Islâmico e deixar a sírios e
iraquianos o resto do problema? E depois há aquela pergunta de “1 milhão de
dólares”: a quem interessa esta guerra e a existência do Estado Islâmico? Há
tantas respostas possíveis, mas a participação de várias potências e vários
actores regionais nesta guerra tem desde logo um significado muito simples:
querem ter uma palavra sobre o futuro da região quando o Estado Islâmico
acabar. Acho que já vimos algo parecido precisamente na mesma região.
O futuro passa por uma pergunta simples de resposta terrivelmente
complexa: e depois do Estado Islâmico? Desde logo não é de todo impossível que
o Estado Islâmico não evolua para um “estado sunita” (faltando saber em que
moldes e em que território). Há teorias nesse sentido. Depois: acabada a guerra
com o Estado Islâmico (com a qual todos parecem concordar), o que fazer com
Bashar al Assad? Como resolver o problema na Síria, palco para uma miríade de
grupos mais ou menos extremistas, mais ou menos laicos? O que fazer com os
curdos? O que fazer com o PKK (que combate o Estado Islâmico), considerado
terrorista pelo ocidente? O que fazer com as (YPG) Unidades de Protecção
Popular (que também combatem o Estado Islâmico) marcadas com o mesmo rótulo? O que
fazer com os combatentes do Estado Islâmico que sobreviverem?
Um exemplo simples ajuda a explicar a complexidade da
situação: Mossul. A segunda maior cidade do Iraque fica na fronteira da zona
árabe com a zona curda. É reivindicada por curdos e árabes. Neste momento, a
questão que já se discute no terreno é a de saber quem fica a controlar a
cidade após a expulsão do Estado Islâmico. Parte da população de Mossul prefere
viver com o Estado Islâmico a ver entrar os xiitas e as previsíveis vinganças; os
xiitas querem a cidade para eles porque vão ter que ser as milícias xiitas,
juntamente com as forças do governo de Bagdad – também quase só xiitas – a desencadear
o ataque à cidade; os curdos reivindicam a cidade e têm o argumento de terem
travado o Estado Islâmico quando o exército iraquiano bateu em retirada. Não é
possível tomar Mossul sem a colaboração dos curdos mas estes não confiam na
capacidade das forças de Bagdad – dizem que não podem confiar num governo que
precisa de milícias para defender o seu próprio povo.
Sobre Raqaa, na Síria, declarada capital do Estado Islâmico,
podemos fazer perguntas semelhantes embora envolvendo actores diferentes. Alguém
sabe responder a tantas perguntas e a questões tão complexas? Parece haver, no
entanto, uma resposta segura: vamos ter outras guerras na região depois de
terminada a guerra ao Estado Islâmico.
Pinhal Novo, 7 de
Dezembro de 2015
josé manuel rosendo
Gostei da análise, muito bem :)
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