terça-feira, 11 de fevereiro de 2020

Síria, Idlib: tragédia anunciada

Baghouz, Síria, Abril de 2019. Nunca faltam armas e munições. Foto: jmr
As informações mais recentes dão conta que a Turquia abateu um helicóptero do regime sírio. Terão morrido 12 soldados sírios. Todos os indicadores são preocupantes. António Guterres classificou a situação de guerra na Líbia como um escândalo; devia ter dito o mesmo da guerra na Síria, em particular sobre o que se passa na região de Idlib.

A cidade e a região de Idlib, são o último reduto das forças que combatem o Governo sírio. Para Idlib foram enviados muitos combatentes, familiares e outros civis, que recusaram ficar nas regiões que as forças de Bashar Al Assad foram reconquistando durante os últimos meses/anos. Cerca de três milhões de pessoas vivem (viviam) nesta região que faz fronteira com a Turquia; o Observatório Sírio dos Direitos Humanos (OSDH) estima que mais de 50.000 combatentes estejam também na região e entre eles estão vários grupos de inspiração religiosa, com particular destaque para a Hayat Tahrir al Sham, o braço sírio da Al Qaeda, e o transfigurado Free Syrian Army, agora um braço de guerrilha da Turquia.

Nada do que está a acontecer na Síria é verdadeiramente surpreendente. Lembro-me, em 2012, na região de Salma, na montanha de Jabal al Akrad, um comandante local do então recém-formado Free Syrian Army - FSA (Exército de Livre da Síria), perante a ausência de qualquer tipo de apoio externo, disse-me que de bom grado aceitaria armas se a Al Qaeda as oferecesse. Ficou traçado o cenário. Quem entra numa guerra assim, acaba por ter de esquecer a motivação inicial se tiver de lutar para salvar a pele. Foi o que aconteceu aos que acreditaram que seria possível afastar o ditador Bashar Al Assad.

Pelo meio ficaram as hesitações do Ocidente: apenas promessas e palavras que deixaram o FSA mal equipado e abandonado à sua sorte. Em 2013, Barack Obama ainda ameaçou (com o argumento de que estavam a ser utilizadas armas químicas), mas nunca concretizou as ameaças. Depois, o Estado Islâmico assustou o mundo e só nesse momento o Ocidente acordou: bombardeamentos aéreos da coligação internacional com os curdos a fazerem de tropa de choque no terreno. A Rússia, com a certeza de que os Estados Unidos não iriam intervir, percebeu que tinha caminho livre e é hoje o principal aliado da Síria, aproveitando ainda para irritar a NATO enquanto namora a Turquia. Deixando à coligação internacional e aos curdos o combate ao Estado Islâmico, o regime sírio reorganizou-se o melhor que pode e aproveitou para, com o argumento de combater terroristas, bombardear e ganhar terreno às milícias que lhe faziam oposição.

Não consigo recordar ao certo se foi após a tomada de Raqqa ou de Palmira, mas Bashar Al Assad anunciou que apenas iria parar quando retomasse o poder de todo o território sírio; a Rússia deu a entender que talvez não fosse possível. Ainda não foi, mas parece inevitável que tal venha a acontecer. Assad não vai permitir que parte do território da Síria seja controlado por outras armas que não as suas, seja qual for o preço a pagar,  esteja a Turquia de acordo ou não. A não ser que o apoio russo lhe falte, algo pouco provável atendendo à pretensão russa de expandir influência no Médio Oriente, Assad não vai desistir. Mesmo sabendo que os Estados Unidos apoiam a “resposta” turca, o Governo sírio vai querer concretizar a reconquista.

Em Idlib e arredores, perante o inevitável ataque e avanço das forças de Assad, a Turquia ameaça retaliar (e tem retaliado) mas terá de ceder. Ou então haverá uma guerra aberta entre turcos e sírios, sabendo nós que a Rússia há muito escolheu de que lado está. Fazer previsões num xadrez geopolítico tão complexo é sempre um enorme risco, mas à Turquia restará levar para a Líbia os combatentes que, sem outra saída, estão transformados em mercenários às ordens de Ancara. São muitos os combatentes estrangeiros na região, a quem apenas se colocam duas possibilidades: renderem-se a Damasco e serem julgados como mercenários ou manterem-se fiéis à Turquia, lutando na Síria enquanto tiverem apoio, ou “fazendo o serviço” num outro país como a Líbia, para onde, aliás, muitos já foram.

Mais duas questões, sendo que uma delas não é nova e parece não preocupar as consciências: que direito tem a Turquia de estar na Síria a querer impor uma realidade num território que não é o seu? A outra, o que vai acontecer aos civis, desprotegidos, rodeados de combates e ataques aéreos, e sem pontos de fuga? As Nações Unidas, para além das tentativas de diálogo e de calar de armas que nunca são respeitados, pouco poderão fazer. Desde o início da actual ofensiva, em meados de Dezembro, o OSDH dá conta da morte de mais de 350 civis e as Nações Unidas dizem que quase 700.000 pessoas fugiram da região – 100.00 só na última semana. A maioria dos deslocados aglomeram-se junto à fronteira com a Turquia. Idlib, tem tudo para correr mal e o mundo arrisca-se a assistir a mais uma catástrofe.

Pinhal Novo, 11 de Fevereiro de 2020
josé manuel rosendo

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