Baghouz, Síria, Abril de 2019. Nunca faltam armas e munições. Foto: jmr |
As
informações mais recentes dão conta que a Turquia abateu um helicóptero do regime
sírio. Terão morrido 12 soldados sírios. Todos os indicadores são preocupantes.
António Guterres classificou a situação de guerra na Líbia como um escândalo;
devia ter dito o mesmo da guerra na Síria, em particular sobre o que se passa
na região de Idlib.
A
cidade e a região de Idlib, são o último reduto das forças que combatem o Governo sírio.
Para Idlib foram enviados muitos combatentes, familiares e outros civis, que
recusaram ficar nas regiões que as forças de Bashar Al Assad foram
reconquistando durante os últimos meses/anos. Cerca de três milhões de pessoas
vivem (viviam) nesta região que faz fronteira com a Turquia; o Observatório
Sírio dos Direitos Humanos (OSDH) estima que mais de 50.000 combatentes estejam
também na região e entre eles estão vários grupos de inspiração religiosa, com
particular destaque para a Hayat Tahrir al Sham, o braço sírio da Al Qaeda, e o
transfigurado Free Syrian Army, agora um braço de guerrilha da Turquia.
Nada
do que está a acontecer na Síria é verdadeiramente surpreendente. Lembro-me, em
2012, na região de Salma, na montanha de Jabal al Akrad, um comandante local do
então recém-formado Free Syrian Army - FSA (Exército de Livre da Síria),
perante a ausência de qualquer tipo de apoio externo, disse-me que de bom grado
aceitaria armas se a Al Qaeda as oferecesse. Ficou traçado o cenário. Quem
entra numa guerra assim, acaba por ter de esquecer a motivação inicial se tiver
de lutar para salvar a pele. Foi o que aconteceu aos que acreditaram que
seria possível afastar o ditador Bashar Al Assad.
Pelo
meio ficaram as hesitações do Ocidente: apenas promessas e palavras que
deixaram o FSA mal equipado e abandonado à sua sorte. Em 2013, Barack Obama
ainda ameaçou (com o argumento de que estavam a ser utilizadas armas químicas),
mas nunca concretizou as ameaças. Depois, o Estado Islâmico assustou o mundo e
só nesse momento o Ocidente acordou: bombardeamentos aéreos da coligação internacional
com os curdos a fazerem de tropa de choque no terreno. A Rússia, com a certeza
de que os Estados Unidos não iriam intervir, percebeu que tinha caminho livre e
é hoje o principal aliado da Síria, aproveitando ainda para irritar a NATO
enquanto namora a Turquia. Deixando à coligação internacional e aos curdos o
combate ao Estado Islâmico, o regime sírio reorganizou-se o melhor que pode e
aproveitou para, com o argumento de combater terroristas, bombardear e ganhar
terreno às milícias que lhe faziam oposição.
Não
consigo recordar ao certo se foi após a tomada de Raqqa ou de Palmira, mas Bashar
Al Assad anunciou que apenas iria parar quando retomasse o poder de todo o
território sírio; a Rússia deu a entender que talvez não fosse possível. Ainda
não foi, mas parece inevitável que tal venha a acontecer. Assad não vai permitir
que parte do território da Síria seja controlado por outras armas que não as
suas, seja qual for o preço a pagar, esteja a Turquia de acordo ou não. A não ser
que o apoio russo lhe falte, algo pouco provável atendendo à pretensão russa de
expandir influência no Médio Oriente, Assad não vai desistir. Mesmo sabendo que
os Estados Unidos apoiam a “resposta” turca, o Governo sírio vai querer
concretizar a reconquista.
Em
Idlib e arredores, perante o inevitável ataque e avanço das forças de Assad, a
Turquia ameaça retaliar (e tem retaliado) mas terá de ceder. Ou então haverá
uma guerra aberta entre turcos e sírios, sabendo nós que a Rússia há muito
escolheu de que lado está. Fazer previsões num xadrez geopolítico tão complexo
é sempre um enorme risco, mas à Turquia restará levar para a Líbia os
combatentes que, sem outra saída, estão transformados em mercenários às ordens
de Ancara. São muitos os combatentes estrangeiros na região, a quem apenas se
colocam duas possibilidades: renderem-se a Damasco e serem julgados como
mercenários ou manterem-se fiéis à Turquia, lutando na Síria enquanto tiverem
apoio, ou “fazendo o serviço” num outro país como a Líbia, para onde, aliás,
muitos já foram.
Mais duas
questões, sendo que uma delas não é nova e parece não preocupar as consciências: que direito tem a Turquia de estar
na Síria a querer impor uma realidade num território que não é o seu? A outra, o que
vai acontecer aos civis, desprotegidos, rodeados de combates e ataques aéreos,
e sem pontos de fuga? As Nações Unidas, para além das tentativas de diálogo e
de calar de armas que nunca são respeitados, pouco poderão fazer. Desde o
início da actual ofensiva, em meados de Dezembro, o OSDH dá conta da morte de
mais de 350 civis e as Nações Unidas dizem que quase 700.000 pessoas fugiram da
região – 100.00 só na última semana. A maioria dos deslocados aglomeram-se
junto à fronteira com a Turquia. Idlib, tem tudo para correr mal e o mundo
arrisca-se a assistir a mais uma catástrofe.
Pinhal
Novo, 11 de Fevereiro de 2020
josé
manuel rosendo
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