segunda-feira, 14 de dezembro de 2020

Mudança de plataforma deste blogue

Este blogue passou para a plataforma Wordpress e deixou de ser actualizado em blogspot.com. A partir de agora o novo endereço é: meumundominhaaldeia.com. Agradeço que passem por lá e que se tornem seguidores sendo assim alertados para todos os textos publicados. Obrigado. E espero vê-los por lá.

quinta-feira, 15 de outubro de 2020

Cidadão chipado, não!

Poeta Castrado, Não! Serei tudo o que disserem / por inveja ou negação: / cabeçudo dromedário/fogueira de exibição / teorema corolário / poema de mão em mão / lãzudo publicitário / malabarista cabrão. /Serei tudo o que disserem: / Poeta castrado, não!         (José Carlos Ary dos Santos)


Dizem os jornais que a proposta do Governo deu entrada esta noite (de 13 para 14) na Assembleia da República. Pretende o Governo, entre outras coisas, que eu use uma Aplicação de telemóvel, que o Serviço Nacional de Saúde diz servir para identificar potenciais exposições a pessoas infectadas com COVID-19. A Proposta do Governo ameaça-me com uma multa até 500 euros se tal coisa não for respeitada. Poderia desde já perguntar, numa tirada à Eça, então e como posso eu multar o Governo? Mas não, porque a coisa é séria. E espero que no Parlamento, os nossos deputados tenham bom-senso! 

Independentemente de questões práticas como ter (ou não) um smartphone, para poder usar a aplicação, há nesta proposta – seja ou não aprovada – algo trágico e, até, sinistro: não vejo forma de compatibilizar este tipo de soluções com as nossas liberdades e a nossa privacidade, e não vejo como um governo de um partido de esquerda, área da Liberdade (sim, com L grande) por excelência, tem o atrevimento de fazer este tipo de proposta. Ao longo da história, tem sido a direita que, com mais ou menos argumentos, sempre se deu melhor quando se trata de restringir liberdades. Será muito estranho se viermos a assistir a uma inversão de papéis.

A proposta é, obviamente, um abuso e um precedente perigoso. Um dia destes poderão surgir argumentos (e surgem sempre em nome de um bem maior ou de um bem comum...) para sermos todos chipados. Felizmente temos uma Constituição e, se não for suspensa, teremos aí uma defesa. Duvido que alguém consiga encontrar na Lei Fundamental algum tipo de abrigo para uma coisa assim.

Até agora houve equilíbrio nas medidas contra a pandemia. Para além dos que dizem mal de tudo e de todos, os mais sensatos reconhecem que o Governo tem estado bem a enfrentar algo completamente novo. Evidentemente que a pressão aumentou e o Governo sente necessidade de fazer (mais) alguma coisa, mas não pode haver desnorte, nem medo. Esses são estados de alma proibidos a qualquer Governo.

Medidas, evidentemente! Máscara quando não é possível evitar o distanciamento, vamos a isso; Não pode haver jantaradas, aguentamos; responsabilidade, claro, porque ser Livre é isso mesmo. Cidadão chipado, isso é que não!!!

Pinhal Novo, 14 de Outubro de 2020
josé manuel rosendo


terça-feira, 13 de outubro de 2020

As guerras de Erdogan

 

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Recep Tayyip Erdogan, Presidente da Turquia. Foto in https://en.zamanalwsl.net

A Turquia parece que não se cansa de somar conflitos, embora com níveis de intensidade e envolvimento diferentes. Depois do envolvimento na guerra na Síria, dos frequentes bombardeamentos na região curda, no Iraque, da intervenção declarada na guerra na Líbia, o conflito com a Grécia (e Chipre) por causa dos hidrocarbonetos e das fronteiras marítimas no Mediterrâneo, a Turquia também interfere, agora, no conflito no enclave de Nagorno-Karabakh. Evidentemente, ao lado do Azerbaijão, porque para além da pedra-no-sapato que a questão Arménia representa para a Turquia, há a identidade cultural e histórica com o Azerbaijão e ainda essa outra questão à qual a Turquia é hipersensível e que é a perda de território que o enclave representa para Baku. No passado, a Turquia sabe o que é perder território e, daí, o não querer, no presente, nem ouvir falar no Curdistão.

Há quem aponte a Recep Teyyip Erdogan uma tentação de contornos imperiais; outros preferem a justificação tradicional dos inimigos externos necessários para alimentar um espírito nacionalista que favorece Erdogan, já desgastado por tantos anos de poder; outros ainda olham para a intervenção turca em várias frentes como uma forma de marcar uma posição forte a nível regional, quando Irão, Arábia Saudita e até o Egipto, têm o mesmo objectivo. 

O Presidente Erdogan joga em vários tabuleiros e, por vezes, torna-se difícil distinguir, no início de uma determinada jogada estratégica, qual será, de facto, o seu objectivo final. 

Neste momento – e desde há muito – a Turquia mantém bases militares no Curdistão iraquiano e, agora, também no Curdistão sírio; combate o Partido dos Trabalhadores do Curdistão (PKK), na Turquia, e principalmente no Iraque, mas mantém boas relações com o Governo Regional do Curdistão; combate as YPG sírias (Unidades de Protecção Popular), que foram aliadas do ocidente no combate ao Estado Islâmico e também combate o Governo de Bashar Al Assad, mas é aliada de milícias sírias de génese islâmica; a fronteira turco-síria foi uma porta escancarada aos rebeldes que começaram a combater Assad e a tudo o mais que era preciso fazer passar entre os dois países; a Turquia foi também (tal como outros países da região), porta de entrada de petróleo do Estado Islâmico, sendo que de forma nunca oficial e sempre com o argumento de que se tratava de contrabando – aliás, a fronteira turco-iraquiana sempre foi ponto de passagem de petróleo de contrabando; na Líbia, a Turquia aliou-se ao governo de Tripoli (apoiado pela ONU), enviando milícias que tinha na Síria, para combater um outro governo líbio instalado no leste e que tem no Marechal Khalifa Haftar o líder de guerra – um posicionamento que lhe permitiu um acordo com o governo de Tripoli para uma zona económica exclusiva que vai da costa sul da Turquia até à costa da Líbia. Este acordo choca com um outro, assinado entre a Grécia e o Egipto. Aqui chegados, percebemos mais facilmente o que está em jogo no Mediterrâneo oriental.

Em termos geográficos, se a Turquia não quer, ou não pode, expandir influência e poder para ocidente – a União Europeia diz que as conversas com Ancara para uma adesão à União Europeia, estão em “ponto-morto” – para oriente também não o pode fazer, porque aí encontra o poder da Federação Russa e, já se viu, desde o que aconteceu na Geórgia e na Ucrânia, Moscovo não está para brincadeiras e não vai permitir veleidades na sua vizinhança próxima. Mesmo agora, no conflito de Nagorno-Karabakh, foi em Moscovo que Azerbaijão e Arménia negociaram o recente (e já violado) cessar-fogo. Vladimir Putin já mostrou quem manda naquela região. Assim sendo, resta à Turquia tentar retomar para a sua esfera de influência: a região do antigo Império Otomano. 

É certo que passou um século desde que Istambul deixou de controlar meio-mundo e também é certo que, entretanto, outros poderes disputam o domínio da região, mas será aí que Erdogan terá terreno para fazer caminho. Aliás, desde a chamada Primavera Árabe que a Turquia não tem feito outra coisa. E outra coisa que nunca deixou de fazer foi a de ser um problema para a NATO, aliança de que é um dos mais poderosos membros: o actual conflito com a Grécia – também membro da NATO, à qual ambos os países aderiram em 1952 – é apenas o exemplo mais recente.

Num Médio Oriente em que a presença dos Estados Unidos é cada vez mais reduzida e em que outros actores tentam conquistar terreno, a tarefa da Turquia não vai ser fácil: o Irão, atacado em várias frentes, tenta solidificar influência em Bagdad, dá sinais de não facilitar uma solução “ocidental” no Líbano e mantém-se firme no apoio a Assad, na Síria, para além de estar a dar cabo dos nervos a Riad e ao “ocidente”, no Iémen; a Arábia Saudita, rendida aos ditames de Washington – assim obriga o affaire Kashoghi – e a fazer asneiras sucessivas na guerra no Iémen, tenta manter o status quo e faz tudo o que possa prejudicar o Irão; o Egipto, está mais preocupado com a Líbia, com o Sinai e também com a situação interna – apesar da “mão-de-ferro” continuam a surgir manifestações contra o regime. Aliás, em relação ao Egipto, o SIPRI, Instituto de Investigação sueco que analisa, entre outras coisas, a compra/venda de armas em todo o mundo, torce o nariz perante os dados de 2019, ao ver o Egipto surgir em nono lugar entre os catorze países do Médio Oriente e Norte de África (MENA), sendo que o Egipto tem o segundo maior efectivo militar no conjunto destes países. Em termos de despesa militar em 2019, a Turquia surge em terceiro lugar, apenas ultrapassada por Arábia Saudita e Israel.

A mesma Turquia, membro da NATO, que compra o sistema de defesa de mísseis S-400 à Rússia, e que por causa disso é afastada do programa dos caças norte-americanos F-35, é a mesma Turquia que na Líbia e na Síria está em campo oposto à Rússia.

Para além das questões consideradas de interesse nacional e que motivam a estratégia de cada país, vejamos os líderes que disputam a influência regional ou estão envolvidos nos conflitos: Erdogan (Turquia); Al Sissi (Egipto); Vladimir Putin (Rússia); Mohammad Bin Salman (Arábia Saudita) e Ali Khamenei (Irão). Presumo que em nenhum destes países possamos dizer que existe uma verdadeira democracia e, por muito que não queiramos, é com estes dados que a situação tem de ser analisada.

Com tudo o que acima é referido, convém sublinhar que na tradicional anarquia das Relações Internacionais, não há bons nem maus e a Turquia faz o que todos os países fazem quando consideram que isso é importante para a sua defesa e segurança, assim tenham oportunidade e meios: tenta conquistar poder e influência, seja através das armas ou através de alianças momentâneas que lhe garantam presença e uma palavra a dizer quando se tomam as grandes decisões. Falta saber se a Turquia terá os meios, os aliados, e o fôlego, para vencer em tantas frentes de batalha. Mas que de há muito é um caso de estudo na política internacional, disso parece que ninguém tem dúvidas.

Pinhal Novo, 13 de Outubro de 2020

josé manuel rosendo 



domingo, 27 de setembro de 2020

África: quando o que é mau pode ficar ainda pior.

 

Testes em Hospital de Adis Abeba, Etiópia. Foto em www.africa.cgtn.com, de Xinhua/Michael Tewelde


Existem muitos dados que mostram a dimensão dos efeitos da pandemia e a devastação que atinge as pessoas em países mais vulneráveis. Numa investigação recente em 14 países, 7 dos quais africanos, o Conselho Norueguês para os Refugiados indica que três quartos das 1.400 pessoas questionadas referem uma pesada degradação da sua situação: 77% perderam o emprego ou viram os salários reduzidos; 70% reduziram o número de refeições e 73% dizem que as dificuldades financeiras travam o envio das crianças para a escola. O secretário-geral desta ONG, Jan Egeland, sublinha que as comunidades mais vulneráveis do mundo estão numa perigosa espiral descendente.


Vários líderes africanos voltaram a pedir esta semana, na Assembleia Geral da ONU, mais solidariedade internacional e que seja perdoada a dívida pública dos respectivos países. Antes do G20 ter suspendido o reembolso destas dívidas até ao fim do ano, a União Africana já apelara para que essa suspensão vigorasse até ao final de 2021, mas o Presidente da Nigéria sublinhou que uma simples moratória não é suficiente face aos desafios existentes e aos que a pandemia veio acrescentar. Os líderes africanos alertam que todos os esforços de desenvolvimento económico da última década podem ficar reduzidos a pó.

Apesar de os números conhecidos (cerca de 35.000 mortos e menos de dois milhões de casos de covid-19) mostrarem que África é um dos continentes menos afectados, a fragilidade das economias e os vários conflitos que tocam diversas zonas do continente, potenciam os danos que a pandemia pode provocar.

Para se ter uma ideia menos abstracta da fragilidade africana, o mais recente (Junho de 2020) relatório da Organização Mundial da Saúde, sobre África, mostra que apenas 51% das unidades de saúde na África subsaariana têm serviços básicos de acesso à água; 47% das escolas não têm água corrente e apenas 21% têm água e sabão para a lavagem das mãos.

Os países africanos precisam de libertar recursos para acudirem ao combate à pandemia, bem como ao combate a outras doenças como a malária e o VIH. Não ter recursos para estas necessidades, nem para manter a funcionar economias que garantam os mínimos de sobrevivência, pode ser uma mistura explosiva para um desastre que se está a anunciar.

A ONU já veio defender o congelamento da dívida em todo o continente africano e publicou um relatório onde afirma que são necessários cerca de 169 mil milhões de euros para ultrapassar as dificuldades. Esta é a “receita” imediata, mas é bom ter em conta a incerteza relativamente à dimensão da pandemia no continente: reduzido número de testes, desconhecimento da causa de muitas mortes, saneamento muito precário, grandes limitações de acompanhamento médico e dificuldades na aplicação de medidas de distanciamento.

No início de Setembro, o Presidente do Gana defendeu uma nova arquitectura financeira mundial e avisou que a catástrofe se assemelha à do final da segunda Guerra Mundial. O FMI advertiu que, a sul do Sahara, o PIB possa ser menos 243 mil milhões de dólares em relação aos valores projectados em Outubro de 2019 e que 39 milhões de pessoas podem cair na pobreza extrema.

A solidariedade deve ser permanente, mas há agora uma oportunidade para que o mundo, e em particular a União Europeia, proporcionem ao continente africano o apoio necessário para combater a pandemia. Não por uma questão de redenção face a tempos passados, mas porque o futuro mais promissor, para europeus e africanos, passa por uma relação útil aos dois continentes e porque, principalmente, África precisa dessa ajuda.

É certo que África também terá de se saber ajudar, reduzindo os níveis de corrupção e resolvendo com diálogo o que tem tentado resolver com a força das armas. Também é certo que será difícil dizer como a União Europeia poderá ajudar países como a Líbia – há uma década em guerra civil – ou a Somália, país onde o Estado é uma miragem, já para não falar em toda a região do Sahel. Mas haverá certamente uma forma de fazer chegar ajuda e garantir que não será desbaratada. África é já ali.

Pinhal Novo, 27 de Setembro de 2020

josé manuel rosendo


domingo, 13 de setembro de 2020

Palestina, e agora?

        Líderes do Bahrein e dos Emirados Árabes Unidos. Fotografia: newsbeezer.com

Primeiro, os Emirados Árabes Unidos, agora o Bahrein. No espaço de um mês, dois países árabes normalizaram relações com Israel, depois de dois outros, Egipto (1979) e Jordânia (1994) terem assinados tratados de paz com o Estado hebraico. Em contextos diferentes, certo é que são quatro os países árabes que se relacionam normalmente com Israel. Após o anúncio da normalização das relações entre Israel e os Emirados, a Administração norte-americana apressou-se a dizer que outros países árabes se seguiriam e assim aconteceu. Falta saber qual se vai seguir.

 

Alguns países árabes, nem pensar, como é o caso do Líbano, Síria, Iémen ou Iraque, países inimigos de Israel; outros que por ausência de um verdadeiro Estado ficam desde logo descartados, como é o caso da Somália e da Líbia; mas outros há que talvez possam seguir o caminho dos quatro que já acederam à vontade de Israel e dos Estados Unidos. 

 

A atenção dos Estados Unidos e de Israel parece centrada em ganhar terreno nas monarquias do Golfo Pérsico, porque na outra margem está o Irão. O argumento de que o grande país xiita é uma ameaça aos pequenos países do Golfo, funciona na perfeição, obviamente com o acordo da Arábia Saudita, que apesar de ser a guardiã dos lugares santos do Islão, não hesitará em abraçar Israel, embora não lhe convenha ser dos primeiros. O Irão é o elo que – involuntariamente – ajuda a construir esta teia de interesse comum, mesmo entre protagonistas com divergências históricas. Outro assunto é a presença norte-americana no Golfo e o negócio das armas, com Washington a assinar contratos dos mais valiosos de sempre em exportações para as monarquias dos petrodólares.

 

Assim sendo, no Golfo, para mais acordos de normalização podem estar países como Omã (país que tenta a neutralidade e é próximo do Irão e também dos Estados Unidos) e o Koweit (que apesar da proximidade com Washington sempre tem rejeitado a normalização com Israel). Resta o Qatar, forte apoiante da Faixa de Gaza (e do Hamas), vítima de um bloqueio económico por ter relações com o Irão, mas é lá que – à hora a que escrevo – decorrem as negociações entre Taliban e Governo do Afeganistão, com a presença de Mike Pompeo. O Qatar não dará esse passo com Israel.

 

Há ainda outras possibilidades que têm sido referidas como é o caso de Marrocos ou do Sudão, países que poderiam receber como moeda de troca a concretização de algumas aspirações que dependem da real politik a nível internacional.

 

Sendo que o caminho da paz é sempre o desejável, essa paz apenas será sustentável se houver dignidade no calar das armas e no aperto de mão ao inimigo. E a revelação que é feita neste caminho é a de que alguns líderes árabes, mais preocupados com o próprio poder e em manter uma relação com países poderosos, sacrificam uma causa que tanto os indignou e abandonam o campo de batalha sem honra. Não por terem recusado a via das armas, mas porque fica pelo caminho a aspiração dos palestinianos a terem um Estado. 


A “solução dois Estados” de que tanto se fala é cada vez mais uma miragem. A causa palestiniana está a definhar e a aproximar-se da extinção, vítima também da própria divisão interna, de uma Liga Árabe que não quer ou não sabe defender os palestinianos, de Governos em Israel e nos Estados Unidos que nunca foram tão à direita e, logo, preferem impor a negociar seja o que for, e por fim, porque são vítimas de uma outra guerra, neste caso com o Irão, declarado inimigo dos Estados Unidos, Israel e monarquias do Golfo. A Liga Árabe deu um sinal claro de divisão quando, na última reunião, recusou aprovar a condenação da normalização de relações de Israel com os Emirados Árabes Unidos, apresentada pela Palestina.


Estamos perante a batalha perfeita para derrotar a causa palestiniana, sem necessidade de disparar um único tiro. A “Arte da Guerra”, de Sun Tzu, em toda a sua plenitude.

 

Mas desta machadada na causa palestiniana, deve ficar também registada a derrota das Nações Unidas. Não há tema que tenha consumido tantas horas de trabalho desde que a ONU nasceu, como o dos acordos israelo-árabes. Produziram-se Resoluções sucessivamente desrespeitadas, mas nunca houve sanções contra ninguém. Tem de ser dito que a construção das  condições que inviabilizam a criação de um Estado da Palestina, é uma derrota estrondosa das Nações Unidas e deixa a nu a incapacidade de regulação de conflitos. Talvez um dia destes, talvez António Guterres, rode a chave pela última vez. Pelo menos na ONU tal como a conhecemos.

 

Pinhal Novo, 13 de Setembro de 2020

josé Manuel rosendo

domingo, 6 de setembro de 2020

Napoleão esteve em Beirute?

Emmanuel Macron, esteve pela segunda vez na capital libanesa desde a explosão no porto de Beirute. O Líbano está em cacos, devido a essa explosão, mas também devido a uma crise política, social e económica, com raízes profundas no sistema político, na presença de mais de um milhão de refugiados sírios e na corrupção transversal a todos os sectores da sociedade. Os libaneses conhecem essa realidade melhor do que ninguém, sofrem com ela, pagam um preço elevadíssimo e desde Outubro do ano passado que saíram à rua exigindo mudanças.

 

Perante este cenário e com as imagens da explosão ainda frescas na memória, muitos entendem que a mudança é agora ou nunca. O Presidente francês é um deles e foi a Beirute dizer que esta é a última oportunidade para o sistema libanês e logo aí entrou em contradição, porque disse também que acompanha a pressão que os libaneses fazem para convencer a classe política a mudar de atitude. Ora, não é possível dar uma última oportunidade ao sistema e apoiar quem quer mudar o sistema. Uma das propostas de Macron aponta para eleições dentro de um ano, quando a “rua” quer mudanças, ontem. Macron passeava em Beirute e já a “rua” o acusava de estar a falar com a classe política libanesa corrupta, em vez de estar a falar com os libaneses que querem uma mudança radical no Líbano. Segunda acusação feita pela “rua”: Macron foi a Beirute apenas para defender os interesses franceses.

 

Emmanuel Macron chegou a Beirute já de noite e preparou o terreno com uma visita a Fairuz, a diva da canção árabe (a Amália dos libaneses, para facilitar a comparação). Uma espécie de tributo ao povo, deixando os políticos para segundo plano. A excepção foi o antigo primeiro-ministro (sunita) Saad Hariri, um encontro logo a seguir ao de Fairuz.

No segundo dia, Macron esteve nas cerimónias do centenário do “Grande Líbano”, foi ao porto, falou com ONG’s e com representantes da ONU, com associações civis e com empresas privadas envolvidas na reconstrução do porto, e só depois foi recebido no Palácio Presidencial, para o indispensável almoço oficial. No mesmo dia, à tarde, falou com o Patriarca Maronita e, por fim, a fechar o programa, encontrou-se com “os principais dirigentes políticos”. O próprio programa oficial espelha a pressão que Paris faz chegar a Beirute.

 

O "programa de governo"


Qual ponta de lança do FMI, o presidente francês levou a Beirute um conjunto de exigências – a expressão não é exagerada, tendo em conta o que se ouviu de Macron – que “encostam o Líbano à parede”. Assim uma espécie de “não há alternativa” com que, em tempos idos, fomos confrontados em Portugal, e sabemos agora que não era bem assim.


Antes de Macron anunciar as medidas que podem “salvar” o Líbano, a embaixada de França fez chegar aos principais líderes políticos libaneses um projecto de programa para o novo governo. Para além de medidas sobre a ajuda imediata ao combate à pandemia e à reconstrução do porto, a proposta francesa impõe a retoma imediata das negociações com o FMI e aprovação de medidas solicitadas pelo credor (FMI), incluindo uma lei de controlo de capitais e uma auditoria ao Banco Central; reformas no sector da energia, que incluem um calendário para o aumento do preço da electricidade; o Parlamento deve aprovar uma Lei sobre controlo de capitais que terá de ser aprovada pelo FMI. Há ainda um conjunto de normas de combate à corrupção, nomeações para sectores estratégicos, reforma da contratação pública e, finalmente, eleições dentro de um ano, depois de alterada a lei eleitoral. Sobre este ponto é exigido que a nova Lei faça a plena inclusão da sociedade civil, permitindo que o Parlamento seja mais representativo da sociedade. Não é dito de forma explícita, mas a proposta significa uma alteração da divisão de poderes – o pacto político – que rege o Líbano desde há décadas. Macron revelou um conjunto de tópicos e indicações que são um verdadeiro programa de governo, para um Primeiro-Ministro, Moustapha Adib, ainda a formar gabinete e de cuja nomeação a “rua” libanesa diz ser um exemplo da interferência estrangeira no Líbano. Moustapha Adib saiu de embaixador libanês na Alemanha, para assumir a liderança do próximo governo libanês.

 

Ao conjunto de exigências que devem ser cumpridas pelo novo governo, Emmanuel Macron acrescentou que ninguém passa cheques em branco e que não vai ser dada carta-branca ao Líbano. Para haver dinheiro, terá de haver mudanças!

 

Por muitos cedros que Emmanuel Macron plante no Líbano, não é difícil imaginar como o “estômago” de alguns libaneses deve ter ficado às voltas. Um presidente estrangeiro – com toda o histórico entre França e o Líbano – a dizer aos libaneses (quase a espetar-lhes o dedo no nariz) o que têm de fazer.

 

A indecência só não foi maior porque deve ter havido alguém com um pingo de bom-senso que colocou Macron a fazer este discurso na residência do embaixador francês em Beirute.

 

Para já, e quanto à questão mais sensível (a divisão de cargos políticos entre xiitas, sunitas e cristãos, e as quotas de lugares no Parlamento), o Presidente da República, cristão, Michel Aoun, defende que o Líbano deve ser um Estado laico; o líder do movimento xiita Amal e também presidente do Parlamento, Nabih Berri, defende a mudança do sistema confessional; o Hezbollah diz que está pronto a discutir um novo pacto político, mas Hassan Nasrallah colocou como condição ser um diálogo libanês e se for essa a vontade de todas as forças políticas. Quanto aos sunitas, Hariri é um aliado francês.

 

É perfeitamente compreensível, por questões de geoestratégia, que Macron queira uma forte influencia francesa no Líbano e no Médio Oriente, mas os tiques de arrogância que transparecem do discurso e da atitude do líder francês em Beirute, podem entrar em choque com a dignidade dos libaneses.

 

Há coisas mais importantes do que ter “uma cama e uma manjedoura”, porque as pessoas não são animais, e a dignidade é uma delas. Talvez Beirute ensine esse conceito a Macron.

 

Macron promete voltar ao Líbano em Dezembro.

 

Pinhal Novo, 6 de Setembro de 2020

josé manuel rosendo

 


 

segunda-feira, 24 de agosto de 2020

O porto de Beirute e os lares de idosos em Portugal

 

A Covid 19 está para os lares de idosos, em Portugal, como a explosão no porto de Beirute está para o Líbano. Não, obviamente, ao nível da destruição e morte provocadas, mas porque, tendo em conta as diferenças, foi necessário um “abanão” forte, e trágico, para que as atenções se fixassem em problemas muito antigos. Apenas agora o mundo ficou focado em Beirute e no Líbano, quando a enorme crise que atinge o país tem vindo a dar sinais na última década (desde o início da guerra na Síria) e de forma muito clara – grandes manifestações de rua – desde Outubro do ano passado; apenas agora Portugal acordou para um problema de décadas que é o funcionamento dos lares de idosos. Situações que nada têm a ver uma com a outra, mas que coincidem na forma como os problemas são ignorados ou, se preferirmos, mal resolvidos, porque outros interesses se levantam. Quando se ignoram problemas importantes pode ser meio caminho andado para a tragédia.

 

Nos últimos dias (havia necessidade?) o Primeiro-Ministro (PM), António Costa, desafiou os que perderam o trabalho no sector do turismo por causa da pandemia a procurarem emprego na área dos lares e das instituições sociais. A frase de António Costa faz lembrar uma outra do ex-PM, Passos Coelho, quando disse que o desemprego poderia ser uma oportunidade para mudar de vida. Comparar governantes é a parte que menos me interessa porque detesto a trica política. Gosto de Política (assim, com «P» grande) e nesse sentido o importante é olhar para os lares de idosos e assumir que é uma vergonha nacional. É algo a que o Estado, todos os Governos, nunca olharam com verdadeira vontade de mudança, de modo a introduzir políticas que nos proporcionem um final de vida digno.

 

A tragédia de 18 mortos no Lar de Reguengos de Monsaraz é “apenas” a cereja no topo de um bolo vergonhoso e de uma situação – tal como o nitrato de amónio há anos guardado no porto de Beirute – que os governantes sempre “empurraram com a barriga”. É certo que algumas situações de Lares ilegais foram resolvidas com o respectivo encerramento, mas também é verdade que essas situações só tinham lugar porque não havia resposta do Estado e a sociedade precisava de soluções. Quem já teve necessidade de colocar um familiar num lar de idosos conhece perfeitamente a realidade e a oferta de serviços. Havia, não sei se ainda há, “lares” em que bastava dar dois passos porta adentro para imediatamente ser obrigado a recuar, tal o cheiro que de lá vinha.

 

Depois há os outros. Legais e com condições mínimas. Também existem outros, com boas condições, alguns até de luxo, mas a que apenas uma pequena parte da população consegue aceder. Há lares das IPSS, das Misericórdias, das Fundações e de outras instituições. Generalizar será sem dúvida um exercício perigoso e até injusto para algumas instituições, mas esta é uma área em que a realidade veio demonstrar que precisamos de um banho de transparência. Desde logo porque aqueles que usufruem dos serviços prestados, na maioria dos casos, já não têm consciência da realidade e, por acréscimo, não se queixam do tratamento recebido. E, já agora, a maioria deles deixou de votar. Aqueles que, por motivos de saúde ou outros, estão indefesos, deveriam merecer ainda maior consideração e respeito.

 

É importante – aproveitando a visibilidade e atenção que o problema recebe – fazer um levantamento, um inquérito nacional, à situação das instituições que acolhem Idosos. Mas um inquérito a sério, e não apenas pedindo informação a essas instituições, porque se assim for é tempo perdido e dinheiro mal gasto. É importante saber tudo: do número de idosos ao número de Instituições; do que pagam os utentes ao que é pago pela Segurança Social; dos trabalhadores qualificados aos indiferenciados e ao número de trabalhadores que têm passado por cada instituição e em que circunstâncias; qual é o património das instituições e como é que ele se tem alterado ao longo do tempo. Obviamente que a lista do que é preciso saber não se fica por aqui. Mas é mesmo preciso saber, de forma transparente, o que se passa nos lares. Não precisamos de power-points bonitos, precisamos de informação credível e rigorosa. E a necessidade de se saber o que se passa não está associada a qualquer suspeita nem pretende insinuar seja o que for: é apenas a necessidade de saber as linhas com que nos cosemos.

 

Infelizmente, em certos aspectos, Portugal é um país de fachada. E a estatística é determinante no discurso político. Não há responsável político que prescinda de estatística a preceito, para responder às críticas. É prática habitual na nossa vida política que um qualquer ministro, depois de seis meses em funções, diga da sua própria área que tudo corre às mil maravilhas, mesmo que tenha dito cobras e lagartos enquanto foi oposição e até chegar ao Governo. E esse é também um problema dos lares: a estatística e os relatórios, onde tudo parece estar sempre bem e a melhorar.

 

Para contrariar a estatística e as aparências há uma história que me foi contada por um amigo, que teve a mãe 10 anos num lar de idosos. A senhora já não conseguia alimentar-se sozinha, precisando de apoio no momento das refeições, com a necessidade acrescida dos alimentos terem de ser partidos em pedaços muito pequenos porque essa capacidade de mastigar também estava diminuída. Numa visita fora das horas habituais, esse meu amigo deu com um prato de quartos de maçã pousado na mesa de cabeceira... numa outra visita igualmente fora de horas, estava o prato do almoço igualmente pousado na mesa de cabeceira. Em nenhum deles a mãe do meu amigo havia tocado; em nenhum deles alguém havia pegado para dar a refeição à idosa. Mas apesar disso, o mesmo lar ostentava nas paredes, para quem quisesse ver, as ementas variadas e os respectivos nutrientes que as compunham. Ementas perfeitas, diga-se, mas que só eram perfeitas no papel, porque muitas refeições nunca chegavam ao estômago dos idosos. A forma e a estatística, traídas pela realidade. E quanto a levantar esta idosa da cama, para a sentar numa cadeira, mesmo que apenas para olhar uma parede em frente, por vezes não havia trabalhadores suficientes. O meu amigo confirma: não havia!!!

 

Voltando ao desafio lançado por António Costa, e talvez sem o saber, o PM toca numa situação que contribui decisivamente para o deficiente funcionamento de alguns lares de idosos. Tratar de idosos com múltiplas carências exige uma vontade muito especial, porque é uma área muito difícil. É um trabalho pesado que exige dedicação, coração e alma. Exige uma formação focada na necessidade do conforto que deve ser dado a quem está a chegar ao fim. O que tem acontecido – voltamos à história que o meu amigo me contou – é muitos destes lares recorrerem a mão de obra não qualificada, e barata, enviada pelo Instituto de Emprego e Formação Profissional (ao abrigo de Programas que permitem às Instituições terem trabalhadores com um custo muito abaixo do que teriam de pagar a outros contratados directamente), e que atinge, por vezes, uma rotação que torna quase impossível fixar a cara de quem lá trabalha. Um lar de idosos não é uma linha de montagem industrial e os idosos precisam de ser acompanhados e tratados por alguém com quem estabeleçam algum tipo de ligação afectiva. Se a proposta do PM fizer caminho – mesmo com a respectiva formação profissional – há uma grande probabilidade de termos pessoas contrariadas a trabalhar nos lares – o que acontecia com muitas das que eram enviadas pelo IEFP – sem vocação e que se escapam na primeira oportunidade.

 

É importante sabermos o que correu mal no Lar de Reguengos de Monsaraz – claro que é – mas não para “pendurar” alguém na praça pública, nem para que sejam retirados dividendos políticos por cima dos cadáveres dos que morreram. Se alguém deixou de cumprir as funções a que está obrigado terá de responder por isso, mas o mais importante depois de se saber o que aconteceu em Reguengos e noutros lares do país, é fazer mudanças que evitem a repetição destes casos e que permitam um tratamento digno a quem lá está.

 

Se não soubermos tratar os nossos velhos – e sempre refiro o termo com carinho, até porque também eu gostaria de chegar a velho – esse  será um sinal do fraco país que vamos construindo e que em certo sentido já somos.

 

Pinhal Novo, 24 de Agosto de 2020

josé manuel rosendo