Para “início de conversa”: ligo a Al Jazeera e oiço “100
mortos no sábado, 85 este domingo”; há informação confirmada da utilização de
bombas de desfragmentação; as Nações Unidas alertam para mais de um milhão de pessoas
sem água. Tudo isto em Aleppo. Quem pensa que já é suficientemente mau, prepare-se
para que seja pior.
A declaração do embaixador sírio nas Nações Unidas, Bashar Jaafari, avisando que em Outubro não haverá negociações, parece indiciar que está
encontrada a prioridade do regime sírio. Depois de mais um cessar-fogo que não
deu em nada, a não ser no redobrar das ofensivas do governo de Damasco, as
grandes potências limitam-se a trocar acusações e a mostrar-nos o que de pior
tem a diplomacia: hipocrisia e total indiferença – não adianta dizerem que
estão preocupados, estamos todos… - com o que se passa no terreno, com
populações civis e cidades a serem bombardeadas. O regime sírio considera que
tem capacidade e apoios para reconquistar territórios, e não precisa de
negociar. E está com um olho em Mossul, no Iraque, porque da realidade
iraquiana é importante, com o Estado Islâmico a ser o elemento que pode
influenciar toda a evolução. O aliado Irão, também aliado do governo iraquiano,
sabe bem o que está a ser preparado no Iraque, para reconquistar Mossul ao
Estado Islâmico. A mensagem certamente já chegou a Damasco: esperem, para ver o
que dá o ataque a Mossul.
Neste momento, o silêncio da comunidade internacional em
relação à Síria é bárbaro. De nada adianta falar e nada fazer. Estamos cheios
de declarações mais ou menos inflamadas contra a guerra na Síria. É vergonhoso.
Eu sinto vergonha, uma vergonha alheia que nem por isso deixa de ser
terrivelmente desconfortável.
A leitura que é possível fazer, com os dados
que são conhecidos, é a de que apesar de Bashar al Assad manter o discurso de
querer recuperar o controlo total do país, isso não vai acontecer, nem o
presidente sírio quer. De nada lhe serve ter território que apenas dá problemas
e reivindica recursos. Assad quer ficar com as províncias alauitas junto ao
Mediterrâneo e, de preferência, associar-lhes, a oeste, o corredor norte-sul
onde estão as principais cidades do país: Aleppo (antigo coração da economia
síria), Idlib, Homs, Damasco e Daraa. Afinal, apenas ficam de fora as cidades
curdas (inevitáveis locais de conflito se a Síria permanecesse unida sob o
controlo de Assad) e as cidades de Raqqa, Palmira e Deir Ezzor. O resto é deserto,
com excepção do vale do Eufrates. O petróleo nas zonas mais encostadas ao
Iraque não tem grande expressão. É isto que Bashar al Assad quer, uma vez que
não pode ter tudo. O pragmatismo de quem quer continuar a ser presidente obriga
a deixar de lado o orgulho ferido de quem perde território.
Neste momento, a França já enviou o porta-aviões Charles de
Gaulle para o Mediterrâneo; a Rússia também enviou o porta-aviões Amiral
Kouznetsov para fazer companhia a 10 navios de guerra e submarinos. O
Mediterrâneo está transformado numa base militar com rampas de lançamento que
podem atingir qualquer local do Médio Oriente e todas as principais potências
envolvidas na Síria e no Iraque têm militares no terreno.
Os Estados Unidos já disseram que a ofensiva para
reconquistar Mossul pode começar em Outubro; o governo britânico disse que a
ofensiva começa nas próximas semanas; o governo iraquiano tem dito o mesmo e as
tropas de Bagdad juntamente com as milícias xiitas iranianas, e também
iraquianas, e algumas tribos sunitas, estão a avançar no terreno. O Primeiro-ministro
iraquiano, Al Abadi, tem-se desdobrado em contactos internacionais (incluindo a
Turquia e os líderes curdos iraquianos) para preparar o terreno. Um ataque a
Mossul levanta imensas preocupações humanitárias e não se sabe a resistência
que o Estado Islâmico poderá opor. O custo em vidas humanas poderá ser
terrível, inclusivamente entre os civis.
Dependendo de como a ofensiva venha a ser planeada, pode ser
deixado um corredor de fuga para os combatentes do Estado Islâmico, e esse
corredor pode conduzir a Raqqa, na Síria. Mas também pode acontecer que assim
não seja e que Mossul seja cercada. E até pode acontecer que sejam planeadas
ofensivas simultâneas a Mossul e a Raqqa. É impossível saber o que vai na
cabeça dos estrategas militares e quais são os objectivos políticos imediatos
ou a longo prazo.
Nesta complexa realidade, o Irão pode assumir um papel de
relevo: os iranianos estão de bem com os Estados Unidos em relação ao Iraque,
cujo governo tem telefone directo com Teerão, e estão de bem com a Rússia no
apoio a Bashar al Assad. Podem acabar por ser o pivot que coordene acções
atendendo ao mau momento Estados Unidos-Rússia. Seria a grande vitória de
Teerão.
Mas, quanto à Síria, o cenário que neste momento parece mais
agradável para Bashar al Assad e respectivos aliados é o de conquistar as
grandes cidades a norte de Damasco, esquecer o deserto e os curdos do norte, e
deixar à comunidade internacional e à oposição moderada a tarefa de combater o
Estado Islâmico eventualmente acantonado em Raqqa (capital do califado) quando
for expulso de Mossul. Falta saber o que poderá fazer o Exército Livre da Síria
e a enorme miríade de grupos armados para contrariar esta estratégia de Assad e
dos aliados russos.
Uma última nota: a Rússia poderá estar para uma “nova
Síria”, como os Estados Unidos estão para Israel, o que não desagrada nada a
Vladimir Putin.
É complicado? É! Mas é impossível tornar fácil uma realidade
que envolve tantos interesses e protagonistas. Certo é que as nuvens negras
(mais negras do que as que pairam sobre a região) estão a caminho e tudo indica
que vai ser muito feio.
Pinhal Novo, 25 de Setembro de 2016
josé manuel rosendo
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