segunda-feira, 26 de setembro de 2016

Outubro (vai ser) negro na Síria


Para “início de conversa”: ligo a Al Jazeera e oiço “100 mortos no sábado, 85 este domingo”; há informação confirmada da utilização de bombas de desfragmentação; as Nações Unidas alertam para mais de um milhão de pessoas sem água. Tudo isto em Aleppo. Quem pensa que já é suficientemente mau, prepare-se para que seja pior.

A declaração do embaixador sírio nas Nações Unidas, Bashar Jaafari, avisando que em Outubro não haverá negociações, parece indiciar que está encontrada a prioridade do regime sírio. Depois de mais um cessar-fogo que não deu em nada, a não ser no redobrar das ofensivas do governo de Damasco, as grandes potências limitam-se a trocar acusações e a mostrar-nos o que de pior tem a diplomacia: hipocrisia e total indiferença – não adianta dizerem que estão preocupados, estamos todos… - com o que se passa no terreno, com populações civis e cidades a serem bombardeadas. O regime sírio considera que tem capacidade e apoios para reconquistar territórios, e não precisa de negociar. E está com um olho em Mossul, no Iraque, porque da realidade iraquiana é importante, com o Estado Islâmico a ser o elemento que pode influenciar toda a evolução. O aliado Irão, também aliado do governo iraquiano, sabe bem o que está a ser preparado no Iraque, para reconquistar Mossul ao Estado Islâmico. A mensagem certamente já chegou a Damasco: esperem, para ver o que dá o ataque a Mossul.

Neste momento, o silêncio da comunidade internacional em relação à Síria é bárbaro. De nada adianta falar e nada fazer. Estamos cheios de declarações mais ou menos inflamadas contra a guerra na Síria. É vergonhoso. Eu sinto vergonha, uma vergonha alheia que nem por isso deixa de ser terrivelmente desconfortável.

A leitura que é possível fazer, com os dados que são conhecidos, é a de que apesar de Bashar al Assad manter o discurso de querer recuperar o controlo total do país, isso não vai acontecer, nem o presidente sírio quer. De nada lhe serve ter território que apenas dá problemas e reivindica recursos. Assad quer ficar com as províncias alauitas junto ao Mediterrâneo e, de preferência, associar-lhes, a oeste, o corredor norte-sul onde estão as principais cidades do país: Aleppo (antigo coração da economia síria), Idlib, Homs, Damasco e Daraa. Afinal, apenas ficam de fora as cidades curdas (inevitáveis locais de conflito se a Síria permanecesse unida sob o controlo de Assad) e as cidades de Raqqa, Palmira e Deir Ezzor. O resto é deserto, com excepção do vale do Eufrates. O petróleo nas zonas mais encostadas ao Iraque não tem grande expressão. É isto que Bashar al Assad quer, uma vez que não pode ter tudo. O pragmatismo de quem quer continuar a ser presidente obriga a deixar de lado o orgulho ferido de quem perde território.

Neste momento, a França já enviou o porta-aviões Charles de Gaulle para o Mediterrâneo; a Rússia também enviou o porta-aviões Amiral Kouznetsov para fazer companhia a 10 navios de guerra e submarinos. O Mediterrâneo está transformado numa base militar com rampas de lançamento que podem atingir qualquer local do Médio Oriente e todas as principais potências envolvidas na Síria e no Iraque têm militares no terreno.

Os Estados Unidos já disseram que a ofensiva para reconquistar Mossul pode começar em Outubro; o governo britânico disse que a ofensiva começa nas próximas semanas; o governo iraquiano tem dito o mesmo e as tropas de Bagdad juntamente com as milícias xiitas iranianas, e também iraquianas, e algumas tribos sunitas, estão a avançar no terreno. O Primeiro-ministro iraquiano, Al Abadi, tem-se desdobrado em contactos internacionais (incluindo a Turquia e os líderes curdos iraquianos) para preparar o terreno. Um ataque a Mossul levanta imensas preocupações humanitárias e não se sabe a resistência que o Estado Islâmico poderá opor. O custo em vidas humanas poderá ser terrível, inclusivamente entre os civis.

Dependendo de como a ofensiva venha a ser planeada, pode ser deixado um corredor de fuga para os combatentes do Estado Islâmico, e esse corredor pode conduzir a Raqqa, na Síria. Mas também pode acontecer que assim não seja e que Mossul seja cercada. E até pode acontecer que sejam planeadas ofensivas simultâneas a Mossul e a Raqqa. É impossível saber o que vai na cabeça dos estrategas militares e quais são os objectivos políticos imediatos ou a longo prazo.

Nesta complexa realidade, o Irão pode assumir um papel de relevo: os iranianos estão de bem com os Estados Unidos em relação ao Iraque, cujo governo tem telefone directo com Teerão, e estão de bem com a Rússia no apoio a Bashar al Assad. Podem acabar por ser o pivot que coordene acções atendendo ao mau momento Estados Unidos-Rússia. Seria a grande vitória de Teerão.

Mas, quanto à Síria, o cenário que neste momento parece mais agradável para Bashar al Assad e respectivos aliados é o de conquistar as grandes cidades a norte de Damasco, esquecer o deserto e os curdos do norte, e deixar à comunidade internacional e à oposição moderada a tarefa de combater o Estado Islâmico eventualmente acantonado em Raqqa (capital do califado) quando for expulso de Mossul. Falta saber o que poderá fazer o Exército Livre da Síria e a enorme miríade de grupos armados para contrariar esta estratégia de Assad e dos aliados russos.

Uma última nota: a Rússia poderá estar para uma “nova Síria”, como os Estados Unidos estão para Israel, o que não desagrada nada a Vladimir Putin.

É complicado? É! Mas é impossível tornar fácil uma realidade que envolve tantos interesses e protagonistas. Certo é que as nuvens negras (mais negras do que as que pairam sobre a região) estão a caminho e tudo indica que vai ser muito feio.

Pinhal Novo, 25 de Setembro de 2016

josé manuel rosendo

domingo, 25 de setembro de 2016

Deixem de brincar com a Síria


Sabendo o que se está a passar na Síria, é absolutamente desesperante ouvir as declarações dos principais responsáveis políticos, principalmente os das grandes potências. Os despachos das agências internacionais dão conta de sucessivos bombardeamentos em Aleppo e acrescentam constantes actualizações do número de mortos e infraestruturas destruídas. Estas notícias surgem intercaladas com as declarações políticas: John Kerry, Secretário de Estado norte-americano, a dizer que “o cessar-fogo não morreu”; Serguei Lavrov, Ministro dos Negócios Estrangeiros da Rússia, a dizer que o cessar-fogo “não tem razão de ser” se a oposição moderada não se demarcar dos grupos “terroristas”. Isto é algo esquizofrénico. E muito hipócrita.

John Kerry sabe perfeitamente que o cessar-fogo está morto e enterrado (para não falar das centenas de violações durante a semana em que esteve em vigor…) e não adianta fazer que não vê o que se passa em Aleppo e em muitos outros locais na Síria; Serguei Lavrov, antes de assinar o acordo de cessar-fogo, sabia perfeitamente que não iria acontecer a separação de grupos armados que agora vem exigir. Lavrov sabe que é mais fácil virar um acordo de pernas-para-o-ar do que separar grupos que combatem lado-a-lado numa guerra civil fratricida e só porque a Rússia acha que sim. 

Muitas negociações que decorreram em Genebra terminaram no momento em que os negociadores não conseguiram chegar a acordo sobre uma lista de grupos terroristas. Kerry e Lavrov dizem ambos que é importante preservar o acordo que assinaram a 9 de Setembro, mas sabem que a realidade já rasgou esse acordo e que se ele serviu para alguma coisa foi apenas para os combatentes terem uns dias de descanso, para o exército sírio se reorganizar e para haver uma pequena pausa na contagem dos mortos (que ainda assim continuou).

Sabemos que a hipocrisia é a dama a que nenhum diplomata consegue recusar um passo de dança, mas este salão está cheio de cadáveres e já era tempo de mandar a orquestra ficar em silêncio.

Como se não bastasse este cinismo das grandes potências, o Presidente sírio Bashar al Assad deu uma entrevista à Associated Press na qual diz que está para ficar, assumindo que a guerra está para durar e o embaixador sírio nas Nações Unidas foi muito claro ao dizer que em Outubro não haverá negociações. Setembro está a chegar ao fim.

A cereja no topo do bolo veio do presidente turco, que acusou os Estados Unidos de terem enviado dois aviões com armamento para os combatentes curdos no norte da Síria. A Turquia considera estes curdos terroristas; para os Estados Unidos são aliados. Turquia e Estados Unidos combatem o Estado Islâmico, fazem parte da mesma coligação que bombardeia o califado – e da NATO – mas escolhem amizades diferentes.

Quando será que alguém vai parar a carnificina e o que vai fazer a justiça internacional quando o banho de sangue terminar?

Nota: os créditos da foto que ilustra este escrito são de Ryad Alhussen (tirada na tarde de 24 de Setembro) e escolhi-a por constituir uma imagem que pode acordar consciências. Não há guerras sem mortos.

Pinhal Novo, 24 de Setembro de 2016

josé manuel rosendo

quarta-feira, 21 de setembro de 2016

António Guterres arrisca-se a ser o último Secretário-Geral da ONU


O Mundo atravessa um momento complicado. É comum tendermos a valorizar as dificuldades do presente esquecendo que outros momentos semelhantes já aconteceram e nem todos terminaram da forma dramática que, em determinado passo, foi previsto. Mas também é verdade que muitos analistas admitem estarmos a caminho de mais uma guerra mundial. Não se trata de pessimismo ou cedência às teorias deterministas. A escolha é dos homens, mas há muitos homens que não conseguem aprender nada com a história.

A guerra na Síria é um exemplo. As grandes potências e as potências regionais estão envolvidas; há actores locais fortemente empenhados; os povos estão desavindos; fronteiras questionadas; a religião utilizada como arma. Já lá vão mais de cinco anos de guerra e não há sinal de que os protagonistas cedam à necessidade óbvia de um acordo político. Como alguém já disse, até parece que toda a geopolítica do planeta está centrada na Síria. As Nações Unidas, herdeiras de uma Ordem Internacional criada há 70 anos, revelam total incapacidade para conter o conflito e para ser o tal fórum onde as desavenças se resolvem de forma civilizada. Aliás, a guerra na Síria e no Iraque, contém um dado poucas vezes abordado: o objectivo do Estado Islâmico é também o de contestar o próprio modelo de Estado-Nação, defendendo outro tipo de fronteiras.

Esta incapacidade das Nações Unidas que pode levar à sua irrelevância transporta-nos ao tempo da Sociedade das Nações, antecessora da ONU. Não deixa de ser curioso que tendo nascido de uma sugestão de um presidente norte-americano, o Congresso dos Estados Unidos tenha recusado ratificar o Tratado de Versalhes (onde constava a criação da Sociedade das Nações) e os Estados Unidos ficaram de fora. Criada após a I Guerra Mundial, a Sociedade das Nações acabaria por sucumbir precisamente por não ter conseguido o seu principal objectivo: manter a paz! O nazismo terá sido o principal impulsionador, mas muitos outros sinais de ambições territoriais já antes se tinham manifestado.

Um desses sinais veio da Etiópia e o aviso foi muito claro. Aliás, há um discurso que muitos diplomatas e analistas deviam rever, por todo o seu esplendor, pelo tom arrebatado, pela clarividência e, principalmente, por ser uma ode ao multilateralismo, tão em voga no nosso tempo mas que se resume sempre, e infelizmente, ao poder de meia dúzia de nações. Passam precisamente 80 anos sobre o momento em que o Imperador da Etiópia, Hayle Selassie, foi a Genebra dizer aos 52 países da Sociedade das Nações que os Tratados Internacionais não estavam a ser cumpridos e, pior do que isso, a Sociedade das Nações estava a olhar para o lado.

Depois de relatar em pormenor que as tropas italianas estavam a fazer na Etiópia (invasão) e o embargo a que a Etiópia estava sujeita e que não lhe permitia defender-se da ameaça de extermínio, o Imperador Hayle Selassie disse: “Os apelos que os meus delegados em Genebra dirigiram à Sociedade das Nações ficaram sem resposta; os meus delegados não testemunharam os factos; é por isso que resolvi vir eu próprio dar testemunho do crime perpetrado contra o meu povo e advertir a Europa do perigo que a espera se decidir vergar-se perante um facto consumado”. Era muito claro o aviso: hoje a Etiópia, amanhã poderá ser um de vós. 

A Sociedade das Nações protestou, mas a Itália de Mussolini passou impune. A Etiópia ficou entregue a si própria e à voracidade de uma Itália liderada por “Sua Excelência Benito Mussolini, Chefe de Governo, Duce do Fascismo e Fundador do Império”, como o próprio ditador se intitulava. Hayle Selassie foi certeiro na análise e a história acabou a dar-lhe razão. Os italianos utilizaram armas químicas e há relatos que referem meio milhão de mortos entre os etíopes. A II Guerra Mundial não tardou a bater à porta.

Aqui chegados, neste nosso tempo, temos António Guterres a subir a escada que o pode levar a Secretário-Geral da ONU. Não duvido das boas intenções do ex-Primeiro-Ministro português, mas esta ONU, da qual já se disse mil vezes precisar de uma reforma que lhe permita uma intervenção mais eficaz, não está a ser a instituição que o Mundo precisa para suster conflitos e regular divergências internacionais. 

Quem mais precisa de uma ONU forte são os mais fracos, povos e países, mas esta ONU está cada vez mais alinhada com as grandes potências. Não que isso seja uma vontade assumida dos 193 Estados membros, mas é o resultado de uma organização que já não corresponde (se é que alguma vez correspondeu) à relação de forças a nível internacional e mantém um Conselho de Segurança com regras que conduzem facilmente à inacção.

A história não se repete mas ao recusar ouvir os alertas semelhantes aos de Hayle Selassie, a ONU arrisca-se a ter o mesmo fim da Sociedade das Nações e António Guterres pode vir a ser o homem com a ingrata tarefa de fechar a porta. Esperemos que não.

Pinhal Novo, 21 de Setembro de 2016

josé manuel rosendo

segunda-feira, 19 de setembro de 2016

Quando Bruxelas se transforma num centro de agitação política

As famosas agências de rating andam mais caladas mas, tal como não há vazios em política, também não pode haver vazios na arte de agitar papões frente ao nariz dos que se comportam fora dos padrões considerados aceitáveis. Não sei se as agências começaram a ficar incomodadas com o seu próprio ruído ou se perceberam que já era contraproducente. Mas para que não nos falte nada, o recente silêncio das agências é substituído pelo ruído da Comissão Europeia (CE). Verdadeiramente preocupada com o povo deste cantinho da Europa a Comissão com sede em Bruxelas não pára de enviar recados, alertas e avisos. Por vezes até parece que conhecemos os verdadeiros autores tal a coincidência com alguns discursos.

Por exemplo, Bruxelas acha que a venda do Novo Banco (de que não se sabe qual vai ser o encaixe…) e a recapitalização da Caixa Geral de Depósitos (que não se sabe ainda quanto vai ser necessário…) pode ter um impacto nas contas públicas que pode comprometer a execução orçamental em 2016. Valha-nos neste caso que Bruxelas admite que são as broncas nos bancos que podem comprometer o défice. Está reconhecido implicitamente que não voltámos a viver acima das nossas possibilidades.

Outro exemplo, Bruxelas avisa que os riscos de financiamento de Portugal podem aumentar no médio prazo. Motivo? A volatilidade do mercado e as almofadas financeiras cada vez menores. Quanto à volatilidade (será nervosismo?) dos mercados estamos conversados. Quanto a almofadas financeiras, a Comissão esclarece que estão em linha com os valores de 2015 mas está abaixo do valor do fim de programa de assistência financeira.

Preocupações maiores de Bruxelas? Algumas reformas efectuadas durante o programa de resgate correm o riso de serem revertidas: sistema de requalificação dos funcionários públicos e regresso das 35 horas de trabalho semanais. O aumento do salário mínimo e a reversão dos cortes salariais temporários são outros factores de preocupação para Bruxelas.

Para além das preocupações e dos avisos de que se fazem acompanhar, Bruxelas diz que não foi identificado nenhum desvio orçamental significativo até ao momento (Maio – embora o relatório tenha alguma informação até meados de Julho). Não há desvio, mas a comissão diz que pode haver, porque há medidas adiadas para o segundo semestre que podem fazer aumentar o défice.

Isto é, a CE não tem um único dado objectivo para poder afirmar que a execução orçamental não está a ser cumprida, mantém para este ano as previsões do défice que já tinha feito (2,7% do PIB), mantém as previsões para 2017 (2,3% do PIB), mas consegue ter todas as dúvidas em relação aos próximos meses e exige medidas ao Governo.

O Governo respondeu que os dados da execução orçamental de Julho mostram que se mantém a tendência verificada em Maio – referida neste relatório da CE.

Em resumo, a CE dá-se ao luxo de dizer que não acredita que o limite do défice vai ser cumprido. Não acredita, e pronto. Não acredita, e quer medidas para passar a acreditar. A CE que apregoa aos quatro ventos a necessidade de estabilidade é a primeira a lançar a suspeita que enfuna as velas para fazer andar o barco da instabilidade e da desconfiança. Claro que depois não vai ter qualquer culpa num eventual aumento dos juros da dívida.

Este é, sem dúvida, um braço-de-ferro entre a CE e o Governo português do qual não pode resultar dois vencedores. Fechadas as contas, alguém vai perder. O problema é que se for o Governo português os portugueses saberão tirar ilações; se for a CE nada poderemos fazer. Esse é um dos dramas desta Europa.

Pinhal Novo, 20 de Setembro de 2016

josé manuel rosendo

sexta-feira, 16 de setembro de 2016

Não há ódio à classe média (qual classe média?) e os comunistas não vão comer criancinhas…

Não gosto da política partidária, mas gosto de Política. Há mais ou menos seis anos o Governo de então decidiu por Decreto-Lei que as famílias com rendimento anual superior a 100 mil Euros teriam cortes nos chamados subsídios sociais. A medida fazia parte do PEC 2011 que o governo antecipou para entrarem em vigor em 2010. José Sócrates foi a Bruxelas dizer que era uma medida com o apoio do PSD.

Agora, 2016, o (modelo do imposto está ainda a ser trabalhado, mas o) Governo prepara-se para taxar os imóveis que no conjunto do rendimento da família tenham um valor entre 500 mil e 1 milhão de Euros. Desse valor para cima os imóveis já eram taxados.

Lembrei o que aconteceu em 2010 (também com um Governo do PS) para constatar um facto simples: na lógica de então (2010) do PSD, 100 mil euros era patamar de riqueza suficiente para que alguém do agregado familiar sofresse perda total ou parcial do subsídio desemprego ou Rendimento Social de Inserção, mas agora, 500 mil Euros de património imobiliário não é patamar de riqueza suficiente para pagar mais um imposto, mesmo sendo o PSD quem mais agita o papão do eventual não cumprimento do limite do défice.

Durante o governo anterior houve também quem (CDS) conseguisse esse malabarismo de reivindicar ser o partido dos pensionistas e reformados e votar cortes em reformas miseráveis sem qualquer alerta na consciência. Neste momento, taxar quem tem património imobiliário de valor superior a 500 mil euros é sacrilégio…

Não entro – por dever de ofício - no debate político-partidário sobre se este governo está a governar bem ou mal, mas esta é uma questão Política muito objectiva: a de saber quem pode – porque tem património e rendimentos – pagar mais impostos e assim contribuir mais para o esforço que – dizem – é preciso fazer para equilibrar as contas. A isto chama-se deslocar a austeridade e procurar receitas fiscais em quem melhor as pode pagar. 

O “ajustamento” feito nos últimos anos colocou a classe média muito abaixo dos patamares anteriores e, actualmente, quem tem património imobiliário acima dos 500 mil euros é alguém que está com um pé (se não os dois…) no clube dos ricos ou, no mínimo, de uma classe média AAA. E esses podem pagar. Ou pelo menos, com toda a certeza, sentirão muito menos o que vão pagar a mais. Quem ganha 500, mil ou dois mil euros por mês, já paga que chegue.

E os “spin doctors” que se deixem de abastecer as redes sociais incitando os incautos (que não têm património de 500 mil Euros, nem lá perto…) a odiarem esta medida em nome da defesa da propriedade privada. Já ninguém acredita na história do agricultor que tinha duas vacas e teve que dar uma ao vizinho porque ele não tinha nenhuma. Não há ódio à propriedade… não há ódio à classe média (qual classe média?) … e não vem aí o comunismo. Até as criancinhas já sabem que ninguém as come ao pequeno-almoço.

Pinhal Novo, 16 de Setembro de 2016

josé manuel rosendo

segunda-feira, 12 de setembro de 2016

É preferível estabilizar ditadores? Essa agora…


11 de Setembro à noite. No momento em que liguei a televisão estava na TVI 24. Não costuma estar porque apenas por lá passo por dever profissional. Mas desta vez estava e ficou. O tema interessava-me. Médio Oriente, Estado islâmico… Os protagonistas – Jaime Nogueira Pinto, Francisco Seixas da Costa e Nuno Barrento Lemos – prometiam, porque são conhecedores, estudiosos e informados. E depois, porque não tinha apanhado o início da conversa que me agarrou, voltei atrás. Confirmei o que me pareceu ter ouvido e que me fez abrir a boca de espanto. 

Em determinado momento, a propósito de ser ou não possível estabelecer democracias tipo ocidental naquela região do mundo, e tendo em conta as consequências da queda de Mohammar Kadhafi (na Líbia) e Saddam Husseín (no Iraque), Francisco Seixas da Costa admitiu que, face às características dos países em causa, “custa dizer isto mas se calhar é verdade, por vezes é preferível estabilizar ditadores e mantê-los contidos” do que chegarmos a situações como as que vivemos actualmente na região em causa com guerras civis na Síria e no Iraque, e na Líbia. 

Admirei-me, vindo de quem vem, habituado que estou a vê-lo fazer a defesa dos direitos humanos, da liberdade e da democracia. Pensava eu que era uma defesa de âmbito universal que não discriminasse regiões nem as pessoas que nelas vivem. É certo que a experiência enquanto diplomata permite “almofadar” todas as afirmações e assim também sublinhou que o ocidente (entenda-se Estados Unidos) foi de uma incompetência absoluta na tentativa de reconstrução do Iraque.

De facto, não é possível, não pode ser possível, concordar com a “estabilização” e “contenção” de ditadores em nome de algo que permita ao ocidente viver em paz. Não é possível concordar com esta tese, nem em termos político-ideológicos nem em termos morais. Desde logo, e porque a data de 11 de Setembro nos traz à memória não apenas os atentados que atingiram os Estados Unidos mas também o golpe de Estado no Chile, que derrubou o Presidente eleito Salvador Allende e mergulhou o Chile numa ditadura militar. 

O Chile foi “estável” e Pinochet esteve “contido” entre 1973 e 1990. A lógica que levou os Estados Unidos e a CIA a prepararem o golpe militar no Chile contra Salvador Allende é mais ou menos do mesmo tipo que pode levar alguém a pensar que é preferível ter ditadores “estabilizados e contidos” no Médio Oriente. No caso dos Estados Unidos (a célebre Doutrina Monroe) era o de não ter à porta o elemento desestabilizador consubstanciado num Presidente socialista no Chile (já chegava Cuba…); no caso da teoria explanada esta noite na TVI – preferir os ditadores ao caos em que se transformou a região - é o de não ter uma (várias…) guerra (s) cujas consequências atingem a Europa, seja através dos atentados, seja através da vaga de refugiados. Apesar desta semelhança de lógicas deixo muito claro que acredito que Francisco Seixas da Costa não teve e não tem nenhuma simpatia pelo golpe que afastou Salvador Allende.

Outros factos que é preciso ter em conta sobre a situação no Médio Oriente é o de que Saddam caiu derrubado pelos Estados Unidos, Grã-Bretanha e ajudantes, numa clara tentativa de mudança de regime feita a partir do exterior; Kadhafi caiu devido à revolta dos líbios (embora com ajuda externa…) durante a chamada Primavera Árabe. No primeiro caso, acção absolutamente condenável, até porque assentou numa mentira fabricada para justificar a invasão; no segundo caso, acção perfeitamente aceitável porque qualquer povo tem o direito inalienável de ser livre e a tentar essa liberdade, desenvolvendo uma revolta para afastar um ditador, independentemente do resultado que venha a conseguir.

Basta atendermos ao exemplo de Portugal: o 25 de Abril de 1974 foi uma revolta militar que derrubou uma ditadura. Quando os militares saíram à rua ninguém podia garantir que a democracia seria instalada. E se o regime tivesse tido capacidade de resposta? E se tivesse havido uma guerra civil? Será que nós podemos tentar e os outros não? Aos outros reservamos os “ditadores estabilizados” e “contidos” para podermos viver a nossa vida sem o desassossego que as guerras no Médio Oriente nos provocam? O chamado Ocidente não pode ser assim tão egoísta. Acredito piamente que Francisco Seixas da Costa não tem qualquer tipo de simpatia por ditadores, mas acredito igualmente que é perigoso semear este tipo de ideias.

Pinhal Novo, 11 de Setembro de 2016

josé manuel rosendo

domingo, 11 de setembro de 2016

Síria: chega de sacrifício


O cessar-fogo pode começar esta segunda-feira, dia em que também começa a festa muçulmana do Eid al Adha, a festa do sacrifício, uma festa de quatro dias com que termina o Hajj, a peregrinação a Meca. O Sacrifício terá sido o do Profeta Abraão que decidiu sacrificar o filho Ismael, por vontade de Deus.

Cinco documentos assinados entre os chefes da diplomacia dos Estados Unidos e da Rússia constituem o Acordo que pode ser o princípio do fim da guerra na Síria. Pode, mas talvez não seja. Quem acompanha há cinco anos o que se passa na Síria está farto de sangue e de morte mas não pode ser acusado de pessimismo se disser que está enganado quem pense que terminou a guerra na Síria. Basta olhar para o que está em causa – não é apenas Assad – e os protagonistas que se digladiam. Os documentos assinados em Genebra permanecem secretos e, não se conhecendo os termos do acordo, podemos tentar fazer um roteiro das questões que se colocam para, então sim, podermos falar de paz na Síria.

John Kerry, Secretário de Estado norte-americano: É uma oportunidade e nada mais do que isso; Serguei Lavrov, Ministro dos Negócios Estrangeiros russo disse que nem tudo depende da Rússia. O acordo demorou a ser assinado porque Kerry precisou da luz verde de Barack Obama. As palavras e a demora do OK norte-americano mostram, mais uma vez, que a Rússia sabe muito melhor o que quer.

Diz a imprensa internacional que uma das questões que demorou a ser resolvida foi a de classificar a ex-Front al Nusra, agora Fatah al Sham, que mudou de nome para anunciar o corte da ligação com a Al Qaeda. De assinalar que a Fatah al Sham anunciou sexta-feira a morte do seu líder durante um ataque aéreo na região de Aleppo. Abu Omar Sarakeb era também um importante comandante militar, liderava a Fatah al Sham e também o Exército da Conquista, uma coligação de grupos de raiz religiosa que controla extensas áreas da Síria. Os Estados Unidos já recusaram qualquer intervenção no ataque que matou Abu Omar Sarakeb.

Voltando à questão de saber se a agora Fatah al Sham é ou não terrorista, Rússia e Estados Unidos tomaram uma decisão que é relatada de forma bastante divergente na imprensa internacional. Moscovo terá sido intransigente (escreve o Público) e colocou-lhe o carimbo de terrorista; O El País escreve que a Rússia se compromete a pressionar o Governo sírio a deixar de bombardear os rebeldes inclusive nas zonas onde rebeldes e Fatah al Sham combatem lado-a-lado, enquanto os Estados Unidos vão tentar persuadir os rebeldes a separarem-se da Fatah al Sham. No mínimo é complicado, para não dizer outra coisa. A Fatah al Sham tem demonstrado ser uma força militar muito mais eficaz, competente e muito melhor equipada do que, por exemplo, o Exército Livre da Síria (rebeldes). Aliás, o maior cepticismo sobre este acordo parece vir dos rebeldes que iniciaram a revolta contra Assad. O Exército Livre da Síria sabe que sem a aliança estratégica com a Fatah al Sham não teria sido possível resistir ao cerco das forças governamentais a Aleppo. Estas alianças, assinadas com sangue derramado em conjunto, não costumam ser esquecidas. 

Na foto, o comandante de um grupo do Exército Livre da Síria, Abu Ahmed, disse-me abertamente: se a Al Qaeda nos der armas nós aceitamos! Estava cansado de esperar por promessas de países ocidentais enquanto os seus homens eram bombardeados diariamente. É bom entender que muitas vezes os homens que combatem no terreno discordam dos políticos que estão nas negociações (Alta Comissão para as Negociações).

Como é habitual num contexto em que há um cessar-fogo a ser discutido, o Governo sírio atacou Aleppo horas antes da assinatura do acordo numa tentativa de obter ganhos territoriais antes do calar das armas; em Idlib aconteceu o mesmo mas não há certezas quanto ao autor dos ataques apesar de testemunhas apontarem para aviões russos.

Este acordo foi assinado entre Rússia e Estados Unidos, apenas dois dos actores desta guerra. São os mais poderosos é certo, mas há muitos aspectos que não passam apenas por Moscovo e Washington. Desde logo, o futuro de Assad. Não se sabe o que se prevê no Acordo. É preciso acomodar o Irão neste complexo xadrez. De boas relações com Moscovo e com um acordo sobre a questão nuclear assinado com Washington, o Irão beneficia desses dois importantes elementos para que as duas grandes potências não queiram estragar o arranjo. O Hezbollah também tem uma palavra a dizer. E os curdos? Outra vez ignorados na solução para acabar com a guerra? E a Turquia? E os milhares de prisioneiros de guerra? São muitas questões à espera de resposta e nas últimas horas não há notícia de que os combates tenham diminuído de intensidade.

Pinhal Novo, 11 de Setembro de 2016

josé manuel rosendo

sexta-feira, 9 de setembro de 2016

Mais sinais sobre a Síria. Cartas estão a ser postas em cima da mesa


Procuro nas agências de notícias, nos jornais, não há quase nada sobre o encontro entre o Secretário de Estado norte-americano John Kerry e o Ministro dos Negócios Estrangeiros russo Serguei Lavrov. Apenas gestão de expectativas com a inevitável especulação à mistura. Estes dois homens têm encontro marcado em Genebra nesta sexta-feira e na véspera falaram ao telefone. O que cada um deles leva na mala (e na manga) não se sabe.

O que se ficou a saber esta quinta-feira através do Secretário da Defesa dos Estados Unidos, Ash Carter, é que as milícias curdas da Síria (Unidades de Protecção Popular) saíram da cidade de Manbij (que conquistaram ao Estado Islâmico) e atravessaram o Rio Eufrates passando para a margem oriental. Era o que a Turquia exigia e os Estados Unidos apoiaram. Ash Carter revelou esta alteração no terreno depois de um encontro com o Ministro da Defesa da Turquia, Fikri Isik.

Outro sinal a merecer muita atenção: o porta-aviões francês Charles de Gaulle vai estar no Mediterrâneo oriental. Põe-se a caminho até final de Setembro. A França envia também baterias de artilharia. Vai estar tudo operacional no início do Outono. Obejctivo? Vão apoiar as forças iraquianas na reconquista de Mossoul. As palavras são do porta-voz das Forças Armadas francesas. Esta revelação das movimentações militares francesas acontece no dia do encontro do Presidente francês, François Hollande, com o Presidente do Governo regional do Curdistão (iraquiano), Massoud Barzani. O mesmo Barzani que a 23 de Agosto esteve reunido com o presidente turco, encontro onde terá sido feito um acordo contra outros curdos (PKK e curdos sírios).

Voltando a Kerry e Lavrov, parece pacífico que a política russa em relação à Síria – concordemos ou não – tem sido muito mais explícita do que a dos Estados Unidos, sobretudo se atendermos à forma como os norte-americanos têm lidado com a questão curda. Não seria a primeira vez que os Estados Unidos voltariam as costas aos curdos. Mas também é bom lembrar que a 10 de Fevereiro os curdos da Síria abriram a primeira representação no estrangeiro e foi em… Moscovo. 

Já alguém escreveu que até parece que os curdos nasceram para serem traídos. Não vai demorar para sabermos como vai ser desta vez. O final do ano tem sido a referência de vários líderes para retirar Mossul do controlo do Estado Islâmico e a Turquia já disse que lhe agrada uma operação conjunta com os Estados Unidos para conquistar Raqqa, a maior cidade síria dominada pelo estado Islâmico.
Vamos ver o que sai de Genebra esta sexta-feira.

Pinhal Novo, 9 de Setembro de 2016

josé manuel rosendo

quinta-feira, 8 de setembro de 2016

Síria, algo se vai passar, ou não…


Durante semanas, meses, das negociações para resolver a guerra na Síria apenas se ouvia dizer que estavam paradas, bloqueadas. As iniciativas do enviado especial da ONU para a Síria, Staffan de Mistura, deram em nada. No terreno, todos os dias, combates, bombardeamentos, cercos, massacres, crimes de guerra, populações em fuga. Novidade já com duas semanas: a Turquia entrou na guerra, meteu homens e máquinas Síria adentro com o argumento de combater o Estado Islâmico e as milícias curdas das Unidades de Protecção Popular. Não deixa de ser curioso que, depois de muitas ameaças, e de situações de ameaça idêntica pela proximidade do Estado Islâmico – lembram-se de Kobani? – só depois de resolvido o diferendo com a Rússia, a Turquia tenha avançado de forma directa para esta guerra. Aliás, a Turquia disse que avisou o Governo de Damasco, através do amigo russo. 

A juntar a essa relação (Turquia/Rússia) retomada, afirmações dos mais altos responsáveis turcos devem ser tidas em conta. A 2 de Setembro, o Primeiro-Ministro turco, Binali Yildirim, foi taxativo: “Normalizámos as nossas relações com a Rússia e Israel. Agora, se Deus quiser, a Turquia tomou uma iniciativa séria para normalizar as relações com o Egipto e a Síria”. Esta declaração não deixa margem para outra leitura a não ser que a Turquia mudou radicalmente de posição relativamente a Bashar al Assad. Até agora, o Presidente sírio era visto de Ankara como uma carta forçosamente fora do baralho; agora já não é.

Outra declaração importante: o vice-primeiro-ministro disse que a Turquia é favorável a uma operação comum com os Estados Unidos contra Raqqa, a capital do Estado Islâmico na Síria. Este governante disse que o assunto foi tratado entre os dois presidentes à margem da Cimeira do G20 e está a ser discutido. O Presidente turco lançou também a ideia de uma zona de exclusão aérea no norte da Síria. E há ainda outro dado: a 23 de Agosto o presidente turco encontrou-se com o Presidente do Curdistão Iraquiano. Oficialmente falaram da actividade da organização de Fethulla Gulen na região mas há rumores de que terão feito uma aliança contra os outros curdos, nomeadamente do PKK e das Unidades de Protecção Popular.

Talvez seja difícil digerir todas estas componentes do conflito mas pelo meio disto, o enviado especial de Barack Obama para a coligação que combate o Estado islâmico, encontrou-se com as milícias curdas das FDS (Forças Democráticas da Síria – junta milícias curdas e árabes). Encontrou-se também com representantes turcos. É o que diz o Departamento de Estado. Os turcos querem os curdos fixados a este do Rio Eufrates, os Estados Unidos tentam convencê-los a recuar para essa zona, mas os curdos conquistaram ao Estado Islâmico a cidade de Manjib (a oeste do Eufrates) e têm por objectivo controlar todo o norte da Síria que faz fronteira com a Turquia.

A Rússia e Bashar al Assad têm falado menos. Tentam consolidar posições no terreno. Têm tido algum sucesso mas também alguns revezes. Uma coisa é conquistar posições, outra é ter capacidade para mantê-las com forças massacradas por 5 anos de guerra.

A oposição síria reunida no Alto Comité de Negociações apresenta um plano em 3 fases: primeiro, seis meses de trégua e negociações; segundo, 18 meses de governo de transição, mas Bashar al Assad tem de ir embora; por fim, eleições com o apoio e supervisão das Nações Unidas. Já se vê que esta solução, tendo o mérito de pretender parar o banho de sangue, não vai vingar.

Para fechar este leque de questões, durante dois dias (8 e 9 de Setembro) Sergueï Lavrov e John Kerry – os homens que mereceram da Al Jazeera uma série de artigos com o título “Atracção Fatal” – vão estar juntos a debater a situação na Síria. O que eventualmente podem tirar da cartola, ninguém sabe, mas já estamos naquela fase em que a maioria das apostas vai no sentido de que tudo vai ficar como está. De há muito que esta guerra na Síria é um tabuleiro de xadrez em que vários jogadores movimentam várias peças em simultâneo. Nenhum consegue saber o que todos os outros pretendem e o que vão fazer na próxima jogada.

Ainda assim, as peças do puzzle parecem começar a acomodar-se. Mas não nos iludamos. Talvez ainda não tenha acabado de ler este texto e tudo pode já estar diferente.

Pinhal Novo, 8 de Setembro de 2016

josé manuel rosendo

sábado, 3 de setembro de 2016

Dúvidas existenciais. Peço a vossa ajuda


Tenho uma verdadeira e sincera dificuldade em encontrar uma explicação lógica para alguns alinhamentos de protagonistas nacionais com as políticas e os políticos de alguns países. Indo directo ao assunto, uma das dificuldades mais complexas tem a ver com alguma esquerda que fica toda eriçada quando Vladimir Putin é visado num qualquer argumento político. Não falo de Dilma, nem de Nicolas Maduro, não, é mesmo de Putin. A minha dificuldade reside num aspecto muito simples, até muito básico, reconheço: não é momento para dissertar sobre o actual regime russo, mas acho que ninguém tem dúvidas de que a Rússia já nada tem a ver com o comunismo ou com o socialismo; então, porquê essa defesa assanhada das políticas do Kremelin e do Presidente da Rússia? Que íman existe em Moscovo que provoca ainda esta atracção de alguma esquerda? Peço a vossa ajuda.

Outro aspecto que me provoca dificuldade na análise que tento fazer é a equipa de comentadores e políticos sempre alinhados com as directivas (perdão, queria dizer políticas) com origem em Washington. Estes, em regra, também alinham com tudo o que vem de Bruxelas. Tudo o que tenha passado por um discurso de um Presidente norte-americano ou da Comissão Europeia transporta um selo de garantia que estes comentadores e políticos nacionais recusam beliscar ou tocar, nem que seja com uma flor. Há até um que diz preferir a “chantagem” da Europa à do PCP e BE. Assim mesmo. Outros, apesar dos constantes avisos de gente muito avisada, e até de alguns europeístas convictos (devem ser uns radicais, e “radical” é expressão que apenas se aplica à esquerda…) defendem com unhas e dentes o TTIP (Acordo de Parceria Transatlântica de Comércio e Investimento). Mudam os governos, mudam as direcções partidárias e as direcções dos Órgãos de Comunicação, mas há um núcleo duro sempre fiel ao Tio Sam que não se cansa de nos tentar catequizar. Será amor? Lógico não é certamente… Peço a vossa ajuda.

Até admito que estes dois grupos acima referidos possam ter razão. Nós é que pensamos que a guerra-fria já terminou e parece que estamos enganados. Basta olharmos para o que se passa na Síria e rapidamente concluiremos que Estados Unidos e Rússia, apesar de telefonemas quase diários entre Washington e Moscovo, dizem ter um inimigo comum mas têm amigos diferentes. Difícil, não?

Grandes potências à parte faltam as potências que prometem. E muito. À China todos vão. É fantástico. É difícil descodificar o mistério. Pequim (apesar da poluição) tem uma aura que deslumbra os nossos dirigentes partidários. Quando chegam ao governo essa aura ganha um brilho redobrado. Não sei se vão a uma capital comunista ou ao centro de um novo capitalismo. Não sei se vão apenas para ver a Grande Muralha. Quem lá vai, quando volta também não ajuda a desfazer a dúvida. E quanto à política externa da China, canja e caldos de galinha nunca fizeram mal a ninguém: silêncio absoluto ou então críticas muito suaves. Mao Tsé Tung ri-se, já se vê. Até um tal Catroga aceitou servir o capital do Império do Meio. Sempre ao meio, sempre ao centro, não o centro político mas aquele meio/centro que permite cair para onde é mais conveniente, Catroga, um exemplo a ter em conta. O que é que os chineses pensarão de algo assim? Será que a estratégia de Mao ainda tem seguidores. Estaremos perante uma réplica da aliança (de Mao) com Chiang Kai-shek para depois alcançarem o poder? Acham que devo ficar preocupado ou não é motivo para isso e os nossos políticos que vão a Pequim sabem muito bem o que andam a fazer? Peço a vossa ajuda.

E porque já falámos de relações sólidas, falemos das mais flexíveis, eventualmente mais incertas, falemos dos flirts. O dicionário Priberam dá duas definições para flirt: 1 – Namorico, relação amorosa curta ou de pouca importância; 2 – Aproximação entre pessoas ou entidades, geralmente com uma intenção política. Para o caso, prefiro a segunda. E neste caso (outro que não consigo descodificar) incluo a notada presença de um dirigente do CDS no recente Congresso do MPLA. Investimento para um tempo em que o CDS regresse ao poder? Coisa estranha que até provocou algum alvoroço no próprio CDS. Que o PCP se faça representar, ainda vá, mas também neste caso, por onde anda o socialismo do MPLA (tal como o de Putin)? No caso do CDS, aponto para um flirt, mas no caso do PCP só pode ser um alinhamento rígido porque o PCP não é de flirts. Pelo menos a nível internacional porque quanto a questões internas as coisas parece que estão a mudar. O PS e o PSD também lá estiveram no número de equilibrismo habitual. O PS é governo e o PSD pensa que ainda é. Também neste caso, peço a vossa ajuda porque, parece-me, há um problema de liberdade e democracia em Angola. Ou isso já não conta para nada?

Pinhal Novo, 3 de Setembro de 2016
josé manuel rosendo


sexta-feira, 2 de setembro de 2016

Marcha fúnebre

São cada vez menos as Empresas Públicas mas ainda são suficientes para percebermos que a asneira vai continuar até à extinção. Há uma longa história de transferências de gestores do sector privado para o público e vice-versa. Muitos deles dizem cobras e lagartos do sector público enquanto são muito bem pagos no sector privado. Quando seca a virtuosa teta privada e outra alternativa não vislumbram, rapidamente fazem agulha para o desgraçado sector público, qual apaixonados a quem o feio sempre parece bonito. No sentido oposto viajam os que serviram determinado poder político e são depois devidamente compensados no sector privado. São gestores, e pronto. Podem gerir tudo. Não importa se conhecem o sector público para onde são chamados a espalhar sabedoria e executar um qualquer objectivo político; não importa se conhecem o sector privado onde a recompensa os espera. Muito menos importa se conhecem a empresa em causa. Afinal por que haveria de importar? Uma pessoa inteligente aprende e adapta-se. Há excepções? Admito que sim, mas são isso mesmo: excepções.

Estes dançarinos da gestão, podem sair das cervejas para a comunicação social; da saúde para a banca; dos azeites para as infra-estruturas… E se calhar até têm razão: gerem tudo da mesma forma. Afinal qual é a diferença entre um estúdio de rádio ou televisão e uma central de cervejas? qual é a diferença entre um serviço de urgência de um hospital e um balcão de uma instituição bancária?, qual é a diferença entre uma fanga de azeitona e a antiga Estrada Nacional 2? Não há diferença porque em geral (no público) é preciso cortar na despesa com pessoal, na manutenção, no investimento, na inovação e por aí fora... Cortar é cortar. É olhar para o orçamento e abater a percentagem que alguém determinou. O resto, que façam os que lá trabalham, porque é para isso que são pagos. E se no público houver algo com perspectiva de passar a ser privado, ainda melhor. Talvez no futuro haja um lugarzinho.

A frequente chegada ao sector público de gestores formados no sector privado só pode resultar no desastre a que temos assistido nas últimas décadas. Chegam ao sector público e gerem da mesma forma que geriam no privado. Serviço Público? O que é isso? O que é preciso é pôr as empresas a dar lucro ou acabar com o “prejuízo”. Gostam sempre de falar naquela curiosa teoria que compara as empresas públicas (às privadas e) a um orçamento familiar. É assim que pensam. É assim que fazem. Contam, habitualmente, com equipas de “yes-man” que dizem que sim aos senhores administradores e a todos tratam por “senhor doutor” ou “senhora doutora”. Seja qual for a administração, eles lá estão, dispostos a acenar a cabeça em sinal de aprovação, mesmo que isso signifique aprovar o absurdo. É gente que chateia quem está abaixo e dobra a espinha quando fala para cima; gente que não quer chatices, mas quer manter um lugarzinho na respectiva empresa. 

Acontece que também há quem diga “não” aos “senhores doutores”. Acontece que há quem queira mesmo as empresas públicas a prestar Serviço Público. Em regra são “encostados”. Mas também há sempre alguém muito competente que as administrações conhecem do privado e que são “indispensáveis” no público. Em regra, são bem pagos e entram “por cima” com contrato blindado. Geralmente, a tutela aplaude tudo isto. Afinal, a administração (da empresa pública) é que sabe, gosta a tutela de dizer. Todos os governos gostam a determinado momento de dizer que não interferem na administração das empresas públicas. É assim uma espécie de pin que colocam na lapela. Assim estamos, assim vamos. 

Entretanto, à chegada de cada nova administração que nomeia novas direcções e respectivas cadeias de comando, é esquecida a dedicação e a competência dos que trabalham e assistem ao desfile das administrações. Cada administração que chega vem com aquela ideia da “empresa nova” (lembram-se da teoria do “homem novo”? é quase o mesmo…), o que está para trás não conta, interessa é o futuro. Como se a história das empresas e de quem nelas trabalha fosse capital a desprezar.

Misturar a gestão de génese privada com a administração das empresas públicas é quase como pretender misturar azeite com água. Enquanto em Portugal o público e o privado não estiverem em campos bem demarcados e enquanto os muitos empreendedores de quem permanentemente se anunciam os méritos continuarem a ser chamados para as empresas públicas, aplicando os métodos de gestão características das empresas privadas, o resultado vai ser mau.

Esta casta de gestores e respectivas tutelas políticas nunca irão perceber que o eventual “prejuízo” das empresas públicas pode representar enormes ganhos sociais. Ao invés, nunca irão perceber que as contas certinhas das empresas públicas podem significar enormes prejuízos para toda a sociedade e em particular para os mais desfavorecidos e para a própria democracia.

A dança de cadeiras e interesses entre o privado e o público mata o Estado e “mata-nos” a todos. E é o Estado – somos nós – quem paga. Esta dança, que não é um tango nem uma valsa, tem com certeza um andamento fúnebre. Assim será enquanto em Portugal não existir uma “escola” de Serviço Público que dê ao sector público gestores que queiram mesmo dedicar-se ao Serviço Público e não passem por ele apenas em comissão de serviço e à espera de uma qualquer chamada que os leve de novo a uma empresa privada.

Pinhal Novo, 1 de Setembro de 2016
josé manuel rosendo