O dia-a-dia na Síria é mais ou menos assim. Salma, Agosto de 2012.
Diz a Rádio Renascença, que o eurodeputado do PSD José
Manuel Fernandes, que esteve durante quatro dias numa visita à Turquia a ver
como são acolhidos os refugiados, sofreu um choque de realidade. Li até ao fim.
E voltei a ler. O quê? Como? Um choque de realidade? Tem andado distraído? Ainda
não tinha dado pelas consequências de uma guerra que dura há quase cinco anos?
As notícias e as imagens não chegam a Bruxelas e a Estrasburgo? Quando alguns
líderes mundiais já não se coíbem de admitir a possibilidade de uma guerra
mundial, há um senhor eurodeputado que ainda não tinha dado por isso? Não tinha
noção de qual é a realidade na Síria e nos países à volta? E fico-me por aqui…
porque tinha vontade de fazer perguntas mais desabridas.
O eurodeputado português sofreu um choque de realidade e
ainda assim ficou na Turquia, a 80 quilómetros da fronteira com a Síria. Já se
imagina o que diria José Manuel Fernandes se tivesse atravessado a linha que
divide os dois países. Apesar de tudo valha-nos a sinceridade: “A urgência que
eu constatei e que não tinha interiorizado são aqueles milhões que ainda estão
do lado da Síria, a viver em situações de penúria e em muito maior dificuldade
do que aqueles que estão do lado da Turquia, e esses não me saíram do
pensamento”. Não tinha interiorizado? Nem com um português (Guterres) durante
anos a liderar a agência da ONU para os refugiados e a chamar constantemente a
atenção para o drama? Nem assim?
Sei, por experiência própria, que sentir a guerra ao vivo é
muito diferente de ver a guerra através da televisão e até admito que José
Manuel Fernandes tenha ficado espantado ao constatar a dureza das imagens nos
campos de refugiados. Admito também que apenas tenha querido abrir o coração e
transmitir a necessidade de alguém fazer alguma coisa para acabar com aquele
inferno. Nem sequer estão em causa os méritos do eurodeputado português e José
Manuel Fernandes até está nomeado para os ‘MEP Awards’ (prémio que distingue os
melhores deputados do Parlamento Europeu), sendo um dos três seleccionados para
a categoria de “Assuntos Económicos e Monetários”. Mas a surpresa revelada por
este eurodeputado perante a tragédia dos sírios, espelha bem aquilo em que está
transformada a União Europeia: um negócio, desligado da realidade, que passa a
vida absorvido por taxas de juro, bolsas, défices e orçamentos, com debates e
discussões em salões dourados. O resto?, logo se vê. Quanto muito passa-se um
cheque chorudo para acalmar consciências e ter oportunidade para umas
fotografias e um discurso com aparência de preocupação social. Mas isso não
chega. Um eurodeputado, por força das funções que desempenha, não pode ir à
Turquia e dizer que ficou chocado: tem a obrigação de conhecer aquele que é o
maior drama da história recente! Mesmo que passe a vida absorvido por dossiês técnicos.
Esta surpresa do eurodeputado confrontado com a realidade
diante dos olhos leva a outra questão: há pouquíssima informação sobre o que
está a acontecer na Síria. A situação é terrivelmente difícil e são poucos os
jornalistas que conseguem estar no terreno. Assim, talvez o senhor eurodeputado
possa apresentar uma proposta no conforto do Parlamento Europeu para ajudar
outros eurodeputados a não passarem pela vergonha de admitir que não conhecem a
dimensão da tragédia. Talvez uma proposta para o Parlamento Europeu, de alguma
forma, apoiar os órgãos de comunicação social que não têm dinheiro para
enviar jornalistas para o terreno onde a tragédia (esta e outras) ocorre.
Talvez com mais notícias, com mais imagens que atormentem as consciências, o
senhor eurodeputado nunca mais possa dizer que não sabia.
O senhor eurodeputado
sabe que o Parlamento Europeu convida muitos jornalistas, sabe que as grandes
empresas e as feiras internacionais convidam jornalistas, sabe tudo isso, e
também deve saber que os refugiados e os que sofrem numa guerra não convidam
jornalistas. Cada vez mais, onde há dinheiro há jornalistas. Por isso quase não
há informação sobre o que se passa na Síria e arredores, ou no Iraque, ou na
Ucrânia, ou na Líbia. O negócio, neste momento, é outro. É assim que estamos, de
pernas-para-o-ar.
Pinhal Novo, 12 de Fevereiro de 2016
josé manuel rosendo
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