terça-feira, 12 de novembro de 2013

10 anos depois, o cheiro da morte em Nassíria



Nassíria, sul do Iraque, 12 de Novembro de 2003, mais ou menos 10h45 (hora local), menos 3 horas em Lisboa. Tinha chegado a Nassíria na véspera e a noite tinha sido pouco dormida. Manhã cedo disse a Laith, meu tradutor e guia, para darmos uma volta pela cidade para, juntamente com a observação da véspera, alinhar umas ideias para o directo que planeava fazer no jornal das 8h00 da Antena 1. O Subagrupamento Alfa da GNR (128 homens) estava em Lisboa a preparar-se para entrar num avião com destino a Nassíria. Era o assunto do dia.
 
As notas do meu bloco assinalavam uma cidade calma, já com um calor sufocante e em que não havia sinais de hostilidade. Já estava a caminho do hotel onde tinha o satélite (dos grandes) quando o enorme estrondo abafado, seguido de uma forte deslocação de ar, fez levantar e quase virar o jipe em que seguíamos. O ar atravessou o jipe pelas janelas abertas e haveria de despedaçar as janelas do hotel a poucas centenas de metros. Seguiu-se uma chuva de flocos negros, pó e pedaços de tudo e mais alguma coisa. Olho para o local de onde sopra o “vento” e vejo um enorme cogumelo de fumo negro: uma explosão, quase de certeza um atentado.
 
Laith pára o carro e corremos pela rua paralela ao Rio Eufrates onde se instala a confusão. A Base Libeccio, uma das duas que a MSU tinha dentro de Nassíria e que apenas tinham uma ponte a separá-las, tinha sido atacada. Há carros em chamas, a base envolta em fumo, destroços por todo o lado, gente a chorar e a correr. A nuvem provocada pela explosão começa a dissipar-se, tento registar na memória tudo o que está à minha frente. Registo, registo, tento registar tudo e já só quero sair dali a correr para telefonar para a Antena 1. Mas é preciso tentar saber mais alguma coisa: onde estão os oficiais de ligação que a GNR já tinha em Nassíria? Alguns deles dormiam naquela base. Tarefa impossível naquele momento.
 
Com a frieza possível, defino prioridades: ir para o hotel e dar a notícia. Cerca de 400 metros a correr com Laith por entre homens armados. Surgiram armas de todos os lados numa cidade que tinha transmitido uma imagem diferente. Chegamos ao Hotel Al Janoob que não tinha vidros e encontro o meu quarto tapado com um manto de pó e vidros, das portas apenas os caixilhos. Ligo o telefone satélite, rebobino o filme que registei na memória uns minutos antes e despejo a informação. Mortos, muitos, de certeza, sem saber quantos. Provavelmente atentado.
 
De regresso ao local encontro o Major Mariz dos Santos (ainda tenho dificuldade em tratá-lo por Coronel…) e digo-lhe que naquele momento tem que me dar uma pequena entrevista: têm de o ouvir em Portugal. Afectado mas em condições emocionais de responder, o Major Mariz dos Santos diz-me que ninguém da GNR foi ferido e lembra-me de uma conversa que tivéramos na véspera: “Como eu disse tudo podia acontecer com o extremismo e isso está aqui à vista”. De facto, tinha deixado o alerta e já não tinha dúvidas de que tinha sido um atentado.
 
Os números oficiais referem 19 mortos italianos e 8 iraquianos, com 82 feridos registados no hospital de Nassíria. Ainda hoje não acredito que apenas tenham morrido apenas 8 iraquianos. Cheirava a morte nas margens do Eufrates. Em Lisboa a GNR entrava no avião para o Iraque.
 
Nesse dia 12 de Novembro, a sorte esteve com os jornalistas portugueses que estavam em Nassíria: Domingos Andrade, Alfredo Cunha (autor das fotos que ilustram este texto e às quais recorri porque as que eu próprio tirei ser-me-iam roubadas no dia seguinte…) e eu. O Domingos e o Alfredo tinham estado na base atacada poucos minutos antes, eu estava a cerca de 200 metros, e os três tínhamos estado lá no dia anterior.
À noite pedem-me um directo para a RTP mas os militares da MSU que já tinham cercado a zona não me autorizam a passar. O Comandante Di Pauli (dos Carabinieri) que nos tinha recebido na noite anterior com um grande sorriso de satisfação por estar a terminar a missão sem baixas, esteve à minha frente e não me reconheceu apesar de termos conversado longamente na noite anterior graças à sua facilidade em falar português.
 
Nesse dia, aquele atentado antes do meu directo, evitou que eu tivesse sido um jornalista “mentiroso”. A cidade calma que estava registada no meu bloco de notas não era Nassíria. Há dias que não se esquecem.

 

josé manuel rosendo

Pinhal Novo, 12 de Novembro de 2013