domingo, 27 de setembro de 2020

África: quando o que é mau pode ficar ainda pior.

 

Testes em Hospital de Adis Abeba, Etiópia. Foto em www.africa.cgtn.com, de Xinhua/Michael Tewelde


Existem muitos dados que mostram a dimensão dos efeitos da pandemia e a devastação que atinge as pessoas em países mais vulneráveis. Numa investigação recente em 14 países, 7 dos quais africanos, o Conselho Norueguês para os Refugiados indica que três quartos das 1.400 pessoas questionadas referem uma pesada degradação da sua situação: 77% perderam o emprego ou viram os salários reduzidos; 70% reduziram o número de refeições e 73% dizem que as dificuldades financeiras travam o envio das crianças para a escola. O secretário-geral desta ONG, Jan Egeland, sublinha que as comunidades mais vulneráveis do mundo estão numa perigosa espiral descendente.


Vários líderes africanos voltaram a pedir esta semana, na Assembleia Geral da ONU, mais solidariedade internacional e que seja perdoada a dívida pública dos respectivos países. Antes do G20 ter suspendido o reembolso destas dívidas até ao fim do ano, a União Africana já apelara para que essa suspensão vigorasse até ao final de 2021, mas o Presidente da Nigéria sublinhou que uma simples moratória não é suficiente face aos desafios existentes e aos que a pandemia veio acrescentar. Os líderes africanos alertam que todos os esforços de desenvolvimento económico da última década podem ficar reduzidos a pó.

Apesar de os números conhecidos (cerca de 35.000 mortos e menos de dois milhões de casos de covid-19) mostrarem que África é um dos continentes menos afectados, a fragilidade das economias e os vários conflitos que tocam diversas zonas do continente, potenciam os danos que a pandemia pode provocar.

Para se ter uma ideia menos abstracta da fragilidade africana, o mais recente (Junho de 2020) relatório da Organização Mundial da Saúde, sobre África, mostra que apenas 51% das unidades de saúde na África subsaariana têm serviços básicos de acesso à água; 47% das escolas não têm água corrente e apenas 21% têm água e sabão para a lavagem das mãos.

Os países africanos precisam de libertar recursos para acudirem ao combate à pandemia, bem como ao combate a outras doenças como a malária e o VIH. Não ter recursos para estas necessidades, nem para manter a funcionar economias que garantam os mínimos de sobrevivência, pode ser uma mistura explosiva para um desastre que se está a anunciar.

A ONU já veio defender o congelamento da dívida em todo o continente africano e publicou um relatório onde afirma que são necessários cerca de 169 mil milhões de euros para ultrapassar as dificuldades. Esta é a “receita” imediata, mas é bom ter em conta a incerteza relativamente à dimensão da pandemia no continente: reduzido número de testes, desconhecimento da causa de muitas mortes, saneamento muito precário, grandes limitações de acompanhamento médico e dificuldades na aplicação de medidas de distanciamento.

No início de Setembro, o Presidente do Gana defendeu uma nova arquitectura financeira mundial e avisou que a catástrofe se assemelha à do final da segunda Guerra Mundial. O FMI advertiu que, a sul do Sahara, o PIB possa ser menos 243 mil milhões de dólares em relação aos valores projectados em Outubro de 2019 e que 39 milhões de pessoas podem cair na pobreza extrema.

A solidariedade deve ser permanente, mas há agora uma oportunidade para que o mundo, e em particular a União Europeia, proporcionem ao continente africano o apoio necessário para combater a pandemia. Não por uma questão de redenção face a tempos passados, mas porque o futuro mais promissor, para europeus e africanos, passa por uma relação útil aos dois continentes e porque, principalmente, África precisa dessa ajuda.

É certo que África também terá de se saber ajudar, reduzindo os níveis de corrupção e resolvendo com diálogo o que tem tentado resolver com a força das armas. Também é certo que será difícil dizer como a União Europeia poderá ajudar países como a Líbia – há uma década em guerra civil – ou a Somália, país onde o Estado é uma miragem, já para não falar em toda a região do Sahel. Mas haverá certamente uma forma de fazer chegar ajuda e garantir que não será desbaratada. África é já ali.

Pinhal Novo, 27 de Setembro de 2020

josé manuel rosendo


domingo, 13 de setembro de 2020

Palestina, e agora?

        Líderes do Bahrein e dos Emirados Árabes Unidos. Fotografia: newsbeezer.com

Primeiro, os Emirados Árabes Unidos, agora o Bahrein. No espaço de um mês, dois países árabes normalizaram relações com Israel, depois de dois outros, Egipto (1979) e Jordânia (1994) terem assinados tratados de paz com o Estado hebraico. Em contextos diferentes, certo é que são quatro os países árabes que se relacionam normalmente com Israel. Após o anúncio da normalização das relações entre Israel e os Emirados, a Administração norte-americana apressou-se a dizer que outros países árabes se seguiriam e assim aconteceu. Falta saber qual se vai seguir.

 

Alguns países árabes, nem pensar, como é o caso do Líbano, Síria, Iémen ou Iraque, países inimigos de Israel; outros que por ausência de um verdadeiro Estado ficam desde logo descartados, como é o caso da Somália e da Líbia; mas outros há que talvez possam seguir o caminho dos quatro que já acederam à vontade de Israel e dos Estados Unidos. 

 

A atenção dos Estados Unidos e de Israel parece centrada em ganhar terreno nas monarquias do Golfo Pérsico, porque na outra margem está o Irão. O argumento de que o grande país xiita é uma ameaça aos pequenos países do Golfo, funciona na perfeição, obviamente com o acordo da Arábia Saudita, que apesar de ser a guardiã dos lugares santos do Islão, não hesitará em abraçar Israel, embora não lhe convenha ser dos primeiros. O Irão é o elo que – involuntariamente – ajuda a construir esta teia de interesse comum, mesmo entre protagonistas com divergências históricas. Outro assunto é a presença norte-americana no Golfo e o negócio das armas, com Washington a assinar contratos dos mais valiosos de sempre em exportações para as monarquias dos petrodólares.

 

Assim sendo, no Golfo, para mais acordos de normalização podem estar países como Omã (país que tenta a neutralidade e é próximo do Irão e também dos Estados Unidos) e o Koweit (que apesar da proximidade com Washington sempre tem rejeitado a normalização com Israel). Resta o Qatar, forte apoiante da Faixa de Gaza (e do Hamas), vítima de um bloqueio económico por ter relações com o Irão, mas é lá que – à hora a que escrevo – decorrem as negociações entre Taliban e Governo do Afeganistão, com a presença de Mike Pompeo. O Qatar não dará esse passo com Israel.

 

Há ainda outras possibilidades que têm sido referidas como é o caso de Marrocos ou do Sudão, países que poderiam receber como moeda de troca a concretização de algumas aspirações que dependem da real politik a nível internacional.

 

Sendo que o caminho da paz é sempre o desejável, essa paz apenas será sustentável se houver dignidade no calar das armas e no aperto de mão ao inimigo. E a revelação que é feita neste caminho é a de que alguns líderes árabes, mais preocupados com o próprio poder e em manter uma relação com países poderosos, sacrificam uma causa que tanto os indignou e abandonam o campo de batalha sem honra. Não por terem recusado a via das armas, mas porque fica pelo caminho a aspiração dos palestinianos a terem um Estado. 


A “solução dois Estados” de que tanto se fala é cada vez mais uma miragem. A causa palestiniana está a definhar e a aproximar-se da extinção, vítima também da própria divisão interna, de uma Liga Árabe que não quer ou não sabe defender os palestinianos, de Governos em Israel e nos Estados Unidos que nunca foram tão à direita e, logo, preferem impor a negociar seja o que for, e por fim, porque são vítimas de uma outra guerra, neste caso com o Irão, declarado inimigo dos Estados Unidos, Israel e monarquias do Golfo. A Liga Árabe deu um sinal claro de divisão quando, na última reunião, recusou aprovar a condenação da normalização de relações de Israel com os Emirados Árabes Unidos, apresentada pela Palestina.


Estamos perante a batalha perfeita para derrotar a causa palestiniana, sem necessidade de disparar um único tiro. A “Arte da Guerra”, de Sun Tzu, em toda a sua plenitude.

 

Mas desta machadada na causa palestiniana, deve ficar também registada a derrota das Nações Unidas. Não há tema que tenha consumido tantas horas de trabalho desde que a ONU nasceu, como o dos acordos israelo-árabes. Produziram-se Resoluções sucessivamente desrespeitadas, mas nunca houve sanções contra ninguém. Tem de ser dito que a construção das  condições que inviabilizam a criação de um Estado da Palestina, é uma derrota estrondosa das Nações Unidas e deixa a nu a incapacidade de regulação de conflitos. Talvez um dia destes, talvez António Guterres, rode a chave pela última vez. Pelo menos na ONU tal como a conhecemos.

 

Pinhal Novo, 13 de Setembro de 2020

josé Manuel rosendo

domingo, 6 de setembro de 2020

Napoleão esteve em Beirute?

Emmanuel Macron, esteve pela segunda vez na capital libanesa desde a explosão no porto de Beirute. O Líbano está em cacos, devido a essa explosão, mas também devido a uma crise política, social e económica, com raízes profundas no sistema político, na presença de mais de um milhão de refugiados sírios e na corrupção transversal a todos os sectores da sociedade. Os libaneses conhecem essa realidade melhor do que ninguém, sofrem com ela, pagam um preço elevadíssimo e desde Outubro do ano passado que saíram à rua exigindo mudanças.

 

Perante este cenário e com as imagens da explosão ainda frescas na memória, muitos entendem que a mudança é agora ou nunca. O Presidente francês é um deles e foi a Beirute dizer que esta é a última oportunidade para o sistema libanês e logo aí entrou em contradição, porque disse também que acompanha a pressão que os libaneses fazem para convencer a classe política a mudar de atitude. Ora, não é possível dar uma última oportunidade ao sistema e apoiar quem quer mudar o sistema. Uma das propostas de Macron aponta para eleições dentro de um ano, quando a “rua” quer mudanças, ontem. Macron passeava em Beirute e já a “rua” o acusava de estar a falar com a classe política libanesa corrupta, em vez de estar a falar com os libaneses que querem uma mudança radical no Líbano. Segunda acusação feita pela “rua”: Macron foi a Beirute apenas para defender os interesses franceses.

 

Emmanuel Macron chegou a Beirute já de noite e preparou o terreno com uma visita a Fairuz, a diva da canção árabe (a Amália dos libaneses, para facilitar a comparação). Uma espécie de tributo ao povo, deixando os políticos para segundo plano. A excepção foi o antigo primeiro-ministro (sunita) Saad Hariri, um encontro logo a seguir ao de Fairuz.

No segundo dia, Macron esteve nas cerimónias do centenário do “Grande Líbano”, foi ao porto, falou com ONG’s e com representantes da ONU, com associações civis e com empresas privadas envolvidas na reconstrução do porto, e só depois foi recebido no Palácio Presidencial, para o indispensável almoço oficial. No mesmo dia, à tarde, falou com o Patriarca Maronita e, por fim, a fechar o programa, encontrou-se com “os principais dirigentes políticos”. O próprio programa oficial espelha a pressão que Paris faz chegar a Beirute.

 

O "programa de governo"


Qual ponta de lança do FMI, o presidente francês levou a Beirute um conjunto de exigências – a expressão não é exagerada, tendo em conta o que se ouviu de Macron – que “encostam o Líbano à parede”. Assim uma espécie de “não há alternativa” com que, em tempos idos, fomos confrontados em Portugal, e sabemos agora que não era bem assim.


Antes de Macron anunciar as medidas que podem “salvar” o Líbano, a embaixada de França fez chegar aos principais líderes políticos libaneses um projecto de programa para o novo governo. Para além de medidas sobre a ajuda imediata ao combate à pandemia e à reconstrução do porto, a proposta francesa impõe a retoma imediata das negociações com o FMI e aprovação de medidas solicitadas pelo credor (FMI), incluindo uma lei de controlo de capitais e uma auditoria ao Banco Central; reformas no sector da energia, que incluem um calendário para o aumento do preço da electricidade; o Parlamento deve aprovar uma Lei sobre controlo de capitais que terá de ser aprovada pelo FMI. Há ainda um conjunto de normas de combate à corrupção, nomeações para sectores estratégicos, reforma da contratação pública e, finalmente, eleições dentro de um ano, depois de alterada a lei eleitoral. Sobre este ponto é exigido que a nova Lei faça a plena inclusão da sociedade civil, permitindo que o Parlamento seja mais representativo da sociedade. Não é dito de forma explícita, mas a proposta significa uma alteração da divisão de poderes – o pacto político – que rege o Líbano desde há décadas. Macron revelou um conjunto de tópicos e indicações que são um verdadeiro programa de governo, para um Primeiro-Ministro, Moustapha Adib, ainda a formar gabinete e de cuja nomeação a “rua” libanesa diz ser um exemplo da interferência estrangeira no Líbano. Moustapha Adib saiu de embaixador libanês na Alemanha, para assumir a liderança do próximo governo libanês.

 

Ao conjunto de exigências que devem ser cumpridas pelo novo governo, Emmanuel Macron acrescentou que ninguém passa cheques em branco e que não vai ser dada carta-branca ao Líbano. Para haver dinheiro, terá de haver mudanças!

 

Por muitos cedros que Emmanuel Macron plante no Líbano, não é difícil imaginar como o “estômago” de alguns libaneses deve ter ficado às voltas. Um presidente estrangeiro – com toda o histórico entre França e o Líbano – a dizer aos libaneses (quase a espetar-lhes o dedo no nariz) o que têm de fazer.

 

A indecência só não foi maior porque deve ter havido alguém com um pingo de bom-senso que colocou Macron a fazer este discurso na residência do embaixador francês em Beirute.

 

Para já, e quanto à questão mais sensível (a divisão de cargos políticos entre xiitas, sunitas e cristãos, e as quotas de lugares no Parlamento), o Presidente da República, cristão, Michel Aoun, defende que o Líbano deve ser um Estado laico; o líder do movimento xiita Amal e também presidente do Parlamento, Nabih Berri, defende a mudança do sistema confessional; o Hezbollah diz que está pronto a discutir um novo pacto político, mas Hassan Nasrallah colocou como condição ser um diálogo libanês e se for essa a vontade de todas as forças políticas. Quanto aos sunitas, Hariri é um aliado francês.

 

É perfeitamente compreensível, por questões de geoestratégia, que Macron queira uma forte influencia francesa no Líbano e no Médio Oriente, mas os tiques de arrogância que transparecem do discurso e da atitude do líder francês em Beirute, podem entrar em choque com a dignidade dos libaneses.

 

Há coisas mais importantes do que ter “uma cama e uma manjedoura”, porque as pessoas não são animais, e a dignidade é uma delas. Talvez Beirute ensine esse conceito a Macron.

 

Macron promete voltar ao Líbano em Dezembro.

 

Pinhal Novo, 6 de Setembro de 2020

josé manuel rosendo