Foto de um mural nas ruas de Benghazi, a 2 de Março de 2011
Cinco anos depois da morte de Kadhafi a Líbia está
mergulhada no caos. E é esse caos que legitima a pergunta: valeu a pena afastar
Kadhafi? Se todos temos legitimidade para fazer a pergunta, apenas os líbios
têm legitimidade para responder porque são eles que estão a pagar a factura.
Aliás, a pergunta mais frequente, “manter Kadhafi, ou
o caos”?, é absolutamente inadequada. É como se ao povo líbio apenas pudessem
ser colocadas essas duas possibilidades e não houvesse uma outra solução: a de
viver em paz e com governantes decentes.
Em Março de 2011, quando Kadhafi dava sinais de insanidade,
ameaçando uma carnificina quando reconquistasse Benghazi e prometendo uma
perseguição (“zenga-zenga”) rua-a-rua, casa-a-casa, para caçar rebeldes, alguns
países ocidentais decidiram intervir. Nicolas Sarkozy, presidente francês, foi
um dos mais entusiastas. Muitos outros partilharam esse entusiasmo, embora os
Estados Unidos tenham adoptado a chamada estratégia leading from behind (liderança
a partir do banco de trás). Kadhafi, diziam, enlouquecera. Não andariam longe
da razão. As imagens televisivas de Kadhafi a discursar na Praça Verde (nome
com que Kadhafi rebaptizara a Praça dos Mártires, em Tripoli) mostravam um
homem desvairado com fortes sintomas de ter “perdido o juízo”.
Os rebeldes, desorganizados, tinham dificuldades em combater
as forças especiais lideradas por filhos de Kadhafi. Depois da surpresa inicial
e das perdas territoriais, as tropas especiais recuperaram terreno e
rapidamente ficaram às portas de Benghazi. E foi aí que a força aérea ocidental
entrou em acção. Faltavam talvez 3 ou 4 quilómetros para que o primeiro tanque
da coluna fiel a Kadhafi entrasse na cidade rebelde. A carcaça do tanque vítima
desse primeiro ataque aéreo ficou no local durante bastante tempo. Não houve
“zenga-zenga”.
Esta intervenção estrangeira teve a aprovação do Conselho de
Segurança da ONU (com a abstenção da Rússia) mas a resolução aprovada não tinha
uma interpretação consensual. A resolução impunha uma zona de exclusão aérea e
autorizava “todas as medidas necessárias para proteger a população civil”. O
problema é que ser civil também podia ser sinónimo de ser rebelde e a resolução
aprovada serviu claramente para atacar as forças de Kadhafi com o argumento de
que assim se pretendia impedir ataques a populações civis. Os rebeldes
beneficiaram claramente desta situação. A Rússia discordou porque interpretava
a resolução de forma diferente e foi esta diferente leitura da resolução para a
Líbia que, depois, bloqueou no Conselho de Segurança várias resoluções sobre a
Síria.
Sabemos hoje, mais de 5 anos depois do início da revolta na
Líbia, como terminou o regime de Mohammar Kadhafi. O que talvez fosse
importante discutir é a forma como estas intervenções estrangeiras têm lugar,
sem qualquer preocupação que acautele o futuro dos países intervencionados.
Poder-se-á questionar logo à partida se este tipo de intervenção tem alguma
legitimidade à luz do Direito Internacional. É, de facto, uma questão para a
qual não existe resposta consensual. Mas, admitindo que as intervenções
acontecem – concordando-se ou não – uma outra questão se coloca: quem intervém
não tem também a obrigação de proteger o país intervencionado? Desde há algum
tempo que, associada às intervenções de carácter humanitário, surgiu a “responsabilidade
de proteger” (RtoP ou R2P– responsibility to protect – na sigla em inglês),
mas no caso da Líbia, se alguma protecção existiu enquanto Kadhafi resistiu,
ela desapareceu por completo logo que Kadhafi foi morto.
De 2011 vem uma frase do presidente do Chade, Idriss Beby,
que ilustra bem a situação na Líbia: “Não asseguraram o serviço pós-venda”.
Barack Obama também reconheceu que foi subestimada a necessidade de uma
presença ocidental no período pós-Kadhafi. Mas também é verdade que os líbios
não queriam tropas estrangeiras no terreno. Disseram-no repetidamente.
Recordo-me bem de estar em Benghazi no dia da primeira reunião do Conselho Nacional
de Transição. O comunicado emitido e distribuído foi depois rectificado e
novamente distribuído porque não explicitava essa recusa de tropas estrangeiras
no terreno.
Os líbios ficaram como queriam, sem potências estrangeiras a
interferir no terreno. Não houve boots on the ground mas houve muitas armas que
atravessaram a fronteira. Nos dois sentidos. A Líbia está partida. Dois
governos, dois parlamentos, senhores da guerra, Estado Islâmico com uma forte
presença, futuro absolutamente incerto.
Mohammar Kadhafi, ora acusado de terrorista ora recebido com
pompa nos palácios ocidentais, foi morto nas proximidades da cidade de Sirte a
20 de Outubro de 2011, não muito longe do local onde nasceu, quando tentava
fugir do cerco à cidade. Foi apanhado por rebeldes, escondido numa conduta. Depois
de Kadhafi fugir de Tripoli, em Agosto, os rebeldes sempre disseram que só
descansariam quando o apanhassem, vivo ou morto. Há muitas versões sobre a
morte de Kadhafi que responsabilizam diferentes actores. Uma dessas versões é a
de que terá sido morto pela sua própria pistola em dourada. Terá sido um jovem
rebelde a dar o tiro fatal. Terá sido, porque uma reportagem da BBC em
Fevereiro deste ano, descobriu em Misrata a arma de Kadhafi e o jovem (então
com 17 anos) que foi fotografado com ela enquanto era levado aos ombros no
momento em que Kadhafi foi capturado e morto. O jovem nega ter sido o autor do
disparo fatal.
Na perspectiva de quem apenas quer viver em paz, com justiça
e liberdade, tudo correu mal na Líbia. Depois do ditador – é bom não esquecer
que Mohammar Kadhafi esteve mais de 40 anos no poder e conquistou-o através de
um golpe de estado, em 1969, que afastou o Rei Idris – os líbios demoram a encontrar
o caminho. Seria bom, pelo menos, que o mau exemplo líbio fosse tido em conta,
mas se pensarmos em Mossul, no Iraque, não é isso que está a acontecer. Já foi
assim com Saddam – afastado sem que, quem o afastou, tivesse sequer noção de
como ia ser o day after – e vai ser assim no combate ao Estado Islâmico em
Mossul: não há nenhum plano para o dia seguinte. Pode vir a ser mais uma zona
de caos.
Pinhal Novo, 20 de Outubro de 2016
josé manuel rosendo