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terça-feira, 11 de julho de 2017

Morreu o Califa (viva o Califa?)


Dizem que o líder do Estado Islâmico (EI) morreu. A morte de Abu Bakr al Baghdadi já tinha sido anunciada pela Rússia há cerca de um mês e pela agência iraniana de notícias durante a semana passada. A notícia foi então dada sem pormenores e sem fontes. A Rússia disse que Al Baghdadi morreu durante um bombardeamento aéreo russo na Síria, perto de Raqa, a capital do Califado.

Desta vez a notícia é avançada pelo Observatório Sírio dos Direitos Humanos (OSDH) que cita "altos responsáveis do EI na Síria". Mais uma vez, sem pormenores. Não se sabe como, quando, nem onde. Mas o OSHD é geralmente bem informado e tem uma alargada rede de contactos em todo o território.

Há três anos que Al Baghdadi não era visto. Aliás, a última vez que surgiu em público foi precisamente em Mossul, na Mesquita de Al Nouri, onde anunciou o Califado. De Novembro de 2016 conhece-se um registo áudio que lhe é atribuído onde é feito um apelo à resistência e à defesa de Mossul.
Tal como a morte de Bin Laden continua a suscitar dúvidas, também a morte de Abu Bakr al Baghdadi levantará dúvidas até que alguma imagem esclareça a sorte do Califa.
Da mesma forma que a morte de Bin Laden não significou o fim da Al Qaeda (o actual líder, Ayman al-Zawahiri, continua activo e em parte incerta...), é legítimo duvidar que a morte de Abu Bakr signifique o fim do EI. Mesmo que Al Baghdadi tenha de facto morrido, a satisfação que isso pode significar será apenas um momento fugaz.

Tal como ainda hoje se diz nas monarquias "morreu o Rei, viva o Rei", não irá demorar que alguém diga "morreu o Califa, viva o Califa".
A ver vamos se haverá seguidores. Abu Bakr al Baghdadi escolheu este nome (era, de facto, Ibrahim Awad al Badri) por ser o nome do primeiro Califa que sucedeu ao Profeta Maomé; veremos se vai surgir alguém com o nome de Omar (Ibn al-Khattab), o califa que sucedeu ao primeiro Abu Bakr e que foi escolhido pelo próprio Abu Bakr pouco antes de morrer. Falta saber se aquele que se autoproclamou Califa, na cidade de Mossul, também designou um sucessor.

É por demais evidente que o Estado Islâmico está a sofrer golpes sucessivos. Tem vindo a perder território, Mossul era a sua maior cidade e era também o grande suporte económico. Neste momento resta Raqa, na Síria, a capital do Califado que está cercada pelas Forças Democráticas da Síria (FDS - uma aliança de curdos e tribos árabes que contam com a ajuda de milícias cristãs) e, tal como Mossul, é uma questão de tempo. Há ainda vastos territórios controlados pelo EI mas menos habitados e de menor relevância económica e estratégica.

O EI, tal como se deu a conhecer no Verão de 2014, já não existe. Havemos de ver se o que está para vir é melhor ou pior do que aquilo que conhecíamos até agora. É bom ter a noção de que não se sabe o que está a acontecer aos milhares de combatentes do Estado Islâmico. Estão a ser mortos, conseguem fugir ou são feitos prisioneiros? Não há informação substancial sobre esta questão.

Pinhal Novo, 11 de Julho de 2017

josé manuel rosendo

quarta-feira, 22 de fevereiro de 2017

Mossul, ofensiva militar sem plano político


Dá sempre mau resultado. O Governo iraquiano, apoiado por milícias xiitas, conselheiros da coligação internacional e também do Irão, está a combater o Estado Islâmico em Mossul, mas não tem um plano para depois da vitória anunciada. Na verdade, existe um plano do Governo de Bagdad, mas não é um plano que garanta um futuro de paz. O Governo xiita do Iraque olha para a Mossul sunita da mesma forma que olha para a Bassorá xiita ou para zonas em que mantém autoridade, vendo apenas território (e recursos) que considera seu. E é precisamente isso que os sunitas de Mossul não querem: não querem ser governados por xiitas ou, no mínimo, mesmo sob a alçada de um Governo xiita em Bagdad, querem ter a sua própria gente a governar uma cidade de que se consideram legítimos donos e herdeiros.

Este tipo de abordagem meramente militar costuma sair caro: militares no terreno para derrotar um inimigo mas sem qualquer plano político para o futuro da área disputada, e que aconchegue os vários interesses em jogo, degenera frequentemente em novos conflitos.

A derrota militar do Estado Islâmico em Mossul é apenas uma questão de tempo, mas não se sabe quanto tempo. Vai demorar até chegar o dia em que a bandeira do Iraque possa ser içada em todas as ruas da cidade.  Quantas vidas vai custar é outra pergunta para a qual não há resposta.

Os muitos milhares de homens bem equipados ao serviço do Governo iraquiano ajudados por milícias e ataques aéreos da coligação internacional trancaram os combatentes do Estado Islâmico na cidade. Ao que se sabe não há rota de fuga porque a ligação à fronteira síria foi cortada. Não se sabe ao certo quantos homens tem o Estado Islâmico e quais os recursos de que ainda dispõe após meses de combate e a quase ausência de reabastecimento. 

Peritos militares norte-americanos citados nos órgãos de comunicação social admitem que o Estado Islâmico não disponha de uma força superior a dois mil homens. Em termos estratégicos, os especialistas dizem que vamos assistir a um recuo dos combatentes do Estado Islâmico para as zonas mais habitadas da cidade e aí sim, vai ser lutar até ao fim. Até à morte. Ruas e vielas da zona ocidental de Mossul, com mais de meio milhão de habitantes ameaçam tornar-se num inferno. Até agora as declarações dos responsáveis militares iraquianos vão no sentido de evitar os bombardeamentos com artilharia pesada para poupar a vida dos habitantes.

A fuga dos habitantes de Mossul prevista pela ONU quando a ofensiva começou a 17 de Outubro de 2016, não teve a dimensão esperada. Desta vez não se sabe como vai ser. Muitos dos que então não fugiram de Mossul terão atravessado o Rio Tigre em direcção à margem ocidental onde está o último reduto do Estado Islâmico.

O Governo do Iraque e o Governo Regional do Curdistão não divulgam as baixas militares. A única coisa que se sabe é que o Governo Regional do Curdistão admitiu que desde o início da ofensiva militar os hospitais de Erbil acolheram 14 mil feridos (civis e militares).

Um sinal do que pode acontecer num futuro próximo é dado por Atheel al Nujaifi, antigo Governador do Nínive, e de Mossul, um militar sunita que criou a sua própria milícia e que vive em Erbil (capital do Curdistão iraquiano) desde que o governo de Bagdad emitiu um mandado de captura contra ele. Atheel Al Nujaifi fugiu da cidade aquando do avanço do Estado Islâmico e acusa Bagdad de não lhe ter dado o apoio que pediu nessa altura. Al Nujaifi considera que Mossul deve ser governada por sunitas da própria cidade e não por gente enviada de Bagdad. Justifica dizendo que é a única forma de resistir ideologicamente, e não apenas pela força militar, ao Estado Islâmico. Isto é: se a cidade for governada por xiitas, a população terá tendência a apoiar os extremistas e nova insurgência pode emergir.

Os Estados Unidos já disseram que pensam ficar após a conquista de Mossul, mas nesse caso terão de esperar por um convite do Governo iraquiano. Se assim for, a vontade do Irão também conta. Dos cerca de 9 mil homens da coligação internacional de 60 países, mais de metade são norte-americanos. Os Estados Unidos saíram do Iraque, mas voltaram em força. Só que neste momento as coisas mudaram e a prova disso foi a forma como o novo secretário norte-americano da defesa, Jim Mattis, se apresentou na primeira visita a Bagdad, dizendo que os Estados Unidos não estão no Iraque por causa do petróleo nem para o monopolizar. Para além disso há o decreto de Donald Trump a impedir a entrada de cidadãos de sete países de maioria muçulmana, entre eles o Iraque. A ver vamos como responde Bagdad a esta intenção norte-americana.

21 de Fevereiro de 2017

josé manuel rosendo

segunda-feira, 21 de novembro de 2016

Memórias do Irangate num check point no Iraque


Há dias assim: esperamos, esperamos… e nada. Esta segunda-feira, a força de elite do exército iraquiano, a “Divisão Dourada” decidiu que os jornalistas não passavam do chek point que antecede Bertalla, na estrada para Mossul. Por ali ficámos horas a fio à espera de uma luz-verde que nunca chegou.

Nos dias assim e em circunstâncias como as de hoje, os jornalistas metem conversa entre eles: de onde és, para quem trabalhas, onde estiveste ontem, como é que achas que podemos chegar aqui ou ali… são perguntas habituais neste tipo de conversa. Mas eis que, nesta segunda-feira, num check point perdido a este de Mossul, havia uma personagem que trabalha para a televisão norte-americana Fox News: Oliver North, ex-coronel dos fuzileiros navais. 

Acompanhado de uma dúzia de homens, entre seguranças, tradutores (não vi armas mas tinham carregadores nos coletes) e repórteres de imagem, Oliver North e muitos outros, depois de lhes ser barrada a passagem no check point, tal como aos jornalistas no local, desdobraram-se em telefonemas. Foram horas ao telefone. Para quem não sei, mas sei que passadas aí umas três horas, surgem dois carros blindados norte-americanos. Seguem-se contactos apressados com os militares iraquianos da força de elite que controla o check point, Oliver North e acompanhantes seguem para os quatro jipes blindados em que viajavam, formam uma coluna com um carro blindado a abrir r o outro a fechar, e dirigem-se ao check point… mas daí não passaram. O que os norte-americanos pensavam que estava resolvido (ou tentaram dar a entender que estava…) afinal não estava. Oliver North e restante comitiva voltaram para junto do grupo de jornalistas perante muitos sorrisos nada dissimulados.

A história ficaria por aqui, não se tivesse dado o caso de, quando os blindados norte-americanos recuavam do check point, ter surgido no extremo oposto uma milícia xiita (obviamente armada) que pretendia passar o mesmo check point. Discussão entre xiitas – a coisa esteve feia, muito feia, e um dos milicianos chegou a ser detido – gritaria, ânimos exaltados e… os dois blindados norte-americanos no meio, entre xiitas desavindos, sem saberem muito bem o que lhes tava a acontecer nem o que deveriam fazer. Tudo acabou em bem, prevalecendo a vontade dos homens da Divisão Dourada, donos e senhores do território.

Moral da história: os norte-americanos, sempre com aquela ideia de que o poder lhes permite mexer uns cordelinhos, podiam ter acabado entalados numa situação complicada, fruto de uma xico-espertice da comitiva de Oliver North, ao tentar resolver de forma egoísta uma situação que não o prejudicava apenas a ele. Não imagino por onde passaram os telefonemas e não sei se o ex-coronel ainda “mexe cordelinhos” no Pentágono, ou se porventura – já passaram muitos anos – ainda tem contactos criados no tempo da guerra Irão-Iraque, mas desta vez de nada lhe valeram. Ou então fez que estava a telefonar. Da Fox News (depois de ver o espectáculo que foram dando durante este dia) nada me surpreende. Desta vez, tal como no caso Irangate, as coisas não lhes correram de feição. E o mais surpreendente é que não percebem o ridículo.

Iraque, Erbil, 21 de Novembro de 2016

josé manuel rosendo

terça-feira, 18 de outubro de 2016

Mossul, todos a querem. A que preço, não importa…

Esta foto foi tirada há um ano, em Bashika, onde a Turquia tem uma base militar para formação de forças curdas e sunitas. Daqui partem os Peshmerga curdos que estão a combater o Estado Islâmico. Mossul fica a uma dezena de quilómetros.

Sem nenhuma dúvida, as noites em Mossul são mal dormidas. Por esta hora, acredito, ninguém quererá fazer a (adaptada) pergunta: Mossul já está a arder? A pergunta, a original, terá sido feita por Adolf Hitler já em fase de desespero, quando os aliados entraram em Paris e os nazis perdiam batalhas sucessivas. Paris não chegou a arder. Não consta que o Estado Islâmico prefira ver Mossul arder devido à iminência de uma derrota militar face ao ataque iniciado esta segunda-feira, mas desta vez, e ao contrário de Paris, quem parece disposto a incendiar Mossul são os que atacam a cidade.

Em Dezembro do ano passado, regressado da região, fiz a pergunta (E depois do Estado Islâmico?) http://meumundominhaaldeia.blogspot.pt/2015/12/e-depois-do-estado-islamico.html e disseram-me que estava com pressa. Não estava. A questão era (é) mesmo essa, porque eu bem ouvi o que os curdos iraquianos diziam. Quem considerava que eu estava com pressa dizia-me então que primeiro era preciso derrotar o Estado Islâmico e depois logo se via. Errado. Mossul não é Faluja, nem Ramadi. Conquistar Mossul ao Estado Islâmico e manter a cidade sem criar um novo foco de guerra exige um plano para o pós Estado Islâmico. Um plano que seja do agrado de todos os que estão envolvidos neste ataque a Mossul. O problema é que são muitos os interesses e um plano assim parece impossível. Quem ataca a cidade converge na necessidade de tirar Mossul das mãos do Estado islâmico, mas diverge em tudo o resto. E basta estar atento às mais recentes declarações para se perceber que não há plano nenhum.

Depois de uma primeira ofensiva falhada no início da Primavera, desta vez parece que é para levar até ao fim. Forças do governo de Bagdad, milícias xiitas (Unidades de Mobilização Popular), milícias de tribos sunitas, milícias iranianas, milícias do Hezbollah, Peshmerga curdos, forças fiéis ao antigo governador de Mossul, norte-americanos e turcos no terreno, e ataques aéreos da coligação internacional. Não muito longe andam os guerrilheiros do PKK e das Unidades de Protecção Popular (sírias), bem como milícias Yazidis. A lista, certamente, não é completa, mas suficiente para se perceber como vai ser difícil decidir quem fica a controlar Mossul.

Não se sabe ao certo quantos habitantes tem a cidade (a ONU refere 1,5 milhões) nem quantos são os combatentes do Estado Islâmico. Mas a coisa pode correr muito mal. Um coordenador da ONU para os Direitos Humanos já alertou: “não acusem os civis de Mossul de pertencerem ao Estado Islâmico, e que não haja execuções sumárias, nem de civis nem de membros do Estado Islâmico”. O tom do aviso deixa claro o que pode acontecer. Ainda a ONU alerta para uma nova vaga de refugiados e faz saber do perigo de os habitantes ficarem encurralados no fogo cruzado, podendo ser vítimas de franco-atiradores ou serem utilizados como escudos-humanos. A ONG Save the Children alerta para mais de meio milhão de crianças em risco.

Alguns analistas consideram que nesta batalha joga-se o futuro do Iraque enquanto país com as actuais fronteiras. O governo do Iraque joga também o tudo ou nada, devido às sucessivas crises políticas mas, mesmo derrotando o Estado Islâmico, pode vir a revelar-se incapaz de gerir a situação futura, que pode degenerar numa efectiva desintegração do país.
Antes do ataque, aviões iraquianos lançaram panfletos na cidade aconselhando a população a ficar em casa e prometendo não atacar alvos civis, mas é impossível prever a evolução da batalha e a reacção da população.

As próximas horas vão fornecer indicadores mas as mais recentes declarações são um sinal claro do caldeirão em que Mossul pode ser transformada. Moqtada al Sadr, poderoso clérigo xiita que liderou o exército de Mahdi no combate à ocupação norte-americana, disse que a batalha de Mossul é uma guerra entre o governo de Bagdad e os terroristas e que o Iraque deve recusar o apoio turco em nome da soberania iraquiana; o Presidente turco, Erdogan, disse que “está fora de questão a Turquia ficar fora da ‘operação Mossul’” acrescentando que a Turquia estará na operação militar e também na (futura) mesa de negociações; o parlamento iraquiano já votou uma moção em que considera a presença turca como “ocupação” e violação de soberania”. Sendo a maioria da população de Mossul de origem sunita, não se sabe como vai reagir à entrada de milícias e tropas xiitas. O antigo governador de Mossul – aliás, acusado de ser o responsável pela queda de Mossul às mãos do estado Islâmico em 2014 – lidera uma milícia fiel, que é apoiada pela Turquia e propõe-se ser mediador entre as forças xiitas e os habitantes da cidade. Também a ter em conta que é a primeira vez que Peshmerga curdos e forças de Bagdad combatem lado-a-lado numa operação militar. Os curdos dizem que não têm interesses em Mossul mas vão ocupando algumas zonas que foram conquistando ao Estado islâmico. Em termos de declarações mais recentes, a cereja no topo do bolo veio de Moscovo, com a Rússia – acusada de crimes de guerra na Síria - a dizer que espera que a coligação internacional no Iraque tenha uma acção com precisão que evite vítimas civis.

Várias fontes referem 30 mil homens no ataque a Mossul, que estará defendida por cerca de 4 a 8 mil combatentes do Estado Islâmico. Não se sabe onde está o “califa” Abu Bakr al Bagdadi; não se sabe como será possível distinguir entre combatentes e civis (numa cidade com mais de um milhão de habitantes). É impossível prever o tempo que esta operação vai demorar mas alguns analistas apontam para um final de batalha em zona urbana, rua a rua, casa a casa. Mossul ainda não está a arder, mas são muitas as colunas de fumo negro e a dimensão do que está em jogo é de tal ordem que se alguém temer o pior não pode ser acusado de pessimismo.

Pinhal Novo, 18 de Outubro de 2016

josé manuel rosendo

segunda-feira, 26 de setembro de 2016

Outubro (vai ser) negro na Síria


Para “início de conversa”: ligo a Al Jazeera e oiço “100 mortos no sábado, 85 este domingo”; há informação confirmada da utilização de bombas de desfragmentação; as Nações Unidas alertam para mais de um milhão de pessoas sem água. Tudo isto em Aleppo. Quem pensa que já é suficientemente mau, prepare-se para que seja pior.

A declaração do embaixador sírio nas Nações Unidas, Bashar Jaafari, avisando que em Outubro não haverá negociações, parece indiciar que está encontrada a prioridade do regime sírio. Depois de mais um cessar-fogo que não deu em nada, a não ser no redobrar das ofensivas do governo de Damasco, as grandes potências limitam-se a trocar acusações e a mostrar-nos o que de pior tem a diplomacia: hipocrisia e total indiferença – não adianta dizerem que estão preocupados, estamos todos… - com o que se passa no terreno, com populações civis e cidades a serem bombardeadas. O regime sírio considera que tem capacidade e apoios para reconquistar territórios, e não precisa de negociar. E está com um olho em Mossul, no Iraque, porque da realidade iraquiana é importante, com o Estado Islâmico a ser o elemento que pode influenciar toda a evolução. O aliado Irão, também aliado do governo iraquiano, sabe bem o que está a ser preparado no Iraque, para reconquistar Mossul ao Estado Islâmico. A mensagem certamente já chegou a Damasco: esperem, para ver o que dá o ataque a Mossul.

Neste momento, o silêncio da comunidade internacional em relação à Síria é bárbaro. De nada adianta falar e nada fazer. Estamos cheios de declarações mais ou menos inflamadas contra a guerra na Síria. É vergonhoso. Eu sinto vergonha, uma vergonha alheia que nem por isso deixa de ser terrivelmente desconfortável.

A leitura que é possível fazer, com os dados que são conhecidos, é a de que apesar de Bashar al Assad manter o discurso de querer recuperar o controlo total do país, isso não vai acontecer, nem o presidente sírio quer. De nada lhe serve ter território que apenas dá problemas e reivindica recursos. Assad quer ficar com as províncias alauitas junto ao Mediterrâneo e, de preferência, associar-lhes, a oeste, o corredor norte-sul onde estão as principais cidades do país: Aleppo (antigo coração da economia síria), Idlib, Homs, Damasco e Daraa. Afinal, apenas ficam de fora as cidades curdas (inevitáveis locais de conflito se a Síria permanecesse unida sob o controlo de Assad) e as cidades de Raqqa, Palmira e Deir Ezzor. O resto é deserto, com excepção do vale do Eufrates. O petróleo nas zonas mais encostadas ao Iraque não tem grande expressão. É isto que Bashar al Assad quer, uma vez que não pode ter tudo. O pragmatismo de quem quer continuar a ser presidente obriga a deixar de lado o orgulho ferido de quem perde território.

Neste momento, a França já enviou o porta-aviões Charles de Gaulle para o Mediterrâneo; a Rússia também enviou o porta-aviões Amiral Kouznetsov para fazer companhia a 10 navios de guerra e submarinos. O Mediterrâneo está transformado numa base militar com rampas de lançamento que podem atingir qualquer local do Médio Oriente e todas as principais potências envolvidas na Síria e no Iraque têm militares no terreno.

Os Estados Unidos já disseram que a ofensiva para reconquistar Mossul pode começar em Outubro; o governo britânico disse que a ofensiva começa nas próximas semanas; o governo iraquiano tem dito o mesmo e as tropas de Bagdad juntamente com as milícias xiitas iranianas, e também iraquianas, e algumas tribos sunitas, estão a avançar no terreno. O Primeiro-ministro iraquiano, Al Abadi, tem-se desdobrado em contactos internacionais (incluindo a Turquia e os líderes curdos iraquianos) para preparar o terreno. Um ataque a Mossul levanta imensas preocupações humanitárias e não se sabe a resistência que o Estado Islâmico poderá opor. O custo em vidas humanas poderá ser terrível, inclusivamente entre os civis.

Dependendo de como a ofensiva venha a ser planeada, pode ser deixado um corredor de fuga para os combatentes do Estado Islâmico, e esse corredor pode conduzir a Raqqa, na Síria. Mas também pode acontecer que assim não seja e que Mossul seja cercada. E até pode acontecer que sejam planeadas ofensivas simultâneas a Mossul e a Raqqa. É impossível saber o que vai na cabeça dos estrategas militares e quais são os objectivos políticos imediatos ou a longo prazo.

Nesta complexa realidade, o Irão pode assumir um papel de relevo: os iranianos estão de bem com os Estados Unidos em relação ao Iraque, cujo governo tem telefone directo com Teerão, e estão de bem com a Rússia no apoio a Bashar al Assad. Podem acabar por ser o pivot que coordene acções atendendo ao mau momento Estados Unidos-Rússia. Seria a grande vitória de Teerão.

Mas, quanto à Síria, o cenário que neste momento parece mais agradável para Bashar al Assad e respectivos aliados é o de conquistar as grandes cidades a norte de Damasco, esquecer o deserto e os curdos do norte, e deixar à comunidade internacional e à oposição moderada a tarefa de combater o Estado Islâmico eventualmente acantonado em Raqqa (capital do califado) quando for expulso de Mossul. Falta saber o que poderá fazer o Exército Livre da Síria e a enorme miríade de grupos armados para contrariar esta estratégia de Assad e dos aliados russos.

Uma última nota: a Rússia poderá estar para uma “nova Síria”, como os Estados Unidos estão para Israel, o que não desagrada nada a Vladimir Putin.

É complicado? É! Mas é impossível tornar fácil uma realidade que envolve tantos interesses e protagonistas. Certo é que as nuvens negras (mais negras do que as que pairam sobre a região) estão a caminho e tudo indica que vai ser muito feio.

Pinhal Novo, 25 de Setembro de 2016

josé manuel rosendo

sexta-feira, 9 de setembro de 2016

Mais sinais sobre a Síria. Cartas estão a ser postas em cima da mesa


Procuro nas agências de notícias, nos jornais, não há quase nada sobre o encontro entre o Secretário de Estado norte-americano John Kerry e o Ministro dos Negócios Estrangeiros russo Serguei Lavrov. Apenas gestão de expectativas com a inevitável especulação à mistura. Estes dois homens têm encontro marcado em Genebra nesta sexta-feira e na véspera falaram ao telefone. O que cada um deles leva na mala (e na manga) não se sabe.

O que se ficou a saber esta quinta-feira através do Secretário da Defesa dos Estados Unidos, Ash Carter, é que as milícias curdas da Síria (Unidades de Protecção Popular) saíram da cidade de Manbij (que conquistaram ao Estado Islâmico) e atravessaram o Rio Eufrates passando para a margem oriental. Era o que a Turquia exigia e os Estados Unidos apoiaram. Ash Carter revelou esta alteração no terreno depois de um encontro com o Ministro da Defesa da Turquia, Fikri Isik.

Outro sinal a merecer muita atenção: o porta-aviões francês Charles de Gaulle vai estar no Mediterrâneo oriental. Põe-se a caminho até final de Setembro. A França envia também baterias de artilharia. Vai estar tudo operacional no início do Outono. Obejctivo? Vão apoiar as forças iraquianas na reconquista de Mossoul. As palavras são do porta-voz das Forças Armadas francesas. Esta revelação das movimentações militares francesas acontece no dia do encontro do Presidente francês, François Hollande, com o Presidente do Governo regional do Curdistão (iraquiano), Massoud Barzani. O mesmo Barzani que a 23 de Agosto esteve reunido com o presidente turco, encontro onde terá sido feito um acordo contra outros curdos (PKK e curdos sírios).

Voltando a Kerry e Lavrov, parece pacífico que a política russa em relação à Síria – concordemos ou não – tem sido muito mais explícita do que a dos Estados Unidos, sobretudo se atendermos à forma como os norte-americanos têm lidado com a questão curda. Não seria a primeira vez que os Estados Unidos voltariam as costas aos curdos. Mas também é bom lembrar que a 10 de Fevereiro os curdos da Síria abriram a primeira representação no estrangeiro e foi em… Moscovo. 

Já alguém escreveu que até parece que os curdos nasceram para serem traídos. Não vai demorar para sabermos como vai ser desta vez. O final do ano tem sido a referência de vários líderes para retirar Mossul do controlo do Estado Islâmico e a Turquia já disse que lhe agrada uma operação conjunta com os Estados Unidos para conquistar Raqqa, a maior cidade síria dominada pelo estado Islâmico.
Vamos ver o que sai de Genebra esta sexta-feira.

Pinhal Novo, 9 de Setembro de 2016

josé manuel rosendo

sexta-feira, 3 de junho de 2016

Porquê Faluja, e não Mossul ou Raqqa?


Já alguém escreveu que o controlo de Faluja é fácil de perder mas muito difícil de recuperar. É uma leitura acertada da história recente desta cidade estratégica da província de Al Anbar. Desde logo uma outra nota: os invasores de 2003 só muito tarde percebram a importância desta enorme província, de maioria sunita, que tem “só” três fronteiras internacionais: Síria, Jordânia e Arábia Saudita. Demorou bastante até que o General norte-americano David Petraeus (que chegou em 2012 a Director da CIA) desenvolvesse a estratégia de aproximação às tribos sunitas, marginalizadas após a invasão, para tirar o tapete à Al Qaeda no Iraque. Estratégia feita com malas cheias de dinheiro e promessas de integração, não cumpridas, aos sunitas.

A cidade conhece o cheiro da guerra como nenhuma outra no Iraque. Há regiões do mundo relativamente às quais se diz que quem domina a capital de um país domina esse país. Em relação a Faluja não se pode dizer o mesmo, mas estando a cidade a pouco mais de meia-centena de quilómetros de Bagdad e sendo um símbolo da resistência sunita aos invasores e ao poder do Governo (xiita) iraquiano, dominar Faluja é meio-caminho andado e é um sinal de que a resistência está controlada.

O único sinal de concertação dos que combatem a organização Estado Islâmico – mesmo tendo diferentes interesses e perseguindo diferentes objectivos estratégicos – é que houve muita propaganda em relação a alegados ataques iminentes a Mossul e Raqqa. Houve até notícia em Raqqa de lançamento de panfletos convidando a população a abandonar a cidade antes da batalha. Há manobras e combates nos arredores longínquos das duas cidades referidas, mas onde a tentativa de reconquista está mesmo a acontecer é em Faluja. Porquê? Porque para o Governo de Bagdad essa é uma batalha decisiva. De que adianta tentar reconquistar Mossul se não for possível conquistar uma cidade a meia-centena de quilómetros de Bagdad? De que adianta conquistar Mossul se a oposição xiita (de Moqtada al Sadr) que exige reformas contra a corrupção e remodelação governamental não for calada com uma vitória contra os sunitas da organização Estado Islâmico. O Governo de Haider al Abadi (exilado até 2003 no Reino Unido e posteriormente regressado ao Iraque, esteve sempre na esfera do poder, tendo sido ministro, e agora primeiro-ministro) precisa desesperadamente de uma vitória na batalha de Faluja para se poder afirmar internamente. É quase impossível que não a consiga mas falta saber a que preço. Esse preço pode transformar uma vitória numa derrota e se assim for tudo ficará mais complicado quando se tratar de tentar a reconquista de Mossul. Raqqa é outra conversa e é mais complicado.

Em Faluja, que se saiba, não há jornalistas. A propaganda das duas partes faz circular informação contraditória. Há notícias de forte resistência da organização Estado Islâmico (e o recurso a ataques aéreos podem ser um sinal dessa resistência e da incapacidade das tropas iraquianas avançarem) e há notícias de fuga dos combatentes da organização Estado Islâmico; há notícia de avanços das forças governamentais mas também há notícias de elevadas baixas entre as tropas de Bagdad. Atacantes e defensores trocam acusações sobre a utilização de habitantes como escudos humanos. As Nações Unidas referem cerca de 50 mil civis em Faluja mas só quando a batalha terminar irá ser possível avaliar o preço desta batalha de Faluja. É isto o que se sabe e porque se sabe pouco as notícias de Faluja desapareceram dos alinhamentos noticiosos.

Pinhal Novo, 3 de Junho de 2016

josé manuel rosendo

segunda-feira, 7 de dezembro de 2015

E depois do Estado Islâmico?


Após os atentados de Paris, as emoções estão (ainda) à flor da pele e quando não alinhamos no instinto primário da vingança somos quase automaticamente colados aos defensores e autores da barbárie.

Ponto prévio: é muito escassa a informação fidedigna sobre o Estado Islâmico. Sabemos quase nada e o que sabemos tem origem na propaganda do próprio Estado Islâmico e na propaganda anti Estado Islâmico. Na maior parte dos casos a informação tem origem em fontes impossíveis de verificar. Existe uma guerra e, como em todas as guerras, a propaganda e a contra-informação fazem o seu caminho. Em qualquer guerra a face visível do confronto é apenas uma pequena parte do que de facto está em jogo.

Há várias semanas que, oficialmente, Estados Unidos e Rússia anunciam centenas de voos e milhares de alvos atacados. Das duas uma: ou o Estado islâmico tem uma dimensão, capacidade e organização, que ninguém quer admitir ou estão a largar bombas de forma indiscriminada sem terem noção dos alvos que estão a atingir e correndo o risco de provocar os habituais danos colaterais.

Aceitando como boa a informação que Estados Unidos e Rússia têm divulgado sobre os ataques aéreos, poucos terão dúvidas sobre o futuro do Estado Islâmico. Quando as duas grandes potências mundiais (e outras) descarregam toneladas de bombas na Síria e no Iraque, torna-se evidente que o Califa e os seus seguidores vão ser pulverizados ou, quanto muito, ficarão reduzidos a pequenos grupos dissimulados na população e de regresso à estratégia de guerrilha.

Convém no entanto avaliar alguns dados: porquê apenas agora o intensificar dos bombardeamentos? Porquê apenas agora os ataques a zonas petrolíferas (dizem…) e a camiões cisterna de transporte de petróleo? O que é que estes ataques significam? Vão “desfazer” o Estado Islâmico e deixar a sírios e iraquianos o resto do problema? E depois há aquela pergunta de “1 milhão de dólares”: a quem interessa esta guerra e a existência do Estado Islâmico? Há tantas respostas possíveis, mas a participação de várias potências e vários actores regionais nesta guerra tem desde logo um significado muito simples: querem ter uma palavra sobre o futuro da região quando o Estado Islâmico acabar. Acho que já vimos algo parecido precisamente na mesma região.

O futuro passa por uma pergunta simples de resposta terrivelmente complexa: e depois do Estado Islâmico? Desde logo não é de todo impossível que o Estado Islâmico não evolua para um “estado sunita” (faltando saber em que moldes e em que território). Há teorias nesse sentido. Depois: acabada a guerra com o Estado Islâmico (com a qual todos parecem concordar), o que fazer com Bashar al Assad? Como resolver o problema na Síria, palco para uma miríade de grupos mais ou menos extremistas, mais ou menos laicos? O que fazer com os curdos? O que fazer com o PKK (que combate o Estado Islâmico), considerado terrorista pelo ocidente? O que fazer com as (YPG) Unidades de Protecção Popular (que também combatem o Estado Islâmico) marcadas com o mesmo rótulo? O que fazer com os combatentes do Estado Islâmico que sobreviverem?

Um exemplo simples ajuda a explicar a complexidade da situação: Mossul. A segunda maior cidade do Iraque fica na fronteira da zona árabe com a zona curda. É reivindicada por curdos e árabes. Neste momento, a questão que já se discute no terreno é a de saber quem fica a controlar a cidade após a expulsão do Estado Islâmico. Parte da população de Mossul prefere viver com o Estado Islâmico a ver entrar os xiitas e as previsíveis vinganças; os xiitas querem a cidade para eles porque vão ter que ser as milícias xiitas, juntamente com as forças do governo de Bagdad – também quase só xiitas – a desencadear o ataque à cidade; os curdos reivindicam a cidade e têm o argumento de terem travado o Estado Islâmico quando o exército iraquiano bateu em retirada. Não é possível tomar Mossul sem a colaboração dos curdos mas estes não confiam na capacidade das forças de Bagdad – dizem que não podem confiar num governo que precisa de milícias para defender o seu próprio povo.

Sobre Raqaa, na Síria, declarada capital do Estado Islâmico, podemos fazer perguntas semelhantes embora envolvendo actores diferentes. Alguém sabe responder a tantas perguntas e a questões tão complexas? Parece haver, no entanto, uma resposta segura: vamos ter outras guerras na região depois de terminada a guerra ao Estado Islâmico.

Pinhal Novo, 7 de Dezembro de 2015

josé manuel rosendo