segunda-feira, 25 de setembro de 2017

Catalunha e Curdistão: os referendos “fora-da-lei” ou quando a minha democracia é melhor do que a tua

 Foto: Kurdistan24.net

Espanha é uma democracia. Formal, mas é uma democracia. Tal como Portugal. E sendo uma democracia formal seria de esperar que, pelo menos em termos formais, a Liberdade fosse um pilar respeitado. Depois de tudo o que fez o governo de Madrid e depois da declaração do Presidente do Governo, Mariano Rajoy, ficámos a saber que não é assim.

Em relação à Catalunha e ao Referendo agendado para 1 de Outubro, é preciso dizer uma coisa muito simples: como pode ser negado aos catalães o direito de se pronunciarem sobre a eventual independência da região. Cada um de nós pode ser a favor ou contra a independência da Catalunha, podemos ter os mais variados argumentos, mas o direito de o outro decidir em liberdade o que pretende para si e para o seu povo, é um direito que está na génese de qualquer regime democrático e ninguém tem o direito de negar esse direito aos catalães.

Desde logo, o argumento da inconstitucionalidade do Referendo é absolutamente irrelevante. Duvido que em algum país a Constituição preveja a possibilidade de perda de território através de um mecanismo legal. Sendo o território um dos pilares do Estado, indispensável para a sua existência, não faria sentido que o próprio Estado, através da Constituição, estabelecesse mecanismos para eventuais secessões e consequente redução do seu território.

Assim sendo e perante a evidência de que uma parte dos catalães é a favor da independência, a única forma de resolver o impasse teria sido a negociação política de modo a que, legalmente – com as necessárias alterações e adaptações constitucionais e legislativas -  e democraticamente, se chegasse a uma consulta popular que permitisse aos catalães manifestarem a sua vontade e tirar daí as devidas ilações.

Sabemos como o governo de Madrid foi adiando, ignorando e empurrando com a barriga, a eventual construção de uma solução legal que conduzisse ao Referendo. Os catalães foram sempre dizendo que mais tarde ou mais cedo iria acontecer o que está a acontecer. Chegado o momento decisivo eis que o governo de Madrid reage da forma esperada: detém responsáveis políticos catalães, invade as instituições, envia reforço policial, e por aí fora... Madrid, qual Rainha destemida, quer vergar os súbditos, à força e, se necessário – percebe-se – à paulada. Alguns catalães já lembraram tempos idos em que Madrid os tratou à paulada. A única coisa que Rajoy terá conseguido até agora foi dar força aos independentistas.

De Barcelona a Erbil, de Madrid a Bagdad

Curiosamente, no Curdistão iraquiano, o principal argumento do Governo (de Bagdad) iraquiano é precisamente o mesmo que é utilizado em Madrid: o referendo é inconstitucional! Claro que também no caso do Iraque a Constituição não prevê referendos que possam alterar a integridade territorial do país. A questão é a mesma e o motivo é simples: não há poder político que ao fazer uma Constituição caia na “asneira” de abrir a porta à possibilidade de ver o seu território reduzido, simplesmente porque isso significa ter o seu estatuto internacional reduzido. Menos território significa, menos população, menos economia, menos recursos, menos tudo.

Mas se no Curdistão iraquiano – escrevo a poucas horas do início do referendo – a consulta popular vai mesmo avançar é porque a autonomia curda tem características completamente diferentes da catalã, e a geografia onde catalães e curdos estão inseridos são também diferentes. Desde logo, o Curdistão faz parte de uma República Federal. Há “interesses” que levam a estas exigências de referendar uma eventual independência? Claro que há, como há “interesses” em tentar travar esse caminho. Há interesses económicos, estratégicos, políticos, projectos pessoais, há isso tudo. Haverá sempre “interesses” na política, o que não pode é haver desculpa para, em nome da liberdade e da democracia, impedir que os povos se expressem em relação ao futuro que só a eles cabe decidir.

Quer em relação à Catalunha, quer em relação ao Curdistão, verifica-se que são forças políticas de direita que controlam o poder político regional nestes tempos de referendo à independência, mas não é isso – esquerda/direita – que está em causa. Há também um receio de “efeito dominó”. No caso da Catalunha, Madrid treme só de pensar que outras comunidades autónomas possam seguir as pisadas da Catalunha. Por exemplo País Basco, Galiza... no caso do Curdistão iraquiano esse receio é partilhado por países onde há grandes comunidades curdas como é o caso da Turquia, Síria e Irão, e há ainda uma parte substancial da comunidade internacional que acena com o papão de uma eventual independência curda prejudicar a luta contra o Estado Islâmico. Essa parte substancial da comunidade internacional que não saiu das suas tamanquinhas quando os curdos tinham o Estado Islâmico a bater-lhes à porta e tiveram de ser eles a travar os extremistas. Dessa batalha com o Estado Islâmico resultou a ocupação de território que não está incluído na actual Região Autónoma do Curdistão, mas que os curdos agora reclamam, como é o caso de Kirkouk (a “Jerusalém do Curdistão”, como lhe chamou o antigo presidente iraquiano Jalal Talabani por causa da sua característica multietnica e multicultural).

Curdos e catalães estão à beira de jogar uma cartada decisiva. Do lado dos defensores do referendo a semelhança do argumento de que o poder (central num caso, federal no outro) já não é um parceiro; do lado dos opositores também o mesmo argumento: a consulta é ilegal e inconstitucional. Por que é que não deixam o povo decidir?

Pinhal Novo, 25 de Setembro de 2017

josé manuel rosendo

terça-feira, 19 de setembro de 2017

O referendo do povo das montanhas

Foto de kurdistan24.net 

Curdos sob intensa pressão

Curdos contra tudo e contra todos. A hora decisiva está a chegar. Na última sexta-feira, o Parlamento do Curdistão aprovou, por votação de braço no ar, a realização de um referendo (consultivo) sobre a independência do Curdistão a 25 de Setembro. A oposição não participou na votação. Está previsto o referendo em três províncias autónomas que formam o Curdistão iraquiano (Dohuk, Erbil e Sulaimaniya) e em (zonas disputadas por curdos e pelo Governo de Bagdad) Makhmour, Khanaqin, Sinjar e Kirkouk (zonas que chegaram a ser ocupadas pelo Estado Islâmico onde os Peshmerga combateram e que agora controlam).

Como (quase) sempre acontece no Médio Oriente, o xadrez político nunca é de leitura simples. Desta vez, apesar da independência ser há muito o sonho dos curdos, este referendo é convocado num momento em que o mandato do Presidente Massoud Barzani já terminou em 2015 e o Parlamento foi “recuperado” após dois anos sem sessões. O Curdistão tem, desde 1991, um estatuto de autonomia que, na prática, é uma independência de facto (não tendo obviamente o estatuto de par entre pares na Ordem Internacional). Barzani avança para o referendo – apesar de alguma oposição interna – com o argumento de que não tem um parceiro em Bagdad, acusando o governo federal de não cumprir os compromissos assumidos e de não respeitar a Constituição iraquiana e o que ela dispõe em termos de autonomia.

Os curdos também sabem que depois da resistência que fizeram ao Estado Islâmico – quando o governo central de Bagdad falhou – a comunidade internacional terá poucos argumentos para não aceitar que os curdos decidam a sua própria vida.

Após a I Guerra Mundial, o Tratado de Sèvres previa a criação de um Estado curdo, mas os Aliados acabaram por rever essa possibilidade. Os curdos guerrearam-se entre eles mas também foram alvo de uma campanha assassina por parte de Saddam Husseín. O período em que maiores ganhos registaram foi precisamente após a queda de Saddam Husseín (2003). Talvez vejam na desintegração do Estado Islâmico uma oportunidade de afirmação. Mas os curdos estão habituados a que os amigos de ocasião lhes voltem as costas. Não vão longe os “aplausos” internacionais à coragem e determinação dos curdos contra o Estado Islâmico (o que continuam a fazer na Síria) mas não é por acaso que um velho provérbio curdo diz que “os únicos amigos dos curdos são as montanhas”. 

Não se sabe quantos eleitores estão recenseados para este referendo. A região autónoma oficial terá cerca de 5,5 milhões de habitantes, mas serão quase 8 milhões se as outras áreas “não oficiais”, mas reclamadas pelos curdos, também participarem. O Presidente Massoud Barzani tem reafirmado sucessivamente que o referendo vai mesmo realizar-se. 
A ver vamos se há referendo.


As posições dos vários actores internacionais

Iraque – Governo central
O Parlamento federal (depois dos deputados curdos abandonarem o debate) já votou contra a realização do referendo e destituiu o governador de Kirkouk (que insistiu em manter-se no cargo).
O Supremo Tribunal ordenou a suspensão do referendo até que possa aferir da constitucionalidade da consulta popular. A verificação da constitucionalidade foi requerida pelo Primeiro-ministro Haider al Abadi. Alguns deputados xiitas e turcomanos também pediram a verificação da constitucionalidade.
O importante comandante militar xiita Hadi al Ameri, do Supremo Conselho Islâmico do Iraque, apoiado por Teerão, já alertou para a possibilidade de guerra civil.
O vice-Presidente e antigo Primeiro-ministro iraquiano, Nouri al Maliki, afirmou que recusa que o Curdistão venha a ser “um segundo Israel” e alertou para consequências perigosas se o referendo se realizar. Al Maliki argumenta que não permitirá o nascimento de um Estado de base étnica assente num modelo semelhante ao da criação do Estado de Israel.

ONU
O Secretário Geral António Guterres pede paciência e contenção. Guterres alerta para a possibilidade de o referendo prejudicar o objectivo de vencer o Estado Islâmico e da reconstrução dos territórios reconquistados. As Nações Unidas propõem suspender o referendo e oferecem em troca, no prazo de três anos, um acordo entre curdos e governo federal sobre o estatuto da região autónoma. O documento com uma proposta da ONU já chegou ao Presidente curdo e assenta em negociações estruturadas, apoiadas e intensivas que levem a um acordo entre Erbil e Bagdad. A ONU oferece-se como mediadora e, depois, está disponível para ajudar a implementar as decisões.

Estados Unidos da América
Contra o referendo. Washington avisa que o referendo será uma provocação e vai desestabilizar a região, sendo um entrave na luta contra o Estado Islâmico. Os Estados Unidos propõem um diálogo entre as autoridades curdas e as de Bagdad, propondo-se também como mediadores. A Casa Branca já fez chegar ao presidente curdo um projecto com alternativas ao referendo. Massoud Barzani ainda não respondeu.

Turquia
É o vizinho mais preocupado com o referendo e é frontalmente contra, apesar da boa relação comercial com o Governo Regional do Curdistão. A uma semana da consulta popular, Ankara anunciou exercícios militares junto à fronteira com o Iraque e já disse várias vezes que o referendo “terá um preço”. O Presidente Recep Tayyip Erdogan anunciou uma reunião do Conselho de Segurança turco para 22 de Setembro. Ankara e Bagdad estão de acordo quanto à necessidade de manter o Iraque com o actual modelo federal.

Irão
O país tem uma importante minoria curda e tem vindo a apelar para que o Referendo não se realize. O apoio militar do Irão aos Peshmerga foi importante na luta dos curdos contra o Estado Islâmico. O secretário do Conselho Supremo da Segurança Nacional do Irão avisou agora que fechará todos os postos fronteiriços com a região curda do Iraque e todos os acordos serão anulados. Há informação de que um comandante de uma unidade de elite dos Guardas da Revolução iranianos está em Souleimaniya e por lá vai ficar até à data prevista para o referendo.

Israel
O Primeiro-ministro Benjamin Netanyahu apoia a realização do referendo no Curdistão.

Reino Unido
A posição oficial é contra o referendo. O governo britânico defende a integridade do Iraque. O Ministro da Defesa fez uma última tentativa junto de Massou Barzani mas segundo a Rudaw TV o Presidente curdo disse que um eventual adiamento do referendo só com garantias de independência.

França
O Governo francês considera que o referendo é uma “iniciativa inoportuna”. O Ministro dos Negócios Estrangeiros, Jean-Yves Le Drian, assumiu que a França está a preparar o pós Estado Islâmico e não quer que disputas entre iraquianos prejudiquem esse momento. A França defende a integridade territorial do Iraque e a sua dimensão federal.
A contrariar esta atitude do governo francês, o ex-Ministro dos Negócios Estrangeiros, Bernard Kouchner, apoia a realização do referendo. Kouchner lembrou que todos tiram partido dos curdos mas não querem que eles sejam independentes. “É de um cinismo inacreditável”, afirmou Bernard Kouchner, acrescentando que é aos curdos que compete decidir se querem ou não a independência.

União Europeia
Bruxelas considera que a realização do referendo não é oportuna.

Pinhal Novo 19 de Setembro de 2017
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josé manuel rosendo