segunda-feira, 14 de dezembro de 2020

Mudança de plataforma deste blogue

Este blogue passou para a plataforma Wordpress e deixou de ser actualizado em blogspot.com. A partir de agora o novo endereço é: meumundominhaaldeia.com. Agradeço que passem por lá e que se tornem seguidores sendo assim alertados para todos os textos publicados. Obrigado. E espero vê-los por lá.

quinta-feira, 15 de outubro de 2020

Cidadão chipado, não!

Poeta Castrado, Não! Serei tudo o que disserem / por inveja ou negação: / cabeçudo dromedário/fogueira de exibição / teorema corolário / poema de mão em mão / lãzudo publicitário / malabarista cabrão. /Serei tudo o que disserem: / Poeta castrado, não!         (José Carlos Ary dos Santos)


Dizem os jornais que a proposta do Governo deu entrada esta noite (de 13 para 14) na Assembleia da República. Pretende o Governo, entre outras coisas, que eu use uma Aplicação de telemóvel, que o Serviço Nacional de Saúde diz servir para identificar potenciais exposições a pessoas infectadas com COVID-19. A Proposta do Governo ameaça-me com uma multa até 500 euros se tal coisa não for respeitada. Poderia desde já perguntar, numa tirada à Eça, então e como posso eu multar o Governo? Mas não, porque a coisa é séria. E espero que no Parlamento, os nossos deputados tenham bom-senso! 

Independentemente de questões práticas como ter (ou não) um smartphone, para poder usar a aplicação, há nesta proposta – seja ou não aprovada – algo trágico e, até, sinistro: não vejo forma de compatibilizar este tipo de soluções com as nossas liberdades e a nossa privacidade, e não vejo como um governo de um partido de esquerda, área da Liberdade (sim, com L grande) por excelência, tem o atrevimento de fazer este tipo de proposta. Ao longo da história, tem sido a direita que, com mais ou menos argumentos, sempre se deu melhor quando se trata de restringir liberdades. Será muito estranho se viermos a assistir a uma inversão de papéis.

A proposta é, obviamente, um abuso e um precedente perigoso. Um dia destes poderão surgir argumentos (e surgem sempre em nome de um bem maior ou de um bem comum...) para sermos todos chipados. Felizmente temos uma Constituição e, se não for suspensa, teremos aí uma defesa. Duvido que alguém consiga encontrar na Lei Fundamental algum tipo de abrigo para uma coisa assim.

Até agora houve equilíbrio nas medidas contra a pandemia. Para além dos que dizem mal de tudo e de todos, os mais sensatos reconhecem que o Governo tem estado bem a enfrentar algo completamente novo. Evidentemente que a pressão aumentou e o Governo sente necessidade de fazer (mais) alguma coisa, mas não pode haver desnorte, nem medo. Esses são estados de alma proibidos a qualquer Governo.

Medidas, evidentemente! Máscara quando não é possível evitar o distanciamento, vamos a isso; Não pode haver jantaradas, aguentamos; responsabilidade, claro, porque ser Livre é isso mesmo. Cidadão chipado, isso é que não!!!

Pinhal Novo, 14 de Outubro de 2020
josé manuel rosendo


terça-feira, 13 de outubro de 2020

As guerras de Erdogan

 

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Recep Tayyip Erdogan, Presidente da Turquia. Foto in https://en.zamanalwsl.net

A Turquia parece que não se cansa de somar conflitos, embora com níveis de intensidade e envolvimento diferentes. Depois do envolvimento na guerra na Síria, dos frequentes bombardeamentos na região curda, no Iraque, da intervenção declarada na guerra na Líbia, o conflito com a Grécia (e Chipre) por causa dos hidrocarbonetos e das fronteiras marítimas no Mediterrâneo, a Turquia também interfere, agora, no conflito no enclave de Nagorno-Karabakh. Evidentemente, ao lado do Azerbaijão, porque para além da pedra-no-sapato que a questão Arménia representa para a Turquia, há a identidade cultural e histórica com o Azerbaijão e ainda essa outra questão à qual a Turquia é hipersensível e que é a perda de território que o enclave representa para Baku. No passado, a Turquia sabe o que é perder território e, daí, o não querer, no presente, nem ouvir falar no Curdistão.

Há quem aponte a Recep Teyyip Erdogan uma tentação de contornos imperiais; outros preferem a justificação tradicional dos inimigos externos necessários para alimentar um espírito nacionalista que favorece Erdogan, já desgastado por tantos anos de poder; outros ainda olham para a intervenção turca em várias frentes como uma forma de marcar uma posição forte a nível regional, quando Irão, Arábia Saudita e até o Egipto, têm o mesmo objectivo. 

O Presidente Erdogan joga em vários tabuleiros e, por vezes, torna-se difícil distinguir, no início de uma determinada jogada estratégica, qual será, de facto, o seu objectivo final. 

Neste momento – e desde há muito – a Turquia mantém bases militares no Curdistão iraquiano e, agora, também no Curdistão sírio; combate o Partido dos Trabalhadores do Curdistão (PKK), na Turquia, e principalmente no Iraque, mas mantém boas relações com o Governo Regional do Curdistão; combate as YPG sírias (Unidades de Protecção Popular), que foram aliadas do ocidente no combate ao Estado Islâmico e também combate o Governo de Bashar Al Assad, mas é aliada de milícias sírias de génese islâmica; a fronteira turco-síria foi uma porta escancarada aos rebeldes que começaram a combater Assad e a tudo o mais que era preciso fazer passar entre os dois países; a Turquia foi também (tal como outros países da região), porta de entrada de petróleo do Estado Islâmico, sendo que de forma nunca oficial e sempre com o argumento de que se tratava de contrabando – aliás, a fronteira turco-iraquiana sempre foi ponto de passagem de petróleo de contrabando; na Líbia, a Turquia aliou-se ao governo de Tripoli (apoiado pela ONU), enviando milícias que tinha na Síria, para combater um outro governo líbio instalado no leste e que tem no Marechal Khalifa Haftar o líder de guerra – um posicionamento que lhe permitiu um acordo com o governo de Tripoli para uma zona económica exclusiva que vai da costa sul da Turquia até à costa da Líbia. Este acordo choca com um outro, assinado entre a Grécia e o Egipto. Aqui chegados, percebemos mais facilmente o que está em jogo no Mediterrâneo oriental.

Em termos geográficos, se a Turquia não quer, ou não pode, expandir influência e poder para ocidente – a União Europeia diz que as conversas com Ancara para uma adesão à União Europeia, estão em “ponto-morto” – para oriente também não o pode fazer, porque aí encontra o poder da Federação Russa e, já se viu, desde o que aconteceu na Geórgia e na Ucrânia, Moscovo não está para brincadeiras e não vai permitir veleidades na sua vizinhança próxima. Mesmo agora, no conflito de Nagorno-Karabakh, foi em Moscovo que Azerbaijão e Arménia negociaram o recente (e já violado) cessar-fogo. Vladimir Putin já mostrou quem manda naquela região. Assim sendo, resta à Turquia tentar retomar para a sua esfera de influência: a região do antigo Império Otomano. 

É certo que passou um século desde que Istambul deixou de controlar meio-mundo e também é certo que, entretanto, outros poderes disputam o domínio da região, mas será aí que Erdogan terá terreno para fazer caminho. Aliás, desde a chamada Primavera Árabe que a Turquia não tem feito outra coisa. E outra coisa que nunca deixou de fazer foi a de ser um problema para a NATO, aliança de que é um dos mais poderosos membros: o actual conflito com a Grécia – também membro da NATO, à qual ambos os países aderiram em 1952 – é apenas o exemplo mais recente.

Num Médio Oriente em que a presença dos Estados Unidos é cada vez mais reduzida e em que outros actores tentam conquistar terreno, a tarefa da Turquia não vai ser fácil: o Irão, atacado em várias frentes, tenta solidificar influência em Bagdad, dá sinais de não facilitar uma solução “ocidental” no Líbano e mantém-se firme no apoio a Assad, na Síria, para além de estar a dar cabo dos nervos a Riad e ao “ocidente”, no Iémen; a Arábia Saudita, rendida aos ditames de Washington – assim obriga o affaire Kashoghi – e a fazer asneiras sucessivas na guerra no Iémen, tenta manter o status quo e faz tudo o que possa prejudicar o Irão; o Egipto, está mais preocupado com a Líbia, com o Sinai e também com a situação interna – apesar da “mão-de-ferro” continuam a surgir manifestações contra o regime. Aliás, em relação ao Egipto, o SIPRI, Instituto de Investigação sueco que analisa, entre outras coisas, a compra/venda de armas em todo o mundo, torce o nariz perante os dados de 2019, ao ver o Egipto surgir em nono lugar entre os catorze países do Médio Oriente e Norte de África (MENA), sendo que o Egipto tem o segundo maior efectivo militar no conjunto destes países. Em termos de despesa militar em 2019, a Turquia surge em terceiro lugar, apenas ultrapassada por Arábia Saudita e Israel.

A mesma Turquia, membro da NATO, que compra o sistema de defesa de mísseis S-400 à Rússia, e que por causa disso é afastada do programa dos caças norte-americanos F-35, é a mesma Turquia que na Líbia e na Síria está em campo oposto à Rússia.

Para além das questões consideradas de interesse nacional e que motivam a estratégia de cada país, vejamos os líderes que disputam a influência regional ou estão envolvidos nos conflitos: Erdogan (Turquia); Al Sissi (Egipto); Vladimir Putin (Rússia); Mohammad Bin Salman (Arábia Saudita) e Ali Khamenei (Irão). Presumo que em nenhum destes países possamos dizer que existe uma verdadeira democracia e, por muito que não queiramos, é com estes dados que a situação tem de ser analisada.

Com tudo o que acima é referido, convém sublinhar que na tradicional anarquia das Relações Internacionais, não há bons nem maus e a Turquia faz o que todos os países fazem quando consideram que isso é importante para a sua defesa e segurança, assim tenham oportunidade e meios: tenta conquistar poder e influência, seja através das armas ou através de alianças momentâneas que lhe garantam presença e uma palavra a dizer quando se tomam as grandes decisões. Falta saber se a Turquia terá os meios, os aliados, e o fôlego, para vencer em tantas frentes de batalha. Mas que de há muito é um caso de estudo na política internacional, disso parece que ninguém tem dúvidas.

Pinhal Novo, 13 de Outubro de 2020

josé manuel rosendo 



domingo, 27 de setembro de 2020

África: quando o que é mau pode ficar ainda pior.

 

Testes em Hospital de Adis Abeba, Etiópia. Foto em www.africa.cgtn.com, de Xinhua/Michael Tewelde


Existem muitos dados que mostram a dimensão dos efeitos da pandemia e a devastação que atinge as pessoas em países mais vulneráveis. Numa investigação recente em 14 países, 7 dos quais africanos, o Conselho Norueguês para os Refugiados indica que três quartos das 1.400 pessoas questionadas referem uma pesada degradação da sua situação: 77% perderam o emprego ou viram os salários reduzidos; 70% reduziram o número de refeições e 73% dizem que as dificuldades financeiras travam o envio das crianças para a escola. O secretário-geral desta ONG, Jan Egeland, sublinha que as comunidades mais vulneráveis do mundo estão numa perigosa espiral descendente.


Vários líderes africanos voltaram a pedir esta semana, na Assembleia Geral da ONU, mais solidariedade internacional e que seja perdoada a dívida pública dos respectivos países. Antes do G20 ter suspendido o reembolso destas dívidas até ao fim do ano, a União Africana já apelara para que essa suspensão vigorasse até ao final de 2021, mas o Presidente da Nigéria sublinhou que uma simples moratória não é suficiente face aos desafios existentes e aos que a pandemia veio acrescentar. Os líderes africanos alertam que todos os esforços de desenvolvimento económico da última década podem ficar reduzidos a pó.

Apesar de os números conhecidos (cerca de 35.000 mortos e menos de dois milhões de casos de covid-19) mostrarem que África é um dos continentes menos afectados, a fragilidade das economias e os vários conflitos que tocam diversas zonas do continente, potenciam os danos que a pandemia pode provocar.

Para se ter uma ideia menos abstracta da fragilidade africana, o mais recente (Junho de 2020) relatório da Organização Mundial da Saúde, sobre África, mostra que apenas 51% das unidades de saúde na África subsaariana têm serviços básicos de acesso à água; 47% das escolas não têm água corrente e apenas 21% têm água e sabão para a lavagem das mãos.

Os países africanos precisam de libertar recursos para acudirem ao combate à pandemia, bem como ao combate a outras doenças como a malária e o VIH. Não ter recursos para estas necessidades, nem para manter a funcionar economias que garantam os mínimos de sobrevivência, pode ser uma mistura explosiva para um desastre que se está a anunciar.

A ONU já veio defender o congelamento da dívida em todo o continente africano e publicou um relatório onde afirma que são necessários cerca de 169 mil milhões de euros para ultrapassar as dificuldades. Esta é a “receita” imediata, mas é bom ter em conta a incerteza relativamente à dimensão da pandemia no continente: reduzido número de testes, desconhecimento da causa de muitas mortes, saneamento muito precário, grandes limitações de acompanhamento médico e dificuldades na aplicação de medidas de distanciamento.

No início de Setembro, o Presidente do Gana defendeu uma nova arquitectura financeira mundial e avisou que a catástrofe se assemelha à do final da segunda Guerra Mundial. O FMI advertiu que, a sul do Sahara, o PIB possa ser menos 243 mil milhões de dólares em relação aos valores projectados em Outubro de 2019 e que 39 milhões de pessoas podem cair na pobreza extrema.

A solidariedade deve ser permanente, mas há agora uma oportunidade para que o mundo, e em particular a União Europeia, proporcionem ao continente africano o apoio necessário para combater a pandemia. Não por uma questão de redenção face a tempos passados, mas porque o futuro mais promissor, para europeus e africanos, passa por uma relação útil aos dois continentes e porque, principalmente, África precisa dessa ajuda.

É certo que África também terá de se saber ajudar, reduzindo os níveis de corrupção e resolvendo com diálogo o que tem tentado resolver com a força das armas. Também é certo que será difícil dizer como a União Europeia poderá ajudar países como a Líbia – há uma década em guerra civil – ou a Somália, país onde o Estado é uma miragem, já para não falar em toda a região do Sahel. Mas haverá certamente uma forma de fazer chegar ajuda e garantir que não será desbaratada. África é já ali.

Pinhal Novo, 27 de Setembro de 2020

josé manuel rosendo


domingo, 13 de setembro de 2020

Palestina, e agora?

        Líderes do Bahrein e dos Emirados Árabes Unidos. Fotografia: newsbeezer.com

Primeiro, os Emirados Árabes Unidos, agora o Bahrein. No espaço de um mês, dois países árabes normalizaram relações com Israel, depois de dois outros, Egipto (1979) e Jordânia (1994) terem assinados tratados de paz com o Estado hebraico. Em contextos diferentes, certo é que são quatro os países árabes que se relacionam normalmente com Israel. Após o anúncio da normalização das relações entre Israel e os Emirados, a Administração norte-americana apressou-se a dizer que outros países árabes se seguiriam e assim aconteceu. Falta saber qual se vai seguir.

 

Alguns países árabes, nem pensar, como é o caso do Líbano, Síria, Iémen ou Iraque, países inimigos de Israel; outros que por ausência de um verdadeiro Estado ficam desde logo descartados, como é o caso da Somália e da Líbia; mas outros há que talvez possam seguir o caminho dos quatro que já acederam à vontade de Israel e dos Estados Unidos. 

 

A atenção dos Estados Unidos e de Israel parece centrada em ganhar terreno nas monarquias do Golfo Pérsico, porque na outra margem está o Irão. O argumento de que o grande país xiita é uma ameaça aos pequenos países do Golfo, funciona na perfeição, obviamente com o acordo da Arábia Saudita, que apesar de ser a guardiã dos lugares santos do Islão, não hesitará em abraçar Israel, embora não lhe convenha ser dos primeiros. O Irão é o elo que – involuntariamente – ajuda a construir esta teia de interesse comum, mesmo entre protagonistas com divergências históricas. Outro assunto é a presença norte-americana no Golfo e o negócio das armas, com Washington a assinar contratos dos mais valiosos de sempre em exportações para as monarquias dos petrodólares.

 

Assim sendo, no Golfo, para mais acordos de normalização podem estar países como Omã (país que tenta a neutralidade e é próximo do Irão e também dos Estados Unidos) e o Koweit (que apesar da proximidade com Washington sempre tem rejeitado a normalização com Israel). Resta o Qatar, forte apoiante da Faixa de Gaza (e do Hamas), vítima de um bloqueio económico por ter relações com o Irão, mas é lá que – à hora a que escrevo – decorrem as negociações entre Taliban e Governo do Afeganistão, com a presença de Mike Pompeo. O Qatar não dará esse passo com Israel.

 

Há ainda outras possibilidades que têm sido referidas como é o caso de Marrocos ou do Sudão, países que poderiam receber como moeda de troca a concretização de algumas aspirações que dependem da real politik a nível internacional.

 

Sendo que o caminho da paz é sempre o desejável, essa paz apenas será sustentável se houver dignidade no calar das armas e no aperto de mão ao inimigo. E a revelação que é feita neste caminho é a de que alguns líderes árabes, mais preocupados com o próprio poder e em manter uma relação com países poderosos, sacrificam uma causa que tanto os indignou e abandonam o campo de batalha sem honra. Não por terem recusado a via das armas, mas porque fica pelo caminho a aspiração dos palestinianos a terem um Estado. 


A “solução dois Estados” de que tanto se fala é cada vez mais uma miragem. A causa palestiniana está a definhar e a aproximar-se da extinção, vítima também da própria divisão interna, de uma Liga Árabe que não quer ou não sabe defender os palestinianos, de Governos em Israel e nos Estados Unidos que nunca foram tão à direita e, logo, preferem impor a negociar seja o que for, e por fim, porque são vítimas de uma outra guerra, neste caso com o Irão, declarado inimigo dos Estados Unidos, Israel e monarquias do Golfo. A Liga Árabe deu um sinal claro de divisão quando, na última reunião, recusou aprovar a condenação da normalização de relações de Israel com os Emirados Árabes Unidos, apresentada pela Palestina.


Estamos perante a batalha perfeita para derrotar a causa palestiniana, sem necessidade de disparar um único tiro. A “Arte da Guerra”, de Sun Tzu, em toda a sua plenitude.

 

Mas desta machadada na causa palestiniana, deve ficar também registada a derrota das Nações Unidas. Não há tema que tenha consumido tantas horas de trabalho desde que a ONU nasceu, como o dos acordos israelo-árabes. Produziram-se Resoluções sucessivamente desrespeitadas, mas nunca houve sanções contra ninguém. Tem de ser dito que a construção das  condições que inviabilizam a criação de um Estado da Palestina, é uma derrota estrondosa das Nações Unidas e deixa a nu a incapacidade de regulação de conflitos. Talvez um dia destes, talvez António Guterres, rode a chave pela última vez. Pelo menos na ONU tal como a conhecemos.

 

Pinhal Novo, 13 de Setembro de 2020

josé Manuel rosendo

domingo, 6 de setembro de 2020

Napoleão esteve em Beirute?

Emmanuel Macron, esteve pela segunda vez na capital libanesa desde a explosão no porto de Beirute. O Líbano está em cacos, devido a essa explosão, mas também devido a uma crise política, social e económica, com raízes profundas no sistema político, na presença de mais de um milhão de refugiados sírios e na corrupção transversal a todos os sectores da sociedade. Os libaneses conhecem essa realidade melhor do que ninguém, sofrem com ela, pagam um preço elevadíssimo e desde Outubro do ano passado que saíram à rua exigindo mudanças.

 

Perante este cenário e com as imagens da explosão ainda frescas na memória, muitos entendem que a mudança é agora ou nunca. O Presidente francês é um deles e foi a Beirute dizer que esta é a última oportunidade para o sistema libanês e logo aí entrou em contradição, porque disse também que acompanha a pressão que os libaneses fazem para convencer a classe política a mudar de atitude. Ora, não é possível dar uma última oportunidade ao sistema e apoiar quem quer mudar o sistema. Uma das propostas de Macron aponta para eleições dentro de um ano, quando a “rua” quer mudanças, ontem. Macron passeava em Beirute e já a “rua” o acusava de estar a falar com a classe política libanesa corrupta, em vez de estar a falar com os libaneses que querem uma mudança radical no Líbano. Segunda acusação feita pela “rua”: Macron foi a Beirute apenas para defender os interesses franceses.

 

Emmanuel Macron chegou a Beirute já de noite e preparou o terreno com uma visita a Fairuz, a diva da canção árabe (a Amália dos libaneses, para facilitar a comparação). Uma espécie de tributo ao povo, deixando os políticos para segundo plano. A excepção foi o antigo primeiro-ministro (sunita) Saad Hariri, um encontro logo a seguir ao de Fairuz.

No segundo dia, Macron esteve nas cerimónias do centenário do “Grande Líbano”, foi ao porto, falou com ONG’s e com representantes da ONU, com associações civis e com empresas privadas envolvidas na reconstrução do porto, e só depois foi recebido no Palácio Presidencial, para o indispensável almoço oficial. No mesmo dia, à tarde, falou com o Patriarca Maronita e, por fim, a fechar o programa, encontrou-se com “os principais dirigentes políticos”. O próprio programa oficial espelha a pressão que Paris faz chegar a Beirute.

 

O "programa de governo"


Qual ponta de lança do FMI, o presidente francês levou a Beirute um conjunto de exigências – a expressão não é exagerada, tendo em conta o que se ouviu de Macron – que “encostam o Líbano à parede”. Assim uma espécie de “não há alternativa” com que, em tempos idos, fomos confrontados em Portugal, e sabemos agora que não era bem assim.


Antes de Macron anunciar as medidas que podem “salvar” o Líbano, a embaixada de França fez chegar aos principais líderes políticos libaneses um projecto de programa para o novo governo. Para além de medidas sobre a ajuda imediata ao combate à pandemia e à reconstrução do porto, a proposta francesa impõe a retoma imediata das negociações com o FMI e aprovação de medidas solicitadas pelo credor (FMI), incluindo uma lei de controlo de capitais e uma auditoria ao Banco Central; reformas no sector da energia, que incluem um calendário para o aumento do preço da electricidade; o Parlamento deve aprovar uma Lei sobre controlo de capitais que terá de ser aprovada pelo FMI. Há ainda um conjunto de normas de combate à corrupção, nomeações para sectores estratégicos, reforma da contratação pública e, finalmente, eleições dentro de um ano, depois de alterada a lei eleitoral. Sobre este ponto é exigido que a nova Lei faça a plena inclusão da sociedade civil, permitindo que o Parlamento seja mais representativo da sociedade. Não é dito de forma explícita, mas a proposta significa uma alteração da divisão de poderes – o pacto político – que rege o Líbano desde há décadas. Macron revelou um conjunto de tópicos e indicações que são um verdadeiro programa de governo, para um Primeiro-Ministro, Moustapha Adib, ainda a formar gabinete e de cuja nomeação a “rua” libanesa diz ser um exemplo da interferência estrangeira no Líbano. Moustapha Adib saiu de embaixador libanês na Alemanha, para assumir a liderança do próximo governo libanês.

 

Ao conjunto de exigências que devem ser cumpridas pelo novo governo, Emmanuel Macron acrescentou que ninguém passa cheques em branco e que não vai ser dada carta-branca ao Líbano. Para haver dinheiro, terá de haver mudanças!

 

Por muitos cedros que Emmanuel Macron plante no Líbano, não é difícil imaginar como o “estômago” de alguns libaneses deve ter ficado às voltas. Um presidente estrangeiro – com toda o histórico entre França e o Líbano – a dizer aos libaneses (quase a espetar-lhes o dedo no nariz) o que têm de fazer.

 

A indecência só não foi maior porque deve ter havido alguém com um pingo de bom-senso que colocou Macron a fazer este discurso na residência do embaixador francês em Beirute.

 

Para já, e quanto à questão mais sensível (a divisão de cargos políticos entre xiitas, sunitas e cristãos, e as quotas de lugares no Parlamento), o Presidente da República, cristão, Michel Aoun, defende que o Líbano deve ser um Estado laico; o líder do movimento xiita Amal e também presidente do Parlamento, Nabih Berri, defende a mudança do sistema confessional; o Hezbollah diz que está pronto a discutir um novo pacto político, mas Hassan Nasrallah colocou como condição ser um diálogo libanês e se for essa a vontade de todas as forças políticas. Quanto aos sunitas, Hariri é um aliado francês.

 

É perfeitamente compreensível, por questões de geoestratégia, que Macron queira uma forte influencia francesa no Líbano e no Médio Oriente, mas os tiques de arrogância que transparecem do discurso e da atitude do líder francês em Beirute, podem entrar em choque com a dignidade dos libaneses.

 

Há coisas mais importantes do que ter “uma cama e uma manjedoura”, porque as pessoas não são animais, e a dignidade é uma delas. Talvez Beirute ensine esse conceito a Macron.

 

Macron promete voltar ao Líbano em Dezembro.

 

Pinhal Novo, 6 de Setembro de 2020

josé manuel rosendo

 


 

segunda-feira, 24 de agosto de 2020

O porto de Beirute e os lares de idosos em Portugal

 

A Covid 19 está para os lares de idosos, em Portugal, como a explosão no porto de Beirute está para o Líbano. Não, obviamente, ao nível da destruição e morte provocadas, mas porque, tendo em conta as diferenças, foi necessário um “abanão” forte, e trágico, para que as atenções se fixassem em problemas muito antigos. Apenas agora o mundo ficou focado em Beirute e no Líbano, quando a enorme crise que atinge o país tem vindo a dar sinais na última década (desde o início da guerra na Síria) e de forma muito clara – grandes manifestações de rua – desde Outubro do ano passado; apenas agora Portugal acordou para um problema de décadas que é o funcionamento dos lares de idosos. Situações que nada têm a ver uma com a outra, mas que coincidem na forma como os problemas são ignorados ou, se preferirmos, mal resolvidos, porque outros interesses se levantam. Quando se ignoram problemas importantes pode ser meio caminho andado para a tragédia.

 

Nos últimos dias (havia necessidade?) o Primeiro-Ministro (PM), António Costa, desafiou os que perderam o trabalho no sector do turismo por causa da pandemia a procurarem emprego na área dos lares e das instituições sociais. A frase de António Costa faz lembrar uma outra do ex-PM, Passos Coelho, quando disse que o desemprego poderia ser uma oportunidade para mudar de vida. Comparar governantes é a parte que menos me interessa porque detesto a trica política. Gosto de Política (assim, com «P» grande) e nesse sentido o importante é olhar para os lares de idosos e assumir que é uma vergonha nacional. É algo a que o Estado, todos os Governos, nunca olharam com verdadeira vontade de mudança, de modo a introduzir políticas que nos proporcionem um final de vida digno.

 

A tragédia de 18 mortos no Lar de Reguengos de Monsaraz é “apenas” a cereja no topo de um bolo vergonhoso e de uma situação – tal como o nitrato de amónio há anos guardado no porto de Beirute – que os governantes sempre “empurraram com a barriga”. É certo que algumas situações de Lares ilegais foram resolvidas com o respectivo encerramento, mas também é verdade que essas situações só tinham lugar porque não havia resposta do Estado e a sociedade precisava de soluções. Quem já teve necessidade de colocar um familiar num lar de idosos conhece perfeitamente a realidade e a oferta de serviços. Havia, não sei se ainda há, “lares” em que bastava dar dois passos porta adentro para imediatamente ser obrigado a recuar, tal o cheiro que de lá vinha.

 

Depois há os outros. Legais e com condições mínimas. Também existem outros, com boas condições, alguns até de luxo, mas a que apenas uma pequena parte da população consegue aceder. Há lares das IPSS, das Misericórdias, das Fundações e de outras instituições. Generalizar será sem dúvida um exercício perigoso e até injusto para algumas instituições, mas esta é uma área em que a realidade veio demonstrar que precisamos de um banho de transparência. Desde logo porque aqueles que usufruem dos serviços prestados, na maioria dos casos, já não têm consciência da realidade e, por acréscimo, não se queixam do tratamento recebido. E, já agora, a maioria deles deixou de votar. Aqueles que, por motivos de saúde ou outros, estão indefesos, deveriam merecer ainda maior consideração e respeito.

 

É importante – aproveitando a visibilidade e atenção que o problema recebe – fazer um levantamento, um inquérito nacional, à situação das instituições que acolhem Idosos. Mas um inquérito a sério, e não apenas pedindo informação a essas instituições, porque se assim for é tempo perdido e dinheiro mal gasto. É importante saber tudo: do número de idosos ao número de Instituições; do que pagam os utentes ao que é pago pela Segurança Social; dos trabalhadores qualificados aos indiferenciados e ao número de trabalhadores que têm passado por cada instituição e em que circunstâncias; qual é o património das instituições e como é que ele se tem alterado ao longo do tempo. Obviamente que a lista do que é preciso saber não se fica por aqui. Mas é mesmo preciso saber, de forma transparente, o que se passa nos lares. Não precisamos de power-points bonitos, precisamos de informação credível e rigorosa. E a necessidade de se saber o que se passa não está associada a qualquer suspeita nem pretende insinuar seja o que for: é apenas a necessidade de saber as linhas com que nos cosemos.

 

Infelizmente, em certos aspectos, Portugal é um país de fachada. E a estatística é determinante no discurso político. Não há responsável político que prescinda de estatística a preceito, para responder às críticas. É prática habitual na nossa vida política que um qualquer ministro, depois de seis meses em funções, diga da sua própria área que tudo corre às mil maravilhas, mesmo que tenha dito cobras e lagartos enquanto foi oposição e até chegar ao Governo. E esse é também um problema dos lares: a estatística e os relatórios, onde tudo parece estar sempre bem e a melhorar.

 

Para contrariar a estatística e as aparências há uma história que me foi contada por um amigo, que teve a mãe 10 anos num lar de idosos. A senhora já não conseguia alimentar-se sozinha, precisando de apoio no momento das refeições, com a necessidade acrescida dos alimentos terem de ser partidos em pedaços muito pequenos porque essa capacidade de mastigar também estava diminuída. Numa visita fora das horas habituais, esse meu amigo deu com um prato de quartos de maçã pousado na mesa de cabeceira... numa outra visita igualmente fora de horas, estava o prato do almoço igualmente pousado na mesa de cabeceira. Em nenhum deles a mãe do meu amigo havia tocado; em nenhum deles alguém havia pegado para dar a refeição à idosa. Mas apesar disso, o mesmo lar ostentava nas paredes, para quem quisesse ver, as ementas variadas e os respectivos nutrientes que as compunham. Ementas perfeitas, diga-se, mas que só eram perfeitas no papel, porque muitas refeições nunca chegavam ao estômago dos idosos. A forma e a estatística, traídas pela realidade. E quanto a levantar esta idosa da cama, para a sentar numa cadeira, mesmo que apenas para olhar uma parede em frente, por vezes não havia trabalhadores suficientes. O meu amigo confirma: não havia!!!

 

Voltando ao desafio lançado por António Costa, e talvez sem o saber, o PM toca numa situação que contribui decisivamente para o deficiente funcionamento de alguns lares de idosos. Tratar de idosos com múltiplas carências exige uma vontade muito especial, porque é uma área muito difícil. É um trabalho pesado que exige dedicação, coração e alma. Exige uma formação focada na necessidade do conforto que deve ser dado a quem está a chegar ao fim. O que tem acontecido – voltamos à história que o meu amigo me contou – é muitos destes lares recorrerem a mão de obra não qualificada, e barata, enviada pelo Instituto de Emprego e Formação Profissional (ao abrigo de Programas que permitem às Instituições terem trabalhadores com um custo muito abaixo do que teriam de pagar a outros contratados directamente), e que atinge, por vezes, uma rotação que torna quase impossível fixar a cara de quem lá trabalha. Um lar de idosos não é uma linha de montagem industrial e os idosos precisam de ser acompanhados e tratados por alguém com quem estabeleçam algum tipo de ligação afectiva. Se a proposta do PM fizer caminho – mesmo com a respectiva formação profissional – há uma grande probabilidade de termos pessoas contrariadas a trabalhar nos lares – o que acontecia com muitas das que eram enviadas pelo IEFP – sem vocação e que se escapam na primeira oportunidade.

 

É importante sabermos o que correu mal no Lar de Reguengos de Monsaraz – claro que é – mas não para “pendurar” alguém na praça pública, nem para que sejam retirados dividendos políticos por cima dos cadáveres dos que morreram. Se alguém deixou de cumprir as funções a que está obrigado terá de responder por isso, mas o mais importante depois de se saber o que aconteceu em Reguengos e noutros lares do país, é fazer mudanças que evitem a repetição destes casos e que permitam um tratamento digno a quem lá está.

 

Se não soubermos tratar os nossos velhos – e sempre refiro o termo com carinho, até porque também eu gostaria de chegar a velho – esse  será um sinal do fraco país que vamos construindo e que em certo sentido já somos.

 

Pinhal Novo, 24 de Agosto de 2020

josé manuel rosendo

sexta-feira, 14 de agosto de 2020

Acordo de Paz entre Israel e o líder mais poderoso do mundo árabe provoca a fúria dos palestinianos

 Edição do Courrier International nº 1494, com cartoon assinado por André Carrilho

Durante a conferência de imprensa em que anunciou o Acordo de Paz entre Israel e os Emirados Árabes Unidos, o Primeiro-Ministro israelita, Benjamin Netanyahu, foi muito claro: a anexação do Vale do Jordão e de grande parte da Cisjordânia onde estão muitas dezenas de colonatos judaicos, continua em cima da mesa e a suspensão é apenas temporária. Dito de outra forma: esta suspensão é útil para conseguir este Acordo, mas vamos ver como correm as coisas e, se for preciso, a anexação avança sem demoras.

 

O Acordo tem a bênção de Donald Trump, presidente dos Estado Unidos, que juntamente com Mohammed bin Zayed (MBZ), príncipe dos Emirados Árabes Unidos e Benjamin Netanyahu, partilham ódios comuns: o Irão e a Irmandade Muçulmana. Anunciado como “histórico”, o Acordo é principalmente do interesses dos três líderes que o fizeram, porque reforça o arco de inimigos do Irão, aprofunda a divisão no mundo árabe e enfraquece a causa palestiniana.


Depois de estilhaçar tudo o que estava acordado para o conflito israelo-palestiniano, Donald Trump pretende surgir agora como o construtor da paz entre israelitas e árabes, ao mesmo tempo que (com eleições no horizonte) procura algum êxito que anule a imagem negativa que tem vindo a construir por causa da pandemia; Benjamin Netanyahu, entra na lista (o terceiro) de líderes israelitas a conseguirem a Paz com um país árabe, livra-se da promessa de uma anexação imediata e encontra um aliado produtor de petróleo; MBZ passa a ter acesso a mais tecnologia israelita, quiçá armamento e reivindica que o Acordo tenha sido alcançado como forma de suspender a anexação da Cisjordânia, pretendendo ser visto como o salvador dos palestinianos.


Mas essa não foi a interpretação dos palestinianos e de imediato surgiu uma chuva de críticas. Na Faixa de Gaza, o Hamas considerou a atitude dos Emirados como uma “facada nas costas” e acusou-os de estarem a premiar Israel pelos crimes cometidos com a ocupação (da Cisjordânia); em Ramallah, Mahmood Abbas, líder da Autoridade Palestiniana (AP), disse que se trata de uma traição. Um porta-voz da AP, acrescentou que é uma “traição a Jerusalém, (à Mesquita de) Al-Aqsa e à causa palestiniana”. Outra destacada dirigente palestiniana, Hanan Ashrawi, da Organização de Libertação da Palestina, através do Twitter, disse que “Israel foi recompensado por não declarar abertamente o que está a fazer à Palestina de forma ilegal e persistente desde o início da ocupação”. Ainda mais um dado: a Agência Palestiniana Wafa revelou que o representante palestiniano nos Emirados foi chamado a Ramallah.

 

No Irão, a Agência de notícias Tasnim, próxima da Guarda Revolucionária, classificou o acordo de “vergonhoso”. Por fim, em Israel, o presidente do Conselho que representa cerca de quinhentos mil colonos, disse que o Acordo é uma traição à confiança dos colonos que vivem na Cisjordânia.

 

Quanto aos dois únicos países árabes que já tinham Tratados de Paz com Israel, a Jordânia disse que é preciso esperar para ver e defendeu que Israel deve participar em negociações sérias para chegar à solução dois Estados; o Presidente egípcio Abdel Fatah Al Sissi  regozijou-se e saudou o que disse ser uma etapa para a concretização da paz no Médio Oriente, sublinhando ainda a “paragem” da anexação de parte da Cisjordânia.

 

Tendo agora sido anunciado este Acordo, de há muito se conhecem as negociações (e as relações) mais ou menos discretas entre Israel e os Emirados, mas também com a Arábia Saudita e o Bahrein, e Donald Trump manifestou a convicção de que outros países árabes poderão seguir o caminho dos Emirados Árabes Unidos. Um dos aspectos referidos no Acordo é o da possibilidade de muçulmanos de todos os países, desde que em paz e para rezar, possam visitar a Mesquita de Al Aqsa (terceiro lugar sagrado do Islão), em Jerusalém, desde que cheguem a Telavive com origem em Abu Dhabi (Emirados).

 

Mas, se Benjamin Netanyahu é sobejamente conhecido, quem é Mohammed bin Zayed, príncipe dos Emirados Árabes Unidos, o homem que assina este acordo de paz com o Primeiro-ministro israelita?

Em Junho de 2019, o jornal New York Times descreveu-o como o dirigente mais poderoso do mundo árabe. Antigo piloto de helicópteros formado no Reino Unido, é considerado o homem mais rico do mundo, tem o exército mais poderoso do mundo árabe, combateu as “Primaveras Árabes” (apoiou Al Sissi para chegar à presidência do Egipto, afastando a Irmandade Muçulmana) e apoiou o que o jornal descreve como um dos seus protegidos (Mohammed Bin Salman) para chegar ao poder na Arábia Saudita. A influência que tem em Washington é imensa, desde há 30 anos. Decaiu com Barack Obama, mas com Donald Trump é considerado uma das vozes que a Administração norte-americana mais tem em conta. Quanto à ligação a Israel já é longa e já permitiu, por exemplo, que os Emirados comprassem melhoramentos israelitas para os caças F-16 bem como programas informáticos de última geração para espiar telemóveis. Os Emirados Árabes Unidos têm 6% das reservas mundiais de petróleo.

 

Fechado este Acordo, fica a desconsideração, mais uma, do mundo árabe em relação à causa palestiniana. Por muito que a Liga Árabe emita comunicados e declarações de condenação à política de anexação israelita, são os actos que contam, e esses, em defesa da causa palestiniana, ninguém dá por eles. Nada se pode ter contra a Paz entre dois países, mas para um país árabe a questão palestiniana não devia ser apenas retórica. Ou será este um sinal de que o "Mundo Árabe" é algo que faz parte do passado?

 

Pinhal Novo, 14 de Agosto de 2020

josé manuel rosen

quarta-feira, 12 de agosto de 2020

Líbano: será possível fazer a Revolução?


Campo de refugiados palestinianos (Bourj Al Barajneh) nos arredores de Beirute (2013). Foto: jmr


É terrível a decisão com que se confrontam os libaneses. Terrível porque difícil e pode significar um corte com tudo o que têm conhecido na história recente do país. Perante um país em bancarrota, um Estado que não existe, desemprego em níveis assustadores e carências de toda a ordem – para além das ameaças externas – os libaneses estão na rua em protesto e já mostraram que conseguem fazer cair Governos. Mas esta é a fase em que os que verdadeiramente mandam no Líbano permitem o aliviar da pressão para evitar que a “panela rebente” de forma violenta e descontrolada.

 

Talvez seja exagerado anunciar a morte do actual sistema político e da divisão de poderes que serviu de pilar a 30 anos de paz entre as diferentes comunidades que compõem o Líbano mas, por outro lado, a necessidade de mudança é óbvia e, sem ela, não se vislumbra forma de dar um novo rumo ao país. Esse Acordo, que dividiu lugares no Parlamento, atribui a Presidência a um cristão Maronita, a liderança do Governo a um sunita e a Presidência do Parlamento a um xiita, parece um colete de forças do qual é imperioso que o Líbano se liberte, mas por outro lado é impossível prever o que pode acontecer se esse pilar da paz for dinamitado.

 

É habitual referirmo-nos a determinadas situações dramáticas ou de grande conflito com a expressão “nada vai ser como antes”. Algumas vezes será um excesso de linguagem provocada por visão curta da História, outras será uma leitura apressada e de hipervalorização de um determinado contexto, mas outras vezes é mesmo assim e a mudança é radical. E aqui convém sublinhar que “radical” significa tão só, literalmente, ir à raiz do problema.

 

O Líbano atravessa uma dessas situações. Isto é: o copo encheu e transbordou, a paciência ultrapassou todos os limites, e não há forma de acalmar a revolta dos libaneses a não ser que seja feita uma mudança radical no sistema político que os arrastou para um caldo de desespero que nunca foi visto em tempos mais recentes, mesmo com as sucessivas guerras, conflitos e vagas de refugiados.

 

Para que a revolta sossegue, será necessário que todos os protagonistas das últimas três décadas (ou até mais) saiam de cena. É essa a exigência da “rua”. Os libaneses não acreditam em políticos que quebraram sucessivamente as promessas feitas ao povo, ao mesmo tempo que enriqueceram e alimentaram clientelas, deixando o país minguar e entrar em falência.

Identificado o problema, falta encontrar uma solução. Quem deve substituir os actuais políticos?, “caras novas” das mesmas forças políticas? Será difícil, uma vez que não poderão escapar aos “esquemas” que essas forças políticas sempre controlaram. Então, quem? Será possível surgir uma nova geração de políticos, quiçá com origem nos diferentes (e são muitos) movimentos que organizam os protestos que já fizeram cair dois Governos? E que orientação política terá esse novo movimento? Conseguirá formar um único bloco/partido político que capte, independentemente da confissão religiosa, o voto e a confiança de muitos libaneses? Ou vão surgir vários pequenos partidos e movimentos que acabarão trucidados pelas forças políticas tradicionais? Basta que nos lembremos de que o Movimento que provocou a queda do egípcio Moubarak foi varrido nas eleições que se seguiram e, como sabemos, o Egipto já regressou à “casa de partida” com um ditador militar no poder. E se este Movimento de revolta no Líbano conseguir formar uma força política sólida, como vão reagir as forças políticas tradicionais? Vão abrir mão de toda a influência e poder que sempre mantiveram?

 

São perguntas com resposta extremamente difícil. Para além do que os libaneses pensam e querem é bom não esquecer as influências externas. Irão, Estados Unidos, Rússia, União Europeia (para não dizer França...) e até a China, estão a mexer “os cordelinhos”. Israel, embora não directamente, também influencia.

 

O único censo de que há registo foi feito em 1932 e não se sabe ao certo quantos são os libaneses. Mas sabe-se que existem 18 confissões religiosas no país. Na hora da verdade – do voto – há uma identidade confessional que pode sobrepor-se a um interesse nacional. É muito difícil a quem se sente desprotegido abandonar a única base que lhe oferece garantias de protecção e apoio. E aí chegados, os sunitas irão votar nos partidos sunitas; os xiitas nos partidos xiitas e os cristãos nos partidos cristãos. Não adiantará muito dizer que não pode ser assim, porque a realidade é assim mesmo e só mudará quando os libaneses quiserem.


Os libaneses têm uma memória de guerra e violência que certamente não quererão repetir, mas também é verdade que muitos libaneses nada têm a perder.

 

Pinhal Novo, 12 de Agosto de 2020

josé manuel rosendo

segunda-feira, 10 de agosto de 2020

O Acordo (de Taif) que pôs fim à guerra civil no Líbano pode ter os dias contados

 Foi necessário um enorme estrondo para que o Líbano merecesse atenção. Não bastava as manifestações desde 17 de Outubro do ano passado, não bastava o afundar da Libra libanesa; não bastava a grave crise económica, o desemprego e a queda brutal do poder de compra; não bastava haver um milhão e 500 mil refugiados sírios no país; não bastava as regulares violações israelitas do espaço aéreo libanês... Tem sempre de acontecer algo de terrível para que um determinado país, conflito ou situação, que merece acompanhamento mais atento, fique debaixo dos holofotes. Há quem critique acções violentas em contextos de conflito político mas, de facto, só a partir daí o mundo se apercebe que algo de importante está a acontecer em determinado país. No caso da explosão no porto de Beirute, não foi – até ver – uma acção desencadeada directamente por acção humana, mas a destruição provocada tornou inevitável uma maior atenção ao que se passa no Líbano.

 

As manifestações que se seguiram, e continuam, levaram à ocupação de vários ministérios e à demissão de dois ministros e também à renúncia de sete deputados. Mas é bom que se saiba que as manifestações já tinham provocado a queda de um Primeiro-ministro (Saad Hariri) e não foi por isso – por ter havido um novo Governo – que alguma coisa mudou no quotidiano libanês. Aliás, o actual Governo, liderado por Hassan Diab, já foi uma resposta às manifestações, sendo um Governo de características muito específicas (formado por tecnocratas) e totalmente inesperadas, uma vez que o Primeiro-Ministro (sunita, como a Constituição obriga) não tem o apoio das forças sunitas, mas sim do Hezbollah (xiita) e respectivos aliados. Algo que nunca tinha acontecido.

 

Por estes dias, no Líbano, tal como em 2011 aquando das “primaveras árabes” noutros países, o povo também quer a “queda do regime!”, mas a diferença é que o regime libanês é um regime democrático. Com muitos e terríveis defeitos, é certo. Tal como em muitas outras democracias, também no Líbano, a corrupção e os líderes políticos que pensam em tudo menos na boa governação, acabam por desiludir o povo e chega o dia em que a “rua” se revolta a sério.

 

Em 2011, nas ruas de Tunis, Cairo ou Bengahzi, o povo pediu a “queda do regime” mas eram ditadores sanguinários que estavam a ser corridos. No Líbano, a questão é diferente, embora a maioria da actual classe política não mereça qualquer consideração.

 

A pergunta a fazer é simples: se este Governo sair de imediato, quem governa o Líbano até às eleições já prometidas? Se esta classe política for afastada quem tomará o seu lugar? Numa ditadura, quando há uma revolução, a oposição tem gente preparada para tomar o poder, mas no caso do Líbano, não se sabe como será. Obviamente que esta dúvida não pode servir de argumento para manter gente corrupta no poder, mas seria bom que se conhecessem as alternativas, até porque a última coisa que o Líbano precisa é de uma situação em que a luta política ganhe contornos de conflito violento.

 

Por agora, conhece-se uma “Carta de Salvação Nacional, para um Estado de Direito e da Cidadania”, da autoria de um “colectivo de cidadãos” que já terá recebido mais de 70 mil assinaturas e que propõe um conjunto de medidas contra a corrupção e o clientelismo de um (actual) poder de base confessional. A dita carta propõe, entre outras coisas, que o actual acordo que distribui o poder pelas diferentes confissões religiosas seja anulado e que a representação no parlamento dependa apenas das opções políticas dos libaneses. Aqui chegados temos outro problema: o Acordo de Taif, assinado em 1989 e que ajudou a pôr fim à guerra civil, distribui os cargos políticos entre as diferentes comunidades religiosas e mesmo se, até agora, nunca foi totalmente cumprido, contribuiu de forma decisiva para o Líbano não voltar à guerra civil. Se for anulado não se sabe o que poderá acontecer. O Acordo de Taif obriga a alianças e acordos porque nenhuma das comunidades é maioritária e mesmo que isso tenha sido utilizado para a compra de favores e para o escalar da corrupção, também é verdade que evitou o domínio de qualquer uma das comunidades em relação às outras.

 

É certo que a comunidade libanesa de hoje não é igual àquela que há 30 anos aceitou este Acordo, mas a religião continua a ter um forte peso na sociedade libanesa e na hora de votar não se sabe se as novas gerações não vão fazer uma opção confessional. Se a derrocada do actual sistema no Líbano conduzir a um outro sistema livre da distribuição confessional dos cargos políticos, teremos de esperar para ver o resultado, mas só os libaneses sabem aquilo que pode ser o melhor para esse país, maravilhoso, à beira do Mediterrâneo.

 

 

Pinhal Novo, 9 de Agosto de 2020

josé manuel rosendo

 

sábado, 8 de agosto de 2020

Só os libaneses podem ajudar o Líbano

Mausoléu de Rafic Hariri, em 2011, na Mesquita de Al Amin, Beirute. Foto: jmr



Escrevo este texto à mesma hora em que decorrem manifestações em Beirute contra uma velha classe política acusada de corrupção e má governação do país. Já se sabe - disse o Primeiro-Ministro - que o Líbano terá eleições antecipadas. Por agora, o que faz furor entre os media internacionais são fotografias de um manifestante com a simulação do enforcamento do líder do Hezbollah, Hassan Nasrallah, passando a ideia de que o Hezbollah é o “pecado original”. Não é! Há corrupção no Líbano? Sem dúvida, muita corrupção! Tem havido má governação? Sem dúvida que sim. E que mais?

 

Desde logo, num momento em que Beirute volta a “sangrar” devido à explosão de dia 4 e quando o país está muito afectado pelo novo coronavírus, precisando claramente da ajuda e da solidariedade internacionais, torna-se difícil compreender o momento escolhido para o protesto. É certo que os protestos contra a corrupção da classe política começaram no Outono do ano passado, mas depois da recente explosão no porto, repetiram-se hoje e também na última quinta-feira. Num momento em que o país ainda está a contar os mortos, dificilmente este tipo de protestos terá algum efeito concreto a não ser somar caos ao caos. Fica a ideia de que há alguém fortemente interessado em criar uma situação que justifique uma intervenção estrangeira, tenha ela a forma que tiver.

 

Ainda não se sabe o que provocou a explosão que varreu parte de Beirute, a 4 de Agosto. Sabemos que havia nitrato de amónio armazenado no porto em grande quantidade e sabemos que para este químico explodir precisa de uma ignição. E sabemos que havia artefactos de pirotecnia. Nas declarações após a recente visita do Presidente francês a Beirute, o Presidente libanês Michel Anoun admitiu que tudo pode ter resultado de incúria, mas não excluiu a possibilidade de ter havido uma intervenção externa, através de um míssil ou de uma bomba, lançados contra o porto de Beirute. De notar que Anoun disse isto três dias depois da explosão. Não o disse a “quente” e, espera-se de um Presidente, que não profira declarações apenas para gerar suspeitas e confusão.

 

Logo no dia da explosão, as primeiras imagens que mostravam a formação de um cogumelo e a própria potência da explosão, eram sinais claros de que não se tratava de fogo de artifício, como inicialmente se alvitrou.

 

Sem alimentar hipocrisias nem cinismos, não devemos ter medo das palavras ao abordar mais este terrível momento e, sendo de Beirute que se trata, com o passado recente que se conhece e com toda a complexidade geopolítica que marca a região, não foi de todo descabido pensar que tinha sido uma explosão de armamento, quiçá do Hezbollah. O Líbano e o Hezbollah têm vizinhos perigosos – da mesma forma que o Líbano e o Hezbollah são considerados perigosos pelos vizinhos – e sabemos como essa convivência é difícil. A violação do espaço aéreo libanês por parte de Israel é quase diária e os dois países estão ainda, oficialmente, em guerra. Também por isso, por estarem ainda em guerra, a oferta de ajuda feita por Israel é um claro acto de cinismo.

 

Israel demarcou-se de qualquer intervenção na explosão. O Hezbollah fez o mesmo. Aliás, o Hezbollah nunca provocaria uma explosão como aquela que aconteceu em Beirute, porque nunca foi essa a estratégia do “Partido de Deus”.

 

Para perceber a complexidade do Líbano, ler Amin Maalouf pode ser uma excelente ajuda. O escritor libanês, refere no seu mais recente livro “O Naufrágio das Civilizações”, “o hábito de as diferentes comunidades arranjarem protectores fora do país, para reforçarem a sua posição no interior. Era como se na Suíça – pois amiúde se disse que o Líbano era a Suíça do Próximo Oriente –, os habitantes de Zurique, Genebra ou Ticino pedissem ajuda à Alemanha, França ou Itália, sempre que entrassem em conflito com o cantão vizinho. A Confederação (Suíça) ter-se-ia, sem dúvida, desintegrado”. E Maalouf diz mais: “... todas as comunidades do Líbano são minoritárias, até as mais numerosas. Todas elas conheceram, um dia ou outro, perseguições ou humilhações e todas sentiram a necessidade de recorrer à astúcia e de se proteger para sobreviver. Como tal, cada uma empenhou-se em tecer redes regionais e internacionais, com todo o tipo de parceiros, que alimentavam as suas próprias ambições, os seus próprios medos, as suas próprias inimizades...”. Ao citar Amin Maalouf não significa que concorde com todas as suas opiniões, mas nesta descrição parece-me estar carregado de razão. Beirute, para além de capital do Líbano foi também "capital" de muitos interesses, plataforma perfeita para negócios que teriam mais problemas noutras latitudes.

 

Al Hayba, uma série televisiva de 30 episódios, disponível na Netflix, sobre um clã libanês e o tráfico de armas e drogas, também ajuda a perceber a realidade libanesa em que a religião, as etnias, os partidos políticos e os clãs, muitas vezes se substituem ao Estado para ditar as regras em que todos se movimentam.

 

Fouad Siniora, Primeiro-ministro do Líbano durante a guerra de 2006, disse em Roma, onde foi assinado o cessar-fogo, que pelo menos no tempo dele nunca seria assinado um Tratado de Paz com Israel e, acrescentou – o facto tem ainda mais importância por Siniora ser um sunita – o (xiita) Hezbollah faz parte da história do Líbano. Foi a resposta de Siniora, aos que exigiam o desarmamento do Hezbollah. Aliás, essa exigência, estando Israel ali ao lado, e sendo o Líbano o que é, só podia ser feita por quem, de facto, não queria contribuir para nada a não ser para continuar a apontar o dedo ao Hezbollah.

 

Aliás, durante a guerra de 2006, foi o Hezbollah que valeu aos libaneses. O Hezbollah e as Organizações não Governamentais, porque o Estado libanês revelou total incapacidade para valer ao povo durante os ataques israelitas e depois, no apoio aos que perderam a casa e emprego, e também na reconstrução das zonas afectadas.

 

O Líbano não vai mudar por decreto ou por imposição externa. Só os libaneses poderão dar um novo rumo ao país e a forma de o fazer também terão de ser os libaneses a descobrir. A região tem uma tradição de convivência entre diferentes povos e religiões que só a interferência ocidental desarticulou, traçando fronteiras e impondo divisões que geraram conflitos, guerras e afastaram povos. A recente visita do Presidente francês é um sinal disso mesmo e a parvoíce de uma petição online para que a França volte a governar o Líbano, são sinais de que ninguém aprendeu nada com os erros do passado. A ajuda internacional será algo de que o Líbano, neste momento, obviamente precisa, mas terá de ser mesmo uma ajuda e não um “empréstimo” com um preço político associado. Se for isso não se pode chamar ajuda. Chamem-lhe o que quiserem.

 

O sofrimento desta cidade, e do país, parece má sina, se atendermos a que, periodicamente, têm lugar desastres ou conflitos de tal modo violentos que obrigam a sucessivos renascimentos. Beirute e o Líbano, mais uma vez, terão de renascer. Aos libaneses só tenho de agradecer a forma como sempre fui recebido. Por todos.

 

PS – vou tentar em breve voltar a este assunto olhando já para as eleições antecipadas e para o xadrez político libanês.

 

Pinhal Novo, 8 de Agosto de 2020

José Manuel Rosendo