Emmanuel Macron, esteve pela segunda vez na capital libanesa desde a explosão no porto de Beirute. O Líbano está em cacos, devido a essa explosão, mas também devido a uma crise política, social e económica, com raízes profundas no sistema político, na presença de mais de um milhão de refugiados sírios e na corrupção transversal a todos os sectores da sociedade. Os libaneses conhecem essa realidade melhor do que ninguém, sofrem com ela, pagam um preço elevadíssimo e desde Outubro do ano passado que saíram à rua exigindo mudanças.
Perante este cenário e com as imagens da explosão ainda frescas na memória, muitos entendem que a mudança é agora ou nunca. O Presidente francês é um deles e foi a Beirute dizer que esta é a última oportunidade para o sistema libanês e logo aí entrou em contradição, porque disse também que acompanha a pressão que os libaneses fazem para convencer a classe política a mudar de atitude. Ora, não é possível dar uma última oportunidade ao sistema e apoiar quem quer mudar o sistema. Uma das propostas de Macron aponta para eleições dentro de um ano, quando a “rua” quer mudanças, ontem. Macron passeava em Beirute e já a “rua” o acusava de estar a falar com a classe política libanesa corrupta, em vez de estar a falar com os libaneses que querem uma mudança radical no Líbano. Segunda acusação feita pela “rua”: Macron foi a Beirute apenas para defender os interesses franceses.
Emmanuel Macron chegou a Beirute já de noite e preparou o terreno com uma visita a Fairuz, a diva da canção árabe (a Amália dos libaneses, para facilitar a comparação). Uma espécie de tributo ao povo, deixando os políticos para segundo plano. A excepção foi o antigo primeiro-ministro (sunita) Saad Hariri, um encontro logo a seguir ao de Fairuz.
No segundo dia, Macron esteve nas cerimónias do centenário do “Grande Líbano”, foi ao porto, falou com ONG’s e com representantes da ONU, com associações civis e com empresas privadas envolvidas na reconstrução do porto, e só depois foi recebido no Palácio Presidencial, para o indispensável almoço oficial. No mesmo dia, à tarde, falou com o Patriarca Maronita e, por fim, a fechar o programa, encontrou-se com “os principais dirigentes políticos”. O próprio programa oficial espelha a pressão que Paris faz chegar a Beirute.
O "programa de governo"
Qual ponta de lança do FMI, o presidente francês levou a Beirute um conjunto de exigências – a expressão não é exagerada, tendo em conta o que se ouviu de Macron – que “encostam o Líbano à parede”. Assim uma espécie de “não há alternativa” com que, em tempos idos, fomos confrontados em Portugal, e sabemos agora que não era bem assim.
Antes de Macron anunciar as medidas que podem “salvar” o Líbano, a embaixada de França fez chegar aos principais líderes políticos libaneses um projecto de programa para o novo governo. Para além de medidas sobre a ajuda imediata ao combate à pandemia e à reconstrução do porto, a proposta francesa impõe a retoma imediata das negociações com o FMI e aprovação de medidas solicitadas pelo credor (FMI), incluindo uma lei de controlo de capitais e uma auditoria ao Banco Central; reformas no sector da energia, que incluem um calendário para o aumento do preço da electricidade; o Parlamento deve aprovar uma Lei sobre controlo de capitais que terá de ser aprovada pelo FMI. Há ainda um conjunto de normas de combate à corrupção, nomeações para sectores estratégicos, reforma da contratação pública e, finalmente, eleições dentro de um ano, depois de alterada a lei eleitoral. Sobre este ponto é exigido que a nova Lei faça a plena inclusão da sociedade civil, permitindo que o Parlamento seja mais representativo da sociedade. Não é dito de forma explícita, mas a proposta significa uma alteração da divisão de poderes – o pacto político – que rege o Líbano desde há décadas. Macron revelou um conjunto de tópicos e indicações que são um verdadeiro programa de governo, para um Primeiro-Ministro, Moustapha Adib, ainda a formar gabinete e de cuja nomeação a “rua” libanesa diz ser um exemplo da interferência estrangeira no Líbano. Moustapha Adib saiu de embaixador libanês na Alemanha, para assumir a liderança do próximo governo libanês.
Ao conjunto de exigências que devem ser cumpridas pelo novo governo, Emmanuel Macron acrescentou que ninguém passa cheques em branco e que não vai ser dada carta-branca ao Líbano. Para haver dinheiro, terá de haver mudanças!
Por muitos cedros que Emmanuel Macron plante no Líbano, não é difícil imaginar como o “estômago” de alguns libaneses deve ter ficado às voltas. Um presidente estrangeiro – com toda o histórico entre França e o Líbano – a dizer aos libaneses (quase a espetar-lhes o dedo no nariz) o que têm de fazer.
A indecência só não foi maior porque deve ter havido alguém com um pingo de bom-senso que colocou Macron a fazer este discurso na residência do embaixador francês em Beirute.
Para já, e quanto à questão mais sensível (a divisão de cargos políticos entre xiitas, sunitas e cristãos, e as quotas de lugares no Parlamento), o Presidente da República, cristão, Michel Aoun, defende que o Líbano deve ser um Estado laico; o líder do movimento xiita Amal e também presidente do Parlamento, Nabih Berri, defende a mudança do sistema confessional; o Hezbollah diz que está pronto a discutir um novo pacto político, mas Hassan Nasrallah colocou como condição ser um diálogo libanês e se for essa a vontade de todas as forças políticas. Quanto aos sunitas, Hariri é um aliado francês.
É perfeitamente compreensível, por questões de geoestratégia, que Macron queira uma forte influencia francesa no Líbano e no Médio Oriente, mas os tiques de arrogância que transparecem do discurso e da atitude do líder francês em Beirute, podem entrar em choque com a dignidade dos libaneses.
Há coisas mais importantes do que ter “uma cama e uma manjedoura”, porque as pessoas não são animais, e a dignidade é uma delas. Talvez Beirute ensine esse conceito a Macron.
Macron promete voltar ao Líbano em Dezembro.
Pinhal Novo, 6 de Setembro de 2020
josé manuel rosendo
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