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segunda-feira, 10 de agosto de 2020

O Acordo (de Taif) que pôs fim à guerra civil no Líbano pode ter os dias contados

 Foi necessário um enorme estrondo para que o Líbano merecesse atenção. Não bastava as manifestações desde 17 de Outubro do ano passado, não bastava o afundar da Libra libanesa; não bastava a grave crise económica, o desemprego e a queda brutal do poder de compra; não bastava haver um milhão e 500 mil refugiados sírios no país; não bastava as regulares violações israelitas do espaço aéreo libanês... Tem sempre de acontecer algo de terrível para que um determinado país, conflito ou situação, que merece acompanhamento mais atento, fique debaixo dos holofotes. Há quem critique acções violentas em contextos de conflito político mas, de facto, só a partir daí o mundo se apercebe que algo de importante está a acontecer em determinado país. No caso da explosão no porto de Beirute, não foi – até ver – uma acção desencadeada directamente por acção humana, mas a destruição provocada tornou inevitável uma maior atenção ao que se passa no Líbano.

 

As manifestações que se seguiram, e continuam, levaram à ocupação de vários ministérios e à demissão de dois ministros e também à renúncia de sete deputados. Mas é bom que se saiba que as manifestações já tinham provocado a queda de um Primeiro-ministro (Saad Hariri) e não foi por isso – por ter havido um novo Governo – que alguma coisa mudou no quotidiano libanês. Aliás, o actual Governo, liderado por Hassan Diab, já foi uma resposta às manifestações, sendo um Governo de características muito específicas (formado por tecnocratas) e totalmente inesperadas, uma vez que o Primeiro-Ministro (sunita, como a Constituição obriga) não tem o apoio das forças sunitas, mas sim do Hezbollah (xiita) e respectivos aliados. Algo que nunca tinha acontecido.

 

Por estes dias, no Líbano, tal como em 2011 aquando das “primaveras árabes” noutros países, o povo também quer a “queda do regime!”, mas a diferença é que o regime libanês é um regime democrático. Com muitos e terríveis defeitos, é certo. Tal como em muitas outras democracias, também no Líbano, a corrupção e os líderes políticos que pensam em tudo menos na boa governação, acabam por desiludir o povo e chega o dia em que a “rua” se revolta a sério.

 

Em 2011, nas ruas de Tunis, Cairo ou Bengahzi, o povo pediu a “queda do regime” mas eram ditadores sanguinários que estavam a ser corridos. No Líbano, a questão é diferente, embora a maioria da actual classe política não mereça qualquer consideração.

 

A pergunta a fazer é simples: se este Governo sair de imediato, quem governa o Líbano até às eleições já prometidas? Se esta classe política for afastada quem tomará o seu lugar? Numa ditadura, quando há uma revolução, a oposição tem gente preparada para tomar o poder, mas no caso do Líbano, não se sabe como será. Obviamente que esta dúvida não pode servir de argumento para manter gente corrupta no poder, mas seria bom que se conhecessem as alternativas, até porque a última coisa que o Líbano precisa é de uma situação em que a luta política ganhe contornos de conflito violento.

 

Por agora, conhece-se uma “Carta de Salvação Nacional, para um Estado de Direito e da Cidadania”, da autoria de um “colectivo de cidadãos” que já terá recebido mais de 70 mil assinaturas e que propõe um conjunto de medidas contra a corrupção e o clientelismo de um (actual) poder de base confessional. A dita carta propõe, entre outras coisas, que o actual acordo que distribui o poder pelas diferentes confissões religiosas seja anulado e que a representação no parlamento dependa apenas das opções políticas dos libaneses. Aqui chegados temos outro problema: o Acordo de Taif, assinado em 1989 e que ajudou a pôr fim à guerra civil, distribui os cargos políticos entre as diferentes comunidades religiosas e mesmo se, até agora, nunca foi totalmente cumprido, contribuiu de forma decisiva para o Líbano não voltar à guerra civil. Se for anulado não se sabe o que poderá acontecer. O Acordo de Taif obriga a alianças e acordos porque nenhuma das comunidades é maioritária e mesmo que isso tenha sido utilizado para a compra de favores e para o escalar da corrupção, também é verdade que evitou o domínio de qualquer uma das comunidades em relação às outras.

 

É certo que a comunidade libanesa de hoje não é igual àquela que há 30 anos aceitou este Acordo, mas a religião continua a ter um forte peso na sociedade libanesa e na hora de votar não se sabe se as novas gerações não vão fazer uma opção confessional. Se a derrocada do actual sistema no Líbano conduzir a um outro sistema livre da distribuição confessional dos cargos políticos, teremos de esperar para ver o resultado, mas só os libaneses sabem aquilo que pode ser o melhor para esse país, maravilhoso, à beira do Mediterrâneo.

 

 

Pinhal Novo, 9 de Agosto de 2020

josé manuel rosendo

 

sábado, 8 de agosto de 2020

Só os libaneses podem ajudar o Líbano

Mausoléu de Rafic Hariri, em 2011, na Mesquita de Al Amin, Beirute. Foto: jmr



Escrevo este texto à mesma hora em que decorrem manifestações em Beirute contra uma velha classe política acusada de corrupção e má governação do país. Já se sabe - disse o Primeiro-Ministro - que o Líbano terá eleições antecipadas. Por agora, o que faz furor entre os media internacionais são fotografias de um manifestante com a simulação do enforcamento do líder do Hezbollah, Hassan Nasrallah, passando a ideia de que o Hezbollah é o “pecado original”. Não é! Há corrupção no Líbano? Sem dúvida, muita corrupção! Tem havido má governação? Sem dúvida que sim. E que mais?

 

Desde logo, num momento em que Beirute volta a “sangrar” devido à explosão de dia 4 e quando o país está muito afectado pelo novo coronavírus, precisando claramente da ajuda e da solidariedade internacionais, torna-se difícil compreender o momento escolhido para o protesto. É certo que os protestos contra a corrupção da classe política começaram no Outono do ano passado, mas depois da recente explosão no porto, repetiram-se hoje e também na última quinta-feira. Num momento em que o país ainda está a contar os mortos, dificilmente este tipo de protestos terá algum efeito concreto a não ser somar caos ao caos. Fica a ideia de que há alguém fortemente interessado em criar uma situação que justifique uma intervenção estrangeira, tenha ela a forma que tiver.

 

Ainda não se sabe o que provocou a explosão que varreu parte de Beirute, a 4 de Agosto. Sabemos que havia nitrato de amónio armazenado no porto em grande quantidade e sabemos que para este químico explodir precisa de uma ignição. E sabemos que havia artefactos de pirotecnia. Nas declarações após a recente visita do Presidente francês a Beirute, o Presidente libanês Michel Anoun admitiu que tudo pode ter resultado de incúria, mas não excluiu a possibilidade de ter havido uma intervenção externa, através de um míssil ou de uma bomba, lançados contra o porto de Beirute. De notar que Anoun disse isto três dias depois da explosão. Não o disse a “quente” e, espera-se de um Presidente, que não profira declarações apenas para gerar suspeitas e confusão.

 

Logo no dia da explosão, as primeiras imagens que mostravam a formação de um cogumelo e a própria potência da explosão, eram sinais claros de que não se tratava de fogo de artifício, como inicialmente se alvitrou.

 

Sem alimentar hipocrisias nem cinismos, não devemos ter medo das palavras ao abordar mais este terrível momento e, sendo de Beirute que se trata, com o passado recente que se conhece e com toda a complexidade geopolítica que marca a região, não foi de todo descabido pensar que tinha sido uma explosão de armamento, quiçá do Hezbollah. O Líbano e o Hezbollah têm vizinhos perigosos – da mesma forma que o Líbano e o Hezbollah são considerados perigosos pelos vizinhos – e sabemos como essa convivência é difícil. A violação do espaço aéreo libanês por parte de Israel é quase diária e os dois países estão ainda, oficialmente, em guerra. Também por isso, por estarem ainda em guerra, a oferta de ajuda feita por Israel é um claro acto de cinismo.

 

Israel demarcou-se de qualquer intervenção na explosão. O Hezbollah fez o mesmo. Aliás, o Hezbollah nunca provocaria uma explosão como aquela que aconteceu em Beirute, porque nunca foi essa a estratégia do “Partido de Deus”.

 

Para perceber a complexidade do Líbano, ler Amin Maalouf pode ser uma excelente ajuda. O escritor libanês, refere no seu mais recente livro “O Naufrágio das Civilizações”, “o hábito de as diferentes comunidades arranjarem protectores fora do país, para reforçarem a sua posição no interior. Era como se na Suíça – pois amiúde se disse que o Líbano era a Suíça do Próximo Oriente –, os habitantes de Zurique, Genebra ou Ticino pedissem ajuda à Alemanha, França ou Itália, sempre que entrassem em conflito com o cantão vizinho. A Confederação (Suíça) ter-se-ia, sem dúvida, desintegrado”. E Maalouf diz mais: “... todas as comunidades do Líbano são minoritárias, até as mais numerosas. Todas elas conheceram, um dia ou outro, perseguições ou humilhações e todas sentiram a necessidade de recorrer à astúcia e de se proteger para sobreviver. Como tal, cada uma empenhou-se em tecer redes regionais e internacionais, com todo o tipo de parceiros, que alimentavam as suas próprias ambições, os seus próprios medos, as suas próprias inimizades...”. Ao citar Amin Maalouf não significa que concorde com todas as suas opiniões, mas nesta descrição parece-me estar carregado de razão. Beirute, para além de capital do Líbano foi também "capital" de muitos interesses, plataforma perfeita para negócios que teriam mais problemas noutras latitudes.

 

Al Hayba, uma série televisiva de 30 episódios, disponível na Netflix, sobre um clã libanês e o tráfico de armas e drogas, também ajuda a perceber a realidade libanesa em que a religião, as etnias, os partidos políticos e os clãs, muitas vezes se substituem ao Estado para ditar as regras em que todos se movimentam.

 

Fouad Siniora, Primeiro-ministro do Líbano durante a guerra de 2006, disse em Roma, onde foi assinado o cessar-fogo, que pelo menos no tempo dele nunca seria assinado um Tratado de Paz com Israel e, acrescentou – o facto tem ainda mais importância por Siniora ser um sunita – o (xiita) Hezbollah faz parte da história do Líbano. Foi a resposta de Siniora, aos que exigiam o desarmamento do Hezbollah. Aliás, essa exigência, estando Israel ali ao lado, e sendo o Líbano o que é, só podia ser feita por quem, de facto, não queria contribuir para nada a não ser para continuar a apontar o dedo ao Hezbollah.

 

Aliás, durante a guerra de 2006, foi o Hezbollah que valeu aos libaneses. O Hezbollah e as Organizações não Governamentais, porque o Estado libanês revelou total incapacidade para valer ao povo durante os ataques israelitas e depois, no apoio aos que perderam a casa e emprego, e também na reconstrução das zonas afectadas.

 

O Líbano não vai mudar por decreto ou por imposição externa. Só os libaneses poderão dar um novo rumo ao país e a forma de o fazer também terão de ser os libaneses a descobrir. A região tem uma tradição de convivência entre diferentes povos e religiões que só a interferência ocidental desarticulou, traçando fronteiras e impondo divisões que geraram conflitos, guerras e afastaram povos. A recente visita do Presidente francês é um sinal disso mesmo e a parvoíce de uma petição online para que a França volte a governar o Líbano, são sinais de que ninguém aprendeu nada com os erros do passado. A ajuda internacional será algo de que o Líbano, neste momento, obviamente precisa, mas terá de ser mesmo uma ajuda e não um “empréstimo” com um preço político associado. Se for isso não se pode chamar ajuda. Chamem-lhe o que quiserem.

 

O sofrimento desta cidade, e do país, parece má sina, se atendermos a que, periodicamente, têm lugar desastres ou conflitos de tal modo violentos que obrigam a sucessivos renascimentos. Beirute e o Líbano, mais uma vez, terão de renascer. Aos libaneses só tenho de agradecer a forma como sempre fui recebido. Por todos.

 

PS – vou tentar em breve voltar a este assunto olhando já para as eleições antecipadas e para o xadrez político libanês.

 

Pinhal Novo, 8 de Agosto de 2020

José Manuel Rosendo

quarta-feira, 23 de setembro de 2015

Estados Unidos e Rússia preparam “retirada” de Bashar al Assad para uma "nova Síria"


Praticamente desde o início da guerra na Síria que se fala da possibilidade de criação de um novo Estado que albergue Bashar al Assad e os Alauitas, ramo xiita a que pertence a família Assad. A "nova Síria" teria por base as províncias de Tartus e Lataquia, onde estão concentrados os Alauitas e que são as duas províncias mais a Oeste do actual território sírio, encostadas ao Mar Mediterrâneo.

Em termos puramente militares é por demais evidente a incapacidade das forças de Assad para recuperarem território: já perderam grande parte da Síria para as várias facções que combatem o regime mas que também combatem entre elas (por vezes em alianças de ocasião), apenas dominam a capital – ainda assim praticamente cercada –, as zonas controladas pelo Hezbollah libanês e algumas bolsas de terreno no resto do território, para além das duas províncias junto ao Mediterrâneo. Assad, enfrenta vários inimigos, conta com o apoio do Hezbollah libanês e de militares iranianos mas já não tem capacidade de recrutamento próprio. A confusão na Síria é muito grande. Arrumar a casa pode exigir um plano que comece por resolver o “problema Assad” e que passará por dar ao actual Presidente um território que seja étnica e religiosamente homogéneo. Depois se verá como pode evoluir o combate ao Estado Islâmico e quem ficará no que restar do território da actual Síria.

Os mais de quatro anos de guerra já provocaram mais de 240.000 mortos, vários milhões de refugiados e deslocados. Os países vizinhos albergam milhões de refugiados sírios e, também eles, querem ver rapidamente terminado uma guerra que facilmente pode galgar fronteiras. Os curdos capitalizam o esforço de guerra que têm feito contra o Estado Islâmico e vão certamente querer que isso se traduza em algo mais, quer na Síria quer no Iraque, sendo que na Turquia o governo dá sinais de não querer ser reactivo e já se apressou a tomar a iniciativa de modo a que os curdos não sintam qualquer margem de manobra a exigências que sempre assustaram Ancara. Se nada for feito a guerra na Síria só pode alastrar.

O entendimento Estados Unidos/Rússia conhecido nos últimos dias, com responsáveis militares dos dois países a discutirem a situação na Síria é um sinal claro de que algo está a ser preparado. Tem havido uma roda-viva nos corredores da diplomacia: Washington, Moscovo, Teerão, Riad, Omã, são algumas das capitais que guardam o segredo do que está a ser preparado. Dos últimos dias vem também a deslocação do Primeiro-Ministro israelita a Moscovo. O chefe da diplomacia síria esteve em Omã (deslocação rara a um país sunita), o chefe da secreta síria esteve em Riad… Teerão já terá um plano para a divisão da Síria que poderá ser um ponto de partida para um entendimento. Assad terá de perceber que não podendo ganhar esta guerra terá de perder alguma coisa para não perder tudo. Basta para isso que os interesses da Rússia sejam satisfeitos e que o Irão não estique demasiado a corda, até porque o acordo com o grupo dos 5+1 sobre o programa nuclear parece ser algo de que Teerão não se quer desviar.

Falta saber qual é a linha de fronteira no interior da Síria que Assad vai querer estabelecer e até pode acontecer que queira manter num futuro Estado algumas das cidades que há muito lhe escaparam da mão. Várias cidades, de Damasco a Aleppo, passando por Homs e Hamah, todas elas a poucos quilómetros da costa mediterrânica, seriam a cereja no topo do bolo da solução que parece estar a caminho. Assad pode ficar satisfeito com Lataquia e Tartus e mais uma faixa de território até Damasco. A fronteira com o Líbano é território em que pode ter a ajuda do Hezbollah. Todos os sinais apontam para que Assad aceite uma solução que lhe permita de algum modo salvar a face numa guerra que não pode vencer. Para trás fica terra queimada entregue a extremistas e a rebeldes que vão continuar a bater-se e onde as várias potências vão esgrimir argumentos, explorar apoios e fidelidades. Ainda assim a solução da “nova Síria” poderá também ser agarrada com ambas as mãos pelos rebeldes do Exército Livre da Síria, cansados de esperar por apoios externos que nunca chegaram.

Já se percebeu que os países ocidentais não querem colocar tropas no terreno. Também já se percebeu que os ataques aéreos da coligação internacional contra o Estado Islâmico não estão a conseguir alterar a situação. Por outro lado, já se viu que a Rússia está a enviar equipamento militar para as duas províncias junto ao Mediterrâneo (sem oposição dos Estados Unidos), sinal de que poderão estar a ser criadas as infra-estruturas militares mínimas que garantam a defesa de um futuro Estado de Assad. Se isso vier a acontecer, não é de todo desajustado considerar que é a Rússia quem mais beneficia deste longo braço de ferro em que nunca “deixou cair” Bashar al Assad no Conselho de Segurança da ONU. Afinal, se os Estados Unidos já contam com um fiel aliado na região, a quem dão um forte apoio militar (Israel), a Rússia mantém o aliado Assad e reforça a presença militar no Médio Oriente. Israel, se não sentir a sua segurança em risco, não se vai importar com este novo desenho até porque é conhecida a política russa em relação a movimentos islâmicos mais radicais. Talvez o Irão seja o parceiro mais difícil de contentar nesta solução. Quanto ao Líbano, encravado entre Israel a sul e uma “nova Síria” a norte e a leste, há muito que é um barril de pólvora mas essa característica também tem produzido ensinamentos que ajudam a enfrentar realidades complicadas. 

Fazer este tipo de previsões é arriscado, mas olhando para a geografia, para os interesses das potências envolvidas e para os últimos desenvolvimentos da agenda diplomática, a criação de uma “nova Síria” é a solução para onde todos os dados apontam.


Pinhal Novo, 23 de Setembro de 2015

josé manuel rosendo